Por Camila Hessel

Matéria originalmente publicada na edição de novembro de 2014 de Época NEGÓCIOS

Dinheiro para preparar uma salada de batatas. Era o que pedia o americano Zack Brown, de Columbus (Ohio), em campanha lançada na plataforma de captação coletiva de recursos Kickstarter no último mês de julho. Ele pedia apenas US$ 10 e alertava: “nunca fiz uma salada de batatas. Sequer sei fazer uma”. A brincadeira mostrou a força do mecanismo que é uma das faces mais conhecidas da chamada economia compartilhada: reunindo 6.911 doadores, foram arrecadados US$ 55,5 mil, no total. À medida que as moedinhas iam caindo em sua conta virtual, Brown foi alterando as recompensas, prometendo sessões culinárias, cooperações com chefs famosos, abrindo a possibilidade de os doadores determinarem ingredientes. O que começou como piada se tornou um exemplo contundente do crescimento dessa modalidade de financiamento, que já movimenta, no mundo todo, US$ 5,1 bilhões – e cresce a um ritmo de 123% ao ano.

Mas há uma modalidade dessas vaquinhas virtuais que vem sendo vista por especialistas do mercado financeiro como mais do que um mecanismo simples (e divertido) de viabilizar filmes, livros e objetos inusitados – como a faca perfeita para passar manteiga no pão. Trata-se do equity crowdfunding, que se presta a tirar do papel empresas inteiras, que antes só teriam como fonte de recursos empréstimos bancários ou aporte de capital semente. Embora a base seja a mesma das vaquinhas virtuais mais conhecidas, realizadas via Catarse ou Kickstarter, em que um grande número de pessoas contribui com pequenas quantias para transformar uma ideia em realidade, o equity crowdfunding se presta a financiar empresas, principalmente iniciantes, em troca não de pequenas recompensas, mas sim de uma participação na investida.

Lá fora, essa participação se dá principalmente através de ações. Existem também modelos em que o investidor recebe em troca um título de dívida – muitos estudiosos já chamam esse tipo de contrato de debt crowdfunding (entenda as diferenças das principais modalidades no quadro da pág. 92). Mais do que tirar um projeto de que gosta do papel, quem aplica suas economias nessas “campanhas” está em busca de retorno financeiro, no longo prazo, como qualquer investidor. A diferença é que os aportes podem ser menores do que o padrão aplicado por investidores anjo ou de capital de risco, uma vez que o alcance de um projeto é potencializado pela capacidade de pulverização da internet.

No Brasil, onde já existem duas plataformas dedicadas ao equity crowdfunding em operação, o investimento mínimo é de R$ 1 mil. O máximo é o teto estabelecido em lei para a captação de recursos junto a investidores individuais por micro e pequenas empresas: R$ 2,4 milhões a cada 12 meses. Na Holanda, país em que a maior plataforma virtual já financiou mais de 50 empresas (e reúne uma comunidade de 25 mil investidores ativos), o aporte mínimo é de meros ¤ 20. Segundo o estudo “Crowdfunding – an infant industry growing fast”, realizado pela Iosco (a organização internacional das comissões de valores), o valor médio alocado por investidor é de US$ 4 mil e o montante captado fica em torno de US$ 200 mil por empresa.

Chame o âncora

A primeira operação de equity crowdfunding realizada no Brasil foi concluída em meados de junho deste ano. Poderia até ser uma cena cortada de A Origem, filme em que Leonardo DiCaprio lidera um time de ilusionistas especializados em extrair (ou inserir) ideias no subconsciente de outras pessoas. Dessa vez, o episódio de sonho dentro do sonho foi o financiamento de uma plataforma virtual de investimentos coletivos, a Broota, realizado através de... uma plataforma virtual de investimentos coletivos. Frederico Rizzo, fundador desta que é a primeira plataforma de equity crowdfunding a entrar em atividade no Brasil, conta que a intenção era testar o modelo – e suas restrições. “Nosso desafio compartilhado é o de criar esse novo ecossistema”, diz Rizzo.

A captação, de R$ 200 mil, foi viabilizada por 28 apoiadores. Por escolha de Rizzo, a oferta foi dirigida apenas aos chamados investidores qualificados: indivíduos que dispõem de poupanças de pelo menos R$ 300 mil (conforme definição da Instrução CVM 409). Pensando na criação do novo ecossistema, a Broota estabeleceu critérios adicionais para compor três séries de investimento: a primeira previa aportes de R$ 1 mil e requeria investidores que já tivessem dirigido ou fundado empresas. Na segunda, os aportes saltavam para R$ 5 mil e, na terceira, para R$ 25 mil. Em ambas, era preciso que os investidores declarassem experiência prévia em capital de risco. “Com essa estrutura, quis estimular investidores e empreendedores a fazer mais de um investimento”, afirma Rizzo.

Além disso, a operação da Broota incluiu a figura de um investidor âncora. Espécie de líder da captação, seu investimento mínimo era de R$ 25 mil, e funcionava como um endosso de qualidade da startup para o resto do mercado. Esse modelo é visto com bons olhos por segmentos tradicionais do mercado de capitais, como a associação de investidores de capital semente Anjos do Brasil. Cassio Spina, seu presidente, afirma que é preciso não perder de vista a importância do network que o âncora aporta. “A busca por capital não se restringe aos recursos financeiros. A experiência do investidor conta muito, e ele franqueia acessos importantes para empresas que estão começando.”

Em setembro, a Broota colocou no ar duas novas ofertas lideradas por âncoras. Uma delas, a Cremme, que fabrica móveis de design assinado, já captou R$ 320 mil em capital semente e agora busca outros R$ 100 mil. Até o fechamento desta edição, já contava com 14 investidores, além do âncora. Outra é a TimoKids, aplicativo de jogos e histórias para crianças desenvolvidos em diversos idiomas. Eles buscam R$ 200 mil e 10% desse valor já foi aportado pelo âncora. A Broota listou também outras cem startups que ainda não montaram suas captações, apenas optaram por usar a plataforma como vitrine. “Elas começam, assim, a se relacionar com investidores, enquanto depuram os detalhes de seus planos de negócios e amadurecem suas estruturas”, afirma Rizzo.

A função de estreitar as relações entre empreendedores em busca de capital e investidores interessados em empresas inovadoras é a essência dessas plataformas de investimento coletivo. E se assenta, em boa parte, na tarefa de educar empreendedores e investidores. Outra plataforma de equity crowdfunding ativa no Brasil, a Eusocio tem realizado uma série de iniciativas nesse sentido. Além de publicar guias para o desenvolvimento de planos de negócios, promove seminários online sobre questões importantes para o fortalecimento de startups brasileiras, como governança corporativa, por exemplo. “Temos um novo paradigma”, diz Rafael Vasconcellos, um dos fundadores da Eusocio. “Os investidores que ajudam um determinado negócio a nascer passam a ser também seus clientes diretos.”

Domesticando tubarões

Um estudo encomendado pelo Banco Mundial à consultoria InfoDev estima que, até 2025, o mercado global de equity crowdfunding canalize recursos em volume similar ao da indústria de capital de risco. O montante estimado por eles é de entre US$ 90 bilhões e US$ 96 bilhões, o que equivale ao dobro do que é aportado hoje pelos fundos de venture capital. A proximidade maior entre investidores e investidas apontada por Vasconcellos, da Eusocio, é um dos fatores indicados como chave para o crescimento da modalidade. Outro, verificado em mercados onde o investimento coletivo já é mais maduro, é estrutural: os bancos, principal fonte de recursos para micro e pequenas empresas, têm reduzido significativamente a concessão de empréstimos a este segmento. Segundo estatísticas do Banco Central Europeu, nos últimos cinco anos (entre 2008 e 2013) o volume de capital que os bancos destinaram às pequenas e médias empresas caiu 35%. Natural, portanto, que elas busquem fontes alternativas.

Uma das pioneiras neste mercado, a Crowdcube foi criada em 2011, na Inglaterra. A inspiração do fundador, Darren Westlake, foi um programa de TV a cabo chamado Dragon’s Den, versão inglesa do americano Shark Tank, em que um painel de investidores anjo analisa propostas de startups. Surpreendido pelo volume de ideias interessantes apresentadas, ele se uniu a outro empreendedor digital, Luke Lang, para transpor para a internet o modelo da televisão. Em pouco mais de três anos, já financiou cerca de 150 empresas, canalizando um volume de mais de US$ 62,5 milhões.

Outro caso de sucesso é a holandesa Symbid, que teve este ano um crescimento expressivo no número de investidores e, consequentemente, de recursos aportados. Em setembro, eles quebraram a barreira dos ¤ 5 milhões e atraíram para a plataforma, em apenas um trimestre, 3 mil novos investidores. A Symbid é também protagonista de um dos exemplos de financiamento mais rapidamente viabilizados por uma plataforma online: em junho, a fabricante de roupas de fibra de bambu Greendaddy levantou ¤ 315 mil em apenas 48 horas.

Com jeito, vai

A quem se preocupa com a segurança desse tipo de investimento, vale dizer que as plataformas de todo o mundo deram os devidos passos para proteger o investidor. Os reguladores do mercado de capitais têm diretrizes específicas para o equity crowdfunding, que ora estabelecem restrições de renda mínima para os investidores – como a de US$ 200 mil nos Estados Unidos ou de R$ 300 mil no Brasil – ora determinam o porcentual máximo de recursos que um investidor pode aportar – como na Inglaterra, onde cada indivíduo pode alocar no máximo 10% de seu patrimônio (descontados os ativos imobilizados) nessa modalidade.

A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que regula as operações do mercado de capitais brasileiro, participou ativamente da configuração da operação da Broota e também do modelo proposto pela Eusocio. Para viabilizar o modelo de equity crowdfunding no Brasil, foi preciso fazer algumas adaptações importantes. A mais fundamental delas se refere ao modo de participação dos investidores no capital da investida. Como as micro e pequenas empresas nacionais ainda são exclusivamente sociedades limitadas, não era possível incorporar o modelo de distribuição de ações para o equity crowdfunding.

“O caminho do mercado de capitais não é tão óbvio para essas empresas”, diz Eduardo Avila de Castro, sócio da área de bancos, seguradoras e mercado financeiro do escritório Machado Meyer Sendacz & Opice, que estruturou a operação da Broota. “Há um descompasso entre a legislação aplicável às PMEs e a de mercado de capitais. Uma não foi feita para conversar com a outra.” Castro se refere especialmente ao fato de micro e pequenas empresas não poderem, por lei, ter outra pessoa jurídica acima ou abaixo delas na estrutura societária, e também ao impedimento de que as pessoas físicas que são sócias de uma pequena ou média empresa também sejam titulares de outras empresas do mesmo porte.

Uma saída simples seria utilizar como contrapartida as notas promissórias, mas o veículo tem uma característica altamente incompatível com a principal necessidade de uma startup: prazo. Para uma sociedade limitada, o vencimento máximo de uma promissória é de seis meses, período curto demais para que uma empresa nascente consiga parar de pé. A solução encontrada foi um título híbrido. Chamado de “título de dívida conversível” é, na verdade, um título de dívida comum que, além da taxa de juros, permite que o investidor o transforme em ações na data do vencimento (no caso, de cinco anos) ou se, antes deste, a empresa vender o seu controle ou fizer um IPO. A Eusocio adotou um contrato de opções que implica prazos mais longos de saída do investimento: quando a startup for transformada em sociedade anônima, o investidor pode exercer sua opção e adquirir ações da empresa – ou desistir delas.

Mão dupla

Entendendo que o equity crowdfunding é um instrumento fundamental ao fomento das micro e pequenas empresas, que respondem por 97% do total de pessoas jurídicas estabelecidas no país, a Fecomercio liderou a criação de uma associação para a modalidade. Estabelecida em agosto deste ano, a Equity reúne as plataformas de investimento coletivo, aceleradoras e incubadoras de startups e é presidida pela própria Fecomercio. A intenção é estudar mecanismos de autorregulação para permitir que as operações evoluam, adequando-se às demandas tanto de investidores quanto de empresas em estágio inicial, mantendo os riscos sob controle.

Walter Pellecchia, do Machado Meyer, que também trabalhou na montagem da operação da Broota, ressalta a preocupação com a qualidade da informação passada ao investidor, especialmente no que diz respeito a adverti-lo sobre os riscos desse tipo de operação e o papel cooperativo da CVM nesse sentido. “Temos um apoio muito grande do regulador, que está empenhado em conhecer e supervisionar a atividade, sempre em conjunto com as plataformas.” Essa colaboração teve nos mercados mais maduros um papel importante, que pode ser resumido pela imagem do efeito manada. Investidores experientes, de grandes fundos, passaram a se valer da sabedoria das “multidões” para orientar novos investimentos. Empresas que se viabilizaram por plataformas online costumam ter maior facilidade de captar novos recursos no mercado.

E a criatividade das plataformas para estruturar novas modalidades não se limita à internet. Este ano, a inglesa Crowdcube ajudou a montar uma operação sui generis para a rede de comida mexicana Chilango, os “burrito bonds”. Oferecidos no caixa da loja, os títulos com prazo de quatro anos custam 500 libras esterlinas e pagam taxas de juros de 8% ao ano. A meta inicial foi batida em 80%, e o total captado já é de 1,8 milhão de libras esterlinas. 

Fonte: Época Negócios