Por Juliano Basile e Thiago Resende
As empresas que quiserem implementar políticas de descontos ou firmar acordos com os seus clientes para fornecer produtos em melhores condições daquelas utilizadas pela concorrência poderão consultar o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) para evitar condenações no futuro.
O conselho está regulamentando a prática de consultas pela qual companhias terão como fazer perguntas prévias ao órgão antitruste antes de adotar políticas no mercado. Isso vai permitir às companhias fazer um planejamento de modo a evitar a imposição de multas pelo Cade, pois eventuais estratégias agressivas que elas estudam implementar no mercado serão analisadas antes pelos conselheiros.
"Nós queremos gerar um estímulo para que as empresas possam consultar o Cade sobre alguns temas", disse o presidente do órgão antitruste, Vinícius Carvalho, em entrevista ao Valor PRO, serviço de informações em tempo real do Valor.
A regulamentação das consultas deve ficar pronta dentro de um mês. O Cade divulgou uma proposta de resolução, em seu sítio na internet, e vai receber sugestões a respeito das regras até 28 de novembro.
"Nós estamos abrindo um canal de diálogo com as empresas, o que deve viabilizar ainda mais os programas de ′compliance′", ressaltou Carvalho. As regras sobre consultas devem facilitar ainda mais os programas de "compliance" pelos quais as empresas divulgam internamente em todos os seus departamentos a legislação de defesa da concorrência de modo a evitar que seus diretores cometam irregularidades, como fechar acordos de exclusividade com pontos de venda ou iniciar políticas de descontos que podem levar a multas a serem aplicadas pelo órgão antitruste.
O maior exemplo de estratégia empresarial que acabou condenada pelo Cade foi o programa "Tô Contigo", da Ambev, pelo qual foi criado um sistema de bonificação para pontos de venda que adquirissem produtos com as marcas da companhia. A Schincariol recorreu ao Cade contra o programa e, em julho de 2009, o órgão antitruste condenou a Ambev a pagar R$ 352 milhões. Posteriormente, essa multa foi contestada na Justiça pela companhia que nega a intenção de prejudicar as concorrentes.
Agora, empresas que estiverem planejando programas de descontos ou de fidelização de clientes poderão fazer consultas prévias ao órgão antitruste antes de implementá-los, o que deve evitar a imposição de multas pelo Cade no futuro.
"O Cade, atualmente, não tem esse procedimento para responder as consultas. Em determinadas situações, é bom ter essa possibilidade de tirar dúvidas especialmente em relação à legislação. Se uma empresa não tiver certeza sobre a interpretação do Cade, pode perguntar ao próprio órgão e, assim, evitar problemas futuros", afirmou Lauro Celidonio, sócio do escritório Mattos Filho Advogados.
Ex-conselheiro do Cade, Marcos Paulo Veríssimo, sócio do Machado Meyer Advogados, acredita que a medida vai "incentivar mais as empresas a procurarem um sinal do Cade antes de praticarem condutas que sejam dúbias, aquelas em que não há certeza sobre a interpretação do órgão antitruste e, com isso, elas podem fugir do risco de o Conselho considerar a prática ilícita".
Veríssimo frisou que, atualmente, a consulta não é muito utilizada porque não há um comprometimento de que a resposta do Cade será cumprida. Por exemplo, se uma empresa perguntar sobre a legalidade de uma promoção, o órgão pode dizer que a prática é irregular - vedando a ideia - ou responder que é permitida. Mas, depois o Conselho pode mudar de decisão e multar a companhia. Pela resolução em análise, a resposta ao questionamento ficará "vinculada" e, portanto, terá que ser cumprida. No entanto, isso vai valer por apenas cinco anos, alertou.
Além de prever o mecanismo de consulta prévia, o Cade editou uma resolução, na última quarta-feira, estabelecendo que as empresas terão que notificar ao órgão os contratos associativos firmados para a realização de empreendimentos em comum acordo.
O objetivo dessa resolução foi dirimir outra dúvida das empresas que, em muitas ocasiões, simplesmente não sabiam se deveriam notificar alguns contratos, como licenciamento de patentes e transferência de tecnologia.
Um contrato firmado pela Monsanto com várias empresas - entre elas, a Syngenta - para licenciar a comercialização de sementes de soja geneticamente modificadas gerou debates intensos e sucessivos pedidos de vista entre os conselheiros, que discutiram se acordos desse tipo deveriam ser encaminhados para aprovação prévia para, somente depois, passarem a valer no mercado.
A partir da resolução, o Conselho firmou o entendimento de que, se duas companhias atuarem no mesmo mercado e firmarem um contrato para iniciar um empreendimento em comum, através do qual surja uma relação de interdependência, elas terão que informar previamente o Cade. Isso vale para os casos em que uma empresa tiver faturamento igual ou superior a R$ 750 milhões e a outra, mais de R$ 75 milhões.
O Cade fixou ainda outras condições para a notificação de contratos associativos pelas quais terão que ser informados os negócios em que a soma das participações de mercado das empresas for igual ou superior a 20%. O Conselho também terá que ser notificado sobre contratos nos casos em que uma empresa tiver mais de 30% do mercado afetado pelo negócio desde que: for estabelecido o compartilhamento de receitas e de prejuízos entre as partes ou ficar especificada uma relação de exclusividade entre os envolvidos na operação. Essas regras valem para os contratos com duração superior a dois anos.
"Nós procuramos dar um norte para as empresas", justificou o presidente do Cade. Segundo ele, essa resolução está dentro da estratégia do órgão antitruste de permitir que os advogados das empresas possam identificar quais contratos devem ser notificados ou não. "Trata-se de um aperfeiçoamento nas regras de notificação para conferir maior segurança jurídica às empresas", completou.
A advogada Leonor Cordovil, sócia do escritório Grinberg e Cordovil, destacou que hoje o Brasil é um dos poucos países em que contratos entre empresas - não necessariamente fusões e aquisições - têm que ser levados ao órgão antitruste. Mas, antes da resolução, não estava claro quais tipos de contratos poderiam causar riscos à concorrência e, portanto, dependeriam de julgamento e aval do Cade.
"O texto esclareceu alguns critérios e trouxe maior previsibilidade para as empresas embora existam pontos que ainda deixam dúvidas", afirmou Leonor. A resolução está muito ampla em relação à parte em que prevê que, no caso de empresas concorrentes que, juntas, detêm participação de pelo menos 20% de um determinado mercado, todos os contratos entre as companhias têm que ser apresentados ao Cade. "Ainda está muito amplo. Será que isso inclui, por exemplo, contratos de fornecimento de matéria-prima?", questionou.
De todo o modo, a advogada avaliou que a resolução foi um avanço, pois agora as empresas não mais têm motivo para deixar de apresentar ao Cade um contrato associativo.
Valor Econômico - 03.11.2014, p. A4