A Receita Federal do Brasil (RFB) publicou, em 6 de maio, a Solução de Consulta Cosit 75/25, que aborda o tratamento tributário de trust constituído no exterior por instituidor (settlor) pessoa jurídica estrangeira. O tema é relevante, pois, embora os trusts sejam amplamente utilizados como instrumento sucessório no exterior, não há regulamentação específica no ordenamento jurídico brasileiro. A Lei 14.754/23, em vigor desde 1º de janeiro de 2024, trouxe regras para a tributação de trusts, mas persistem diversas dúvidas sobre sua aplicação em situações complexas.

Resumo da estrutura do trust analisado

O trust analisado na solução de consulta foi constituído sob as leis do estado de Delaware, nos Estados Unidos, por uma pessoa jurídica estrangeira, que aportou recursos provenientes de direitos econômicos conferidos por outra pessoa jurídica estrangeira, acionista indireta de uma empresa brasileira. O trust foi criado para beneficiar, potencialmente, os descendentes de um dos acionistas da empresa brasileira, sendo irrevogável, com duração de 150 anos e discricionário.

A discricionariedade do trust é um ponto central: não há beneficiários definidos, pois a aquisição de direitos sobre o patrimônio do trust depende do cumprimento de condições suspensivas estabelecidas no instrumento de instituição. O trustee (aquele que administra o patrimônio) tem ampla liberdade para decidir sobre a destinação dos bens e pode, inclusive, recusar solicitações de entrega de patrimônio. O acionista da empresa brasileira não é, nem poderá ser, beneficiário do trust, nem participa da gestão dos ativos.

Além disso, foi informado que não houve qualquer distribuição de recursos a beneficiários e, caso as condições suspensivas não sejam cumpridas, os recursos não serão disponibilizados aos descendentes.

Diante desse cenário, a consulta questiona se, considerando a natureza irrevogável e discricionária do trust, a ausência de beneficiários definidos e a existência de condições suspensivas, haveria obrigação de o acionista da empresa brasileira ou os potenciais beneficiários do trust informarem o patrimônio subjacente na Declaração do Imposto de Renda da Pessoa Física (DIRPF) e tributarem seus rendimentos pelo Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF), com base nos artigos 10 a 12 da Lei 14.754/23.

Interpretação da RFB

O entendimento da RFB foi de que a simples expectativa de direito dos beneficiários em relação ao patrimônio do trust é suficiente para caracterizá-los como beneficiários para fins de reporte e tributação dos rendimentos subjacentes. Essa interpretação se fundamenta nos seguintes pontos:

  • A Lei 14.754/23 parte do pressuposto de que o instituidor do trust é sempre uma pessoa física. Assim, exige-se a investigação da cadeia patrimonial dos bens e direitos aportados no trust, para identificar a pessoa física que, em última instância, é a titular do patrimônio utilizado para a constituição do trust, ainda que esse patrimônio esteja formalmente em nome de pessoas jurídicas.
  • De acordo com a Lei 14.754/23, a constituição de um trust irrevogável implica a transferência da titularidade do patrimônio do trust aos beneficiários desde a sua instituição, independentemente de qualquer evento futuro, para fins de reporte dos bens e direitos e tributação dos rendimentos subjacentes.
  • A condição de beneficiário não depende da existência de um direito adquirido ao patrimônio do trust. Assim, a simples expectativa de direito ao patrimônio de um trust irrevogável, ainda que sujeita a condições suspensivas, é suficiente para caracterizar a pessoa física como beneficiária.

Dessa forma, a RFB adota entendimento restritivo de que o patrimônio do trust sempre terá um titular definido, independentemente das condições ou variações de sua estrutura:

  • no caso de trust revogável, o instituidor permanece como titular até a distribuição ou falecimento; e
  • no trust irrevogável, a titularidade é dos beneficiários desde a constituição.

Isso se aplica tanto para fins de comunicação como para a tributação dos rendimentos gerados pelo patrimônio do trust.

A redação da Solução de Consulta Cosit 75/25 também sugere uma tendência da RFB de adotar uma interpretação mais restritiva em relação à figura do instituidor, ao destacar que a lei parte do princípio de que o instituidor do trust é necessariamente uma pessoa física e que a cadeia patrimonial deve ser analisada para identificar a pessoa física que, em última instância, detém o patrimônio atribuído ao trust.

Outro aspecto abordado pela solução de consulta refere-se à figura do trustee, cujas responsabilidades atribuídas pela Lei 14.754/23 ainda suscitam dúvidas, especialmente em casos semelhantes ao analisado, envolvendo trusts irrevogáveis nos quais há indefinição sobre a figura do beneficiário.

Em resumo, essa controvérsia surgiu após a publicação da lei e pelo fato de que os administradores de trusts são considerados beneficiários finais (Ultimate Beneficial Owner) para fins de comunicação ao Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica (CNPJ), de acordo com a Instrução Normativa RFB 2.119/22.

Na solução de consulta, a RFB parece reconhecer que, mesmo nos casos em que há essa indefinição, o trustee jamais seria considerado responsável tributário por comunicar ou cumprir obrigações tributárias no Brasil.

Impressões iniciais

Algumas conclusões da Solução de Consulta 75/25 merecem críticas importantes:

  • Definição de instituidor: a exigência de que o instituidor seja sempre uma pessoa física desconsidera a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas. Essa interpretação restritiva contraria princípios do direito tributário, embora já fosse esperada diante da redação da Lei 14.754/23, que define o instituidor (settlor) do trust como “pessoa física que, por meio da escritura do trust, destina bens e direitos de sua titularidade para formar o trust”.

    O artigo 109 do Código Tributário Nacional (CTN) determina a aplicação subsidiária dos conceitos do direito privado para qualificar os fatos geradores de tributos, salvo disposição legal em sentido contrário.

Considerando que a legislação brasileira não regulamenta esse tipo de instrumento sucessório e que a legislação da jurisdição do trust é a que regula as relações jurídicas entre as partes, ao desconsiderar uma estrutura em que o instituidor é, de fato, uma pessoa jurídica, cria-se uma ficção jurídica para deslocar a obrigação tributária para uma pessoa física residente fiscal no Brasil, por meio de uma “investigação da cadeia patrimonial” dos bens e direitos aportados no trust.

Essa postura pode legitimar a exigência de apresentação de documentos e informações sensíveis sobre investimentos no exterior, inclusive por pessoas físicas que, muitas vezes, não têm acesso a esse tipo de documentação, como é o caso dos beneficiários discricionários.

  • Conceito de beneficiário e momento da tributação: a caracterização da condição de beneficiário para fins de reporte e tributação dos rendimentos do patrimônio do trust em razão de uma “expectativa de direito” contraria o conceito constitucional de renda e a exigência de “aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica” prevista pelo artigo 43 do CTN.

    Quando a expectativa de renda está sujeita a uma condição suspensiva, como ocorre na maioria dos trusts discricionários, a situação jurídica não está definitivamente constituída. O direito de receber o patrimônio do trust depende de evento futuro e incerto, o que impede a configuração do fato gerador do Imposto de Renda. A simples expectativa não confere ao beneficiário o poder de dispor do patrimônio do trust, requisito essencial para a configuração da renda tributável (rendimentos). Essa tributação antecipada, além de potencialmente confiscatória, viola também o princípio da legalidade em matéria tributária, previsto no artigo 150, I, da Constituição Federal, que exige que os tributos sejam instituídos por lei.

A Solução de Consulta 75/25 traz importantes reflexões sobre a tributação de trusts no exterior, mas também levanta questões que merecem uma análise crítica mais aprofundada, especialmente sob a ótica do conceito de renda e da legalidade em matéria tributária. É fundamental que os contribuintes estejam atentos às discussões sobre o tema e protejam os seus interesses.

A equipe Tributária e de Planejamento Patrimonial e Sucessório do Machado Meyer está à disposição para esclarecer eventuais questionamentos sobre o tema.