Daniella Tavares, sócia e Caio Ferreira, associado sênior do Machado Meyer Sendacz e Opice Advogados

Introdução

Historicamente, as operações de fusões e aquisições no Brasil têm sido influenciadas em grande parte pelo Direito Norte Americano e, em menor escala, pelo Britânico. Isso se deve a basicamente três fatores diferentes.

Primeiramente, essas são jurisdições cujas economias se encontram em avançado estágio de desenvolvimento, especialmente quando comparadas à economia brasileira, o que faz com que operações de fusões e aquisições tenham sido realizadas em maior número, complexidade e volume financeiro.

Em segundo lugar, os operadores brasileiros do Direito que se especializam ou buscam conhecimentos acerca da matéria acabam invariavelmente recorrendo às Universidades desses países, por terem iniciado os investimentos em capacitação acadêmica na área muitos anos na frente de qualquer outra instituição.

Por fim, o desenvolvimento econômico vivenciado pelo Brasil nas duas últimas décadas, aliado à crescente globalização das economias modernas, fez com que ocorresse um número considerável de aquisições de empresas nacionais por grupos estrangeiros, dentre eles os Norte-Americanos em maior número.

Com isso, o setor de fusões e aquisições no Brasil experimentou a “importação” de práticas e institutos jurídicos típicos do Direito Anglo-Saxão e de outros países que adotam o sistema da Common Law, aplicados e adaptados às operações ocorridas em território nacional, sem que tenham sido postos a prova, principalmente perante as autoridades judiciárias brasileiras, cuja jurisprudência sobre a matéria ainda é esparsa.

Diante dessas práticas “importadas”, o presente artigo tem por objetivo analisar as cláusulas referentes à indenização e suas limitações nos contratos de fusões e aquisições, avaliando a aplicabilidade desses institutos frente o arcabouço legal brasileiro, que tem origem, princípios e leis distintas daqueles países pelos quais as operações de fusões e aquisições são atualmente influenciadas.

O Código Civil brasileiro e a responsabilidade nas obrigações de dar coisa certa

A Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (“Código Civil”), trata do direito das obrigações e dos contratos envolvendo entes privados. De maneira geral, tais normas são disponíveis e, portanto, podem ser afastadas ou modificadas pelas partes contratantes.

Dito isso, a doutrina especializada conceitua obrigação como o vínculo jurídico pelo qual um sujeito pode dar, fazer ou não fazer qualquer coisa em favor de outrem. Classifica-se em três espécies: de dar, de fazer e de não fazer.

Para os fins deste artigo, interessam as obrigações de dar, em especial aquelas de dar coisa certa, que estabelece um vínculo entre as partes, pelo qual o devedor fica comprometido a entregar ou restituir ao credor um objeto determinado, exatamente como se enquadram a maior parte das operações de fusões e aquisições.

A obrigação de dar consiste na entrega de alguma coisa, ou seja, na tradição de uma coisa pelo devedor ao credor. Por esta modalidade de obrigação, tem o devedor o dever jurídico de entregar a coisa determinada, bem como os seus acessórios, salvo se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso, conforme disposto no artigo 233 do Código Civil.

O artigo 234 do Código Civil dispõe, em relação às obrigações de dar coisa certa, que se a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes. Já o artigo 235 do Código Civil determina que deteriorada a coisa, sem culpa do devedor, é facultado ao credor (i) resolver a obrigação, ou (ii) aceitar a coisa e abater de seu preço o valor perdido em razão da deterioração. Essas são as soluções oferecidas pelo ordenamento pátrio para os casos de perda e deterioração da coisa, respectivamente, sem que haja culpa do devedor.

Já nos casos em que há culpa do devedor, o mesmo artigo 234 do Código Civil prevê que esse responderá pelo equivalente à coisa, além de perdas e danos, podendo o credor exigir o bem equivalente ao prometido ou aceitar a coisa no estado em que se acha, sem prejuízo do direito de indenização das perdas e danos em ambos os casos (artigo 236 do Código Civil).

A responsabilidade civil nas relações contratuais

Ao contrário do que se observa na legislação aplicável à responsabilidade civil extracontratual, nas relações contratuais, a apuração de culpa não é determinante para geração do direito à indenização.

No que toca os contratos de compra e venda especificamente, o artigo 492 do Código Civil preceitua “Até o momento da tradição, os riscos da coisa correm por conta do vendedor, e os do preço por conta do comprador”. Ou seja, ficam por conta do vendedor os riscos da coisa, e do comprador os do preço, até aquele momento da tradição.

Ademais, complementa o parágrafo 2º do artigo 492 do Código Civil que correm por conta do comprador os riscos da coisa, se estiver o comprador em mora de as receber, desde que postas à sua disposição no tempo, lugar e pelo modo ajustados.

E ainda, o artigo 494 do Código Civil determina “Se a coisa for expedida para lugar diverso, por ordem do comprador, por sua conta correrão os riscos, uma vez entregue a quem haja de transportá-la, salvo se das instruções dele se afastar o vendedor”.

Em resumo, segue abaixo esquema montado por Orlando Gomes1:

(a)           Até o momento da tradição, os riscos correm por conta do vendedor;

(b)           Depois da tradição, por conta do comprador;

(c)           Quando posta à disposição do comprador, por sua conta;

(d)           Por conta do comprador se estiver em mora de receber a coisa;

(e)           Igualmente se expedida para lugar diverso por sua ordem, do comprador, a partir do momento da entrega a quem haja de transportá-la.

As formas de limitação de responsabilidade em contratos regulando operações de fusões e aquisições

1.    Breves considerações sobre a regra geral de responsabilidade por débitos anteriores à compra e venda

O artigo 502, que se encontra no Código Civil na parte de disposições gerais sobre os contratos de compra e venda, é categórico ao determinar que “O vendedor, salvo convenção em contrário, responde por todos os débitos que gravem a coisa até o momento da tradição”.

Assim é que, como regra geral, o vendedor responde pelos débitos relativos à coisa transferida por compra e venda até o momento da conclusão da operação, com a tradição do bem para o comprador.

2.    A responsabilidade legal por débitos em operações de fusões e aquisições

Ao contrário do que se dá de acordo com a regra inscrita no artigo 502 do Código Civil, nas operações de fusões e aquisições, a legislação específica aplicável aos tipos societários mais comuns em nosso ordenamento impõe a limitação da responsabilidade dos sócios ao valor do capital social das sociedades alvo.

Assim é que, para as sociedades limitadas e sociedades anônimas, a responsabilidade dos sócios é limitada ao capital social, salvo no caso de falta de integralização nas sociedades limitadas, ocasião em que todos os sócios respondem solidariamente pela integralização do capital social.

Portanto, no mais comum dos casos, os sócios de sociedades brasileiras não respondem por obrigações sociais, podendo se concluir que, após a alienação de valores mobiliários emitidos por sociedades desses tipos, não há responsabilidade estabelecida em lei para o alienante em face de obrigações sociais.

Entretanto, os contratos que regulam as operações de fusões e aquisições, influenciados pelos Direitos Norte-Americano e Britânico, tratam da alocação de responsabilidades entre as partes, além daquelas legalmente inerentes à transação e aos negócios da empresa alvo. Dentre os mecanismos utilizados para a alocação de tais responsabilidades, encontram-se as cláusulas contratuais que dispõem sobre a limitação da responsabilidade e do dever de indenização pelas partes envolvidas.

3.    A limitação contratual parametrizada por valores

Um dos instrumentos mais utilizados em operações de fusões e aquisições para limitação da responsabilidade das partes é o chamado teto para a indenização, ou cap.

Assim, comprador ou vendedor seriam responsáveis por, no máximo, um valor pré-determinado, podendo ser um percentual do valor total da operação ou outro parâmetro.

Nesses casos, perdas sofridas pela sociedade-alvo ou pela parte a ser indenizada somente seriam ressarcidas até um determinado valor, sendo o excedente, caso venha a existir, arcado pela parte sobre a qual a perda recaia.

Outra forma também comum de limitação da responsabilidade das partes atrelada a valor é o piso de indenização ou também chamado de floor.

Por esse instrumento, a parte responsável em contrato por uma perda sofrida por outra parte só passa ter o dever de indenização quando uma perda ultrapassa determinado valor.

Tal mecanismo evita que a parte indenizadora seja acionada pela outra parte para indenizar por perdas de pequena monta, sendo responsável apenas por aquelas perdas sofridas pela sociedade-alvo ou por outras partes envolvidas que superem um valor considerado relevante diante do perfil da transação e dos negócios praticados.

Um terceiro método de imposição de limites de valor é o chamado basket, por meio do qual as partes estabelecem um valor mínimo para que a soma das perdas já sofridas por um das partes seja indenizada pela parte responsável.

Tal mecanismo serve, basicamente, para simplificação dos procedimentos de indenização, evitando que a parte indenizadora seja acionada a todo instante para providenciar indenizações. Assim, a parte inocente arca com o pagamento decorrente das perdas até que o valor do basket seja atingido, quando, então, a parte responsável pagará por todas as perdas sofridas até o momento.

Ressalte-se que a presença em uma operação de um dos mecanismos descritos acima não exclui a possibilidade do estabelecimento de outro(s). Assim, é viável que uma operação de fusões e aquisições tenha uma combinação de instrumentos atrelados a valores, que limitam a responsabilidade contratual das partes envolvidas.

Em todos os casos, é de extrema importância que as partes explicitem em contrato alguns conceitos fundamentais para a exequibilidade das disposições referentes à responsabilidade e seus limites. São alguns deles: (i) o conceito de perda; (ii) o momento quando uma perda passa a ser exigida da parte que deve indenizar; (iii) o mecanismo através do qual se dá ciência à parte indenizadora, bem como pelo qual ela efetua a indenização à parte inocente; e (iv) a forma de resolução de conflitos em relação a eventual discordância sobre a responsabilidade por alguma perda.

4.    A limitação contratual temporal

Muito presente também nas operações de fusões e aquisições ocorridas atualmente são as limitações relacionadas ao período de tempo em que as partes permanecem responsáveis por perdas sofridas em razão da transação.

Essa limitação pode ser genérica, estabelecendo-se, por exemplo, que o vendedor permanecerá responsável por perdas sofridas pela sociedade-alvo por um período de cinco anos, contado do fechamento da transação, desde que se refiram a atos praticados antes do fechamento.

Há também os casos que as partes estabelecem prazos distintos para perdas relacionadas a matérias diferentes, como por exemplo, prazos diferentes para obrigações de indenizar por perdas de natureza fiscal, trabalhista, previdenciária ou ambiental.

Em ambos os casos, após o decurso do prazo estabelecido, a parte responsável pela perda deixa de ser obrigada a indenizar, devendo a parte que sofreu a perda arcar com o pagamento correspondente.

Uma ressalva importante quanto a esse tipo de limitação de responsabilidade diz respeito à possibilidade de confusão entre os prazos definidos em Lei para prescrição e decadência de uma obrigação de indenizar e os prazos eventualmente estabelecidos em contrato.

A prescrição extintiva conduz à perda da pretensão do exercício de um direito pelo seu titular inerte, ao fim de certo lapso de tempo2. Já a decadência é o perecimento do direito potestativo, em razão de seu não exercício em tempo prefixado3.

Apesar das diferenças técnicas, ambos os institutos decorrem do efeito do tempo, aliado à falta de atuação do titular.

Portanto, as partes devem estar atentas para, por exemplo, o caso hipotético em que o vendedor possui a obrigação de indenizar por um período superior ao prazo de prescrição de uma obrigação descumprida pela sociedade-alvo. Nesse caso, o vendedor pode se ver obrigado a indenizar uma perda que não deveria ser satisfeita por nenhuma das partes.

Por essa razão, é importante que as partes detalhem nos contratos correspondentes os efeitos da prescrição diante dos limites temporais estabelecidos entre elas, especialmente a solução para o caso em que uma das partes possa perder a oportunidade de alegar a prescrição para que venha a ter êxito em uma demanda.

A arbitragem como método de resolução de conflitos societários no Brasil

Haja vista a complexidade alcançada nas operações de fusões e aquisições no Brasil, atreladas à já mencionada importação de conceitos, institutos e práticas de outras jurisdições, é extremamente aconselhável que o foro de resolução de conflitos dessas matérias esteja preparado para lidar com os desafios que se impõem.

Portanto, é inevitável que seja pontuada a arbitragem, justamente pelo fato de vir sendo maciçamente prevista em contratos que regulam fusões e aquisições como foro de eleição das partes para solução de todo e qualquer conflito advindo da respectiva transação.

A arbitragem no Brasil encontra-se prevista na Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 (“Lei de Arbitragem”). Ela é conceituada como sendo o “meio alternativo de solução de controvérsias através da intervenção de uma ou mais pessoas que recebem seus poderes de uma convenção privada (“convenção arbitral” ou “convenção de arbitragem”), decidindo com base nela, sem intervenção estatal, sendo a decisão destinada a assumir a mesma eficácia da sentença judicial – é colocada à disposição de quem quer que seja, para solução de conflitos relativos a direitos patrimoniais acerca dos quais os litigantes possam dispor”4.

Apesar de ter entrado em vigor em 1996, a utilização da Lei de Arbitragem foi difundida no Brasil a partir de 2002, após o Supremo Tribunal Federal ter firmado entendimento sobre a constitucionalidade da estipulação da arbitragem e a sua utilização pelas partes contratantes.

Por isso, a eleição da arbitragem vem se constituindo como quase obrigatório, e não mais alternativo, para resolver as controvérsias advindas de negócios complexos e/ou de valores expressivos, que veiculem direitos patrimoniais disponíveis, conforme se depreende do artigo 3º da Lei de Arbitragem.

Em resumo, pode-se afirmar que a arbitragem possui os seguintes pontos positivos, especialmente quando comparados ao Judiciário (i) a rapidez na emissão de suas decisões finais; (ii) o sigilo, uma vez que, em regra, apenas as partes litigantes têm ciência do conteúdo do processo; (iii) a qualificação dos árbitros; e (iv) o respeito à autonomia da vontade das partes.

Por outro lado, os procedimentos arbitrais são mais custosos em relação a processos judiciais e pode-se levar, aproximadamente, dois anos para que os tribunais superiores brasileiros homologuem um laudo arbitral estrangeiro, pelo que é aconselhável que as arbitragens que envolvam transações no Brasil sejam realizadas no em território nacional, ainda que a Lei aplicável e o idioma sejam diferentes.

Adicionalmente, o fato de a maioria dos procedimentos arbitrais correrem sob sigilo, gera o efeito perverso de não se difundir no País uma sólida e atual jurisprudência acerca de questões de direito empresarial e negócios internacionais. Com isso, não se sabe ao certo qual a exata interpretação e/ou aceitação de determinados mecanismos inseridos em contratos de fusões e aquisições, dentre eles as formas de limitação de responsabilidade e obrigação de indenizar.

Entretanto, apesar de haver desvantagens, a emissão de sentenças arbitrais tem recebido o respaldo do Poder Judiciário brasileiro, ensejando a elevação da confiança do mercado nessa espécie de método alternativo de resolução de conflitos.

Considerações finais

Tendo em vista o acima exposto, conclui-se que a utilização de práticas e institutos típicos de outras jurisdições nos contratos de fusões e aquisições regidos por lei brasileira, podem não conflitar com o ordenamento jurídico nacional.

No entanto, não é recomendável que seja feita a mera transposição ou importação de tais institutos sem o necessário respaldo na legislação, doutrina ou jurisprudência.

Por isso, é essencial que os contratos de fusões e aquisições sejam devidamente adaptados à legislação brasileira, de forma que não percam a sua efetividade e aplicabilidade e possam, consequentemente, conferir segurança jurídica às partes envolvidas em transações de fusões e aquisições.

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1. GOMES, Orlando. Contratos, 12ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 1989, p. 259.

2. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, Vol. I, 24ª ed., Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2011, p. 571.

3. Instituições de Direito Civil, ob. cit., p. 576.

4. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à lei 9.307/96, 2ª ed., São Paulo, Atlas, 2006, p. 51.

(Britcham Brasil - 08.06.2015)

(Notícia na Íntegra)