Passada mais de uma década da emblemática quebra do banco americano Lehman Brothers, as economias no mundo todo continuam convivendo com uma ainda mal digerida herança daquela crise financeira iniciada em 2008: as relações trabalhistas nada ortodoxas daquilo que já foi batizado de "gig economy" (economia do bico, numa tradução livre). A espantosa disseminação do trabalho sem vínculo empregatício, mas com características que poderiam ser consideradas típicas da carteira assinada - suportada pela expansão de aplicativos e plataformas que operam como intermediários que conectam prestadores e tomadores de serviços - gerou uma espécie de limbo jurídico que, não sem surpresa, logo se transformou em tensão social.
Motoristas de aplicativos, entregadores e congêneres são funcionários ou autônomos? As empresas têm responsabilidade em termos trabalhistas em relação a essas pessoas? Qual o limite entre autonomia e subordinação? São perguntas ainda sem respostas, mas já com algumas pistas e considerações pertinentes e muitas vezes antagônicas, analisadas no debate da Conexão Capital "O trabalho na era da economia compartilhada". Participaram do encontro online o coordenador jurídico do iFood, Lucas Pittioni; o sócio do escritório LBS Advogados Ricardo Carneiro; e o sócio do Machado Meyer Advogados Rodrigo Takano.
O primeiro ponto do debate está concentrado na ideia de autonomia: seria ela suficiente para afastar a responsabilidade da plataforma que faz a intermediação do serviço? Takano afirma que para se analisar esse ponto é necessário primeiro lembrar de como a legislação brasileira define "empregado" Segundo ele, há quatro fatores envolvidos nessa definição: a onerosidade, relacionada ao pagamento pelo trabalho; a pessoalidade (o trabalhador, na relação com o empregador, não pode se fazer substituir); a habitualidade, caracterizada pela expectativa de um retorno do trabalho feito; e a subordinação hierárquica, situação em que o empregador exerce um controle sobre o empregado. "A meu ver, a principal diferença desses novos modelos está na ausência de subordinação, já que o prestador tem liberdade para decidir como e quando vai trabalhar", opina.
Condições de trabalho
Para o coordenador jurídico do iFood, não é necessário que se recorra ao vínculo empregatício no combate à precarização do trabalho - que, em última instância, é o que causa desconforto social em várias partes do mundo. "Não sei se o mais adequado é falar em modernização de legislação trabalhista nesse caso. No iFood, temos a ideia de que é preciso tratar coisas diferentes, como a economia compartilhada, de maneiras diferentes", diz Pittioni, que em cinco anos no cargo pôde ver de perto a evolução da questão do trabalho sob demanda. Embora a marca da empresa esteja muito associada aos entregadores com suas chamativas mochilas vermelhas, ele ressalta que em pelo menos 70% dos pedidos feitos na plataforma a entrega é feita pelas próprias empresas contratantes. É da comissão que elas pagam, informa, que vem o faturamento do iFood.
Segundo Pittioni, mesmo sem existir o vínculo empregatício, os trabalhadores sob demanda que prestam serviços para a plataforma dela recebem seguros de vida e para acidentes pessoais, cursos de direção defensiva e de educação financeira, além de acesso a descontos oferecidos por empresas parcerias para contratação de planos de saúde e seguro e manutenção dos veículos que utilizam para o trabalho, por exemplo. "E desde o início da pandemia oferecemos equipamentos de segurança e a possibilidade de acesso a um fundo por prestadores que estejam no grupo de risco para a covid-19 ou com sintomas da doença", enumera, destacando que tanto pelo conceito de hora online (tempo em que o entregador fica disponível) quanto por hora trabalhada a remuneração paga pela plataforma é superior à do salário mínimo. "Consideramos que é possível melhorar as condições de trabalho dessas pessoas sem necessariamente recorrer ao vínculo empregatício", afirma.
Jurisprudência
No Brasil ainda não há uma jurisprudência consolidada em relação a esse assunto, mas Takano apresenta algumas situações. Em ações coletivas (ações civis públicas, movidas pelo Ministério Público) contra empresas como Uber, 99, iFood e Loggi houve por enquanto duas decisões dos tribunais, ambas de primeira instância: uma favorável aos reclamantes (com recurso e posterior concessão de efeito suspensivo) e uma favorável às plataformas. No universo de ações individuais, em pouco mais de 90% a Justiça do Trabalho afastou o vínculo empregatício - uma decisão, inclusive, foi proferida pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST). "Por ora o que se vê é uma tendência da Justiça do Trabalho ao afastamento do vínculo", diz Takano.
Carneiro ressalva, entretanto, que o fato de os reclamantes perderem muitas das ações pode estar relacionado a pedidos equivocados nas ações, de reconhecimento de vínculo empregatício. Ele explica que o juiz se atém ao que diz a lei, então não há mesmo como encaixar esse tipo de trabalho no que a CLT exige. "Mas se as demandas fossem relacionadas a contratos intermitentes os resultados poderiam ser diferentes", comenta o advogado, para quem o trabalho sob demanda atende todos os requisitos desse tipo de contrato.
Contrato intermitente: uma opção?
A questão, por sinal, faz parte de um projeto (PL 3.748/20) da deputada federal Tabata Amaral (PDT-SP) para regulamentação dessas novas modalidades de trabalho. "Acredito que falta uma visão sobre o enquadramento desse novo modelo de trabalho num modelo de contrato previsto pela CLT. Isso entregaria ao trabalhador um certo nível de dignidade social e acesso a direitos trabalhistas básicos, como jornada, previdência social, atendimento à maternidade e descanso semanal", acrescenta Carneiro.
Para ele, as recentes mobilizações dos entregadores, por exemplo, mostram que as relações entre prestadores e tomadores de serviços não são amenas. Já Nakano discorda em relação à pertinência desse enquadramento. "Na minha visão, o trabalho por demanda é incompatível com o contrato intermitente. Tome-se o caso dos aplicativos de transporte. Um motorista pode estar cadastrado em várias plataformas, o que dificultaria esse enquadramento. Afinal, ele pode estar online em todos os aplicativos ao mesmo tempo e decidir na hora qual corrida vai fazer. Não há disponibilidade exclusiva", exemplifica. Do ponto de vista do iFood, diz Lucas, o enquadramento não se aplica porque os entregadores têm outras fontes de renda (46% da base da empresa, segundo ele) e trabalham para múltiplas plataformas diferentes. "Além disso, a plataforma não tem qualquer interferência sobre o momento, a forma e o local de trabalho dos entregadores", afirma. Uma saída para a garantia de direitos, segundo ele, seria o cadastramento dos trabalhadores como microempreendedores individuais (MEIs), regime que, com o pagamento de uma taxa mensal em torno de 50 reais, dá acesso a benefícios previdenciários. "De qualquer maneira, acho de extrema relevância esse debate, para a construção conjunta de um marco regulatório." Difícil, por enquanto, é encontrar uma convergência mínima, mesmo depois de uma década de consolidação da economia compartilhada.Jornalista: LEAL, Rejane Aguiar
(Capital Aberto - 11.09.2020)