Há pouco menos de um ano, era grande a expectativa na Comissão de Valores Mobiliários (CVM) em torno da tramitação da MP 784, que tratava, entre outros assuntos, da ampliação e do reforço dos instrumentos de investigação e punição de irregularidades à sua disposição — e também do Banco Central (BC). O texto previa a permissão para que esses órgãos fechassem acordos de leniência capazes de elucidar e desarmar condutas flagrantemente prejudiciais aos mercados e à sociedade. Em 19 de outubro, a MP 784 caducou — não foi apreciada a tempo pelo Congresso Nacional. Mas a possibilidade de CVM e BC firmarem acordos de leniência com pessoas físicas ou jurídicas não expirou com ela: foi transportada para o PLC 129/17, transformado, em novembro do ano passado, na Lei 13.506. O problema é que esse diploma mingou a atratividade dos acordos. Contrariando o que se esperava, esses instrumentos não preveem imunidade na esfera criminal para os envolvidos que confessarem crimes, condição que os incentivaria sobremaneira a cooperar, como ocorre no caso das investigações antitruste. Diante disso, são grandes as dúvidas dos participantes do mercado em relação ao potencial de uso desse instrumento, que a legislação batizou de “acordo administrativo em processo de supervisão” e informalmente ficou conhecido como acordo de leniência.

O contexto pouco favorável da tramitação explica a ausência de imunidade criminal. Em pleno curso de operações como a Lava Jato seria difícil justificar o compartilhamento dos poderes do Ministério Público (hoje o responsável pelas denúncias relacionadas a crimes contra o sistema financeiro) com a CVM e o BC. Assim, o texto final da Lei 13.506/17 ficou aquém das expectativas do mercado. “Como diz uma frase famosa do economista Roberto Campos [1917-2001], ‘o Brasil nunca perde uma oportunidade de perder uma oportunidade’. O ideal seria que a lei já viesse sem erros no começo, porque uma negociação para alteração no Congresso pode ser muito longa e desgastante”, comenta Vinicius Marques de Carvalho, sócio do escritório VMCA Advogados e ex-presidente do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Ele lembra que, apesar de o órgão reconhecidamente ter experiências positivas com acordos de leniência na área concorrencial, sequer foi chamado a contribuir com a elaboração da MP 784 (assim como também aconteceu nas discussões da Lei Anticorrupção, de 2013).

Ainda no fim do ano passado, o BC divulgou uma regulamentação da Lei 13.506 — a Circular 3.857/17. A agilidade na apresentação da norma infralegal é justificável: as mudanças determinadas pela nova lei são muito maiores para o regulador do sistema financeiro do que para a CVM. Mas isso não quer dizer que o xerife do mercado de capitais não esteja fazendo a lição de casa. De acordo com o diretor da CVM Henrique Machado, já está na agenda a regulamentação da lei no que tange à autarquia, inclusive com a submissão a uma audiência pública — por ora, sem data marcada — de uma minuta das regras que normatizarão instrumentos como o acordo de leniência.

“Não temos pressa. A intenção da CVM é chegar a uma norma ampla e robusta, que não precise de muitos ajustes ao longo do tempo”, diz Machado, destacando que a autarquia conta com o privilégio de poder também se orientar pela própria regulamentação da autoridade monetária e pela larga experiência do Cade na negociação e na assinatura de acordos de leniência. O diretor não antecipa pontos que devem ser incluídos na minuta, mas sinaliza a possibilidade de a CVM montar uma área específica para recepção de documentos e negociação das propostas de acordos de leniência. Com a estrutura atual da autarquia, um proponente precisaria procurar a área responsável pela fiscalização da irregularidade ou crime — e talvez isso não seja o mais adequado, antecipa Machado.

Possíveis usos

Sem a previsão de imunidade criminal, a Lei 13.506/07 enfraqueceu a nova artilharia da CVM, admite Machado. Sem esse “prêmio”, uma pessoa física envolvida num crime contra o mercado de capitais tem pouca (ou nenhuma) razão para procurar a CVM para fechar um acordo de leniência que o livrará apenas das sanções administrativas, ainda mais considerando que a autarquia tem a obrigação legal de comunicar ao Ministério Público sobre os crimes praticados por seus regulados. Mas isso, observa o diretor, não significa que a autarquia não possa extrair benefícios de sua nova prerrogativa. É possível, por exemplo, que alguém que tenha cometido um crime contra o mercado de capitais que já esteja negociando acordo de colaboração com o Ministério Público procure a CVM para igualmente fechar um acordo de leniência — assim, estaria garantindo “recompensas” nas esferas criminal e administrativa. “Esperamos que alguns casos de proposta de acordo administrativo em processo de supervisão cheguem à CVM pela via do Ministério Público”, comenta Machado. Vale destacar que a Lei 13.506/07 passou a classificar como ilegalidade passível de pena de prisão, por exemplo, o insider trading secundário (que se caracteriza pela utilização de informação privilegiada para obtenção de ganhos no mercado por pessoa que não tenha dever de sigilo), além de ter aumentado em um terço a pena para o insider trading primário (que abarca os participantes do mercado com deveres de diligência).

É no âmbito administrativo que a CVM pode colher bons resultados para o mercado e a sociedade com os novos instrumentos legais de que dispõe, avalia Machado. Ele dá um exemplo prático. Imagine-se a situação de um conselho de administração de uma companhia aberta que tenha aprovado demonstrações financeiras mesmo diante de evidências de irregularidades. Se a CVM eventualmente instaurasse para o caso um processo sancionador, nele arrolaria todos os conselheiros — mesmo os que tenham sido contra a aprovação. Antes da instituição do acordo de leniência, esse conselheiro com opinião divergente não teria incentivo suficiente para denunciar a situação e enfrentar o desgaste de se defender individualmente, o que agora fica mais fácil com o novo instrumento. Em outras palavras: o acordo de leniência pode permitir a quebra de elos nos casos de ilícitos coletivos, que, segundo o diretor, são bastante representativos quantitativamente nos processos da autarquia. A mesma lógica vale para situações como as de atuação de conselhos fiscais, de assédio moral de controladores sobre conselheiros e de administradores sobre diretores de relações com investidores.

Ainda na esfera administrativa, a lei garante à CVM a possibilidade de, como punição, proibir uma empresa infratora de contratar operações com instituições financeiras oficiais e de participar de licitações públicas por até cinco anos. “Esse é um ponto da nova lei que passou meio despercebido, mas que pode ser de muita relevância para empresas que dependam de licitações”, sublinha Alexei Bonamin, sócio das áreas de mercado de capitais e de enforcement financeiro do escritório TozziniFreire. “Esse tipo de punição pode até inviabilizar negócios, nos casos em que as licitações forem muito importantes para a empresa.” Diante disso, essa previsão legal pode, mesmo que no âmbito administrativo, ser um atrativo para pessoas jurídicas procurarem por acordos de leniência na CVM em algumas situações específicas.

Leniência versus termo

Uma questão que deve surgir durante a audiência pública da regulamentação na CVM é bastante simples: por que alguém (ou alguma empresa) escolheria o novo acordo de leniência em vez de recorrer ao já tradicional termo de compromisso? “É preciso lembrar que o termo de compromisso já é um instrumento consolidado no mercado de capitais e que oferece segurança”, pontua Daniella Fragoso, sócia do BMA. Os dois são ferramentas consensuais, mas têm características diferentes, e que devem ser avaliadas pelos proponentes, como numa análise de riscos. Em primeiro lugar, o termo de compromisso não implica confissão do ilícito, envolve apenas cessação da conduta irregular e pagamento de multa. Outra característica é que ele é público — isso significa que o proponente deve avaliar o nada desprezível risco de reputação a que vai se submeter. De forma diversa, o acordo de leniência tem seus termos protegidos por sigilo; em contrapartida, a confissão do ilícito é obrigatória (lembrando ainda que as informações podem a qualquer tempo chegar ao Ministério Público).

Thiago Spercel, sócio do Machado meyer Advogados, reforça que a Lei Complementar 105, sobre sigilo bancário, obriga a CVM e o BC a reportarem indícios de crimes ou violações cometidas por instituições financeiras objeto de procedimento administrativo em suas instâncias para outras autoridades. “A dúvida, diante disso, é como o sigilo do acordo de leniência se casa com a obrigação da Lei Complementar 105, que é até maior [em termos hierárquicos] que a Lei 13.506”, questiona Spercel. “Essas incertezas contribuem para a diminuição da atratividade dos acordos.”

A Lei 13.506 estabelece que, se aprovado por instância colegiada do respectivo órgão competente, o acordo administrativo em processo de supervisão para o primeiro leniente (aquele que apresentar um crime ou irregularidade que não era de conhecimento da autoridade a que se dirige) envolve extinção da ação punitiva ou redução de um terço a dois terços da penalidade aplicável, “mediante efetiva, plena e permanente cooperação para apuração dos fatos”. Para o segundo leniente, a recompensa fica restrita à diminuição da penalidade em um terço. Caso o acordo seja efetivamente celebrado, pode ter suas linhas gerais divulgadas (a regra de sigilo permanece para o histórico de conduta).

Sendo praticamente consenso que a estrutura de incentivos à proposição de acordos de leniência na CVM já nasceu legalmente carente, Carvalho, do VMCA, diz que ampliação e o fortalecimento da capacidade de investigação da autarquia podem ser um caminho para a equalização desse problema — uma segunda saída seria a alteração legislativa, evidentemente improvável. Segundo ele, quando um infrator tem a sensação de que pode ser pego a qualquer momento por uma estrutura ampla de fiscalização e investigação acaba ficando com medo de “não ser o primeiro leniente” e de perder as vantagens maiores destinadas a quem primeiro comunica um ilícito às autoridades. “A estrutura de incentivos à leniência no Cade já é boa há muito tempo, mas só começou a funcionar mesmo quando o órgão deixou de julgar dois casos por ano para julgar 30”, acrescenta Carvalho. Assim, na falta de uma lei que incentive os acordos, uma possível solução parece ser a CVM turbinar seu poder de escarafunchar irregularidades.

Capital Aberto
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