Voto de qualidade aumentou de 7,3% para 8,5% das decisões do tribunal, em maior parte favoráveis à Receita
O instrumento dos recursos repetitivos não só ganhou força no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) em 2017, como também contribuiu para aumentar a discrepância entre vitórias da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) e dos contribuintes no tribunal. Desconsiderando os julgamentos em que a mesma decisão é aplicada em bloco para casos semelhantes, sobram 4.840 acórdãos proferidos no primeiro semestre do ano passado. Desse número, 50,5% favoreceram a Fazenda e 49,5%, o contribuinte. Isolando as 2.721 decisões em repetitivo no mesmo período, a proporção muda drasticamente em favor da Receita Federal, que restou vitoriosa em 81,9% das decisões, contra 18,1% para os contribuintes. Nos dez primeiros meses de 2017, o tribunal julgou o destino de R$ 360 bilhões em crédito tributário. Além disso, o número de processos resolvidos por meio da sistemática dos julgamentos em bloco (2.721) representou quase 36% do total de 7.561 decisões proferidas pelo tribunal administrativo de janeiro a junho do ano passado. Em números absolutos, o volume de repetitivos mais que dobrou em relação aos doze meses de 2016, quando o tribunal aplicou entendimentos consolidados a 1.090 casos de uma só vez. Naquele ano, os repetitivos representaram cerca de 13,9% do total de decisões. Os dados fazem parte de um levantamento preliminar organizado pelo Carf sobre as decisões proferidas em 2017, obtido com exclusividade pelo JOTA. O tribunal deve publicar o relatório anual completo ainda este ano. O Carf não divulgou a proporção de vitórias entre Fazenda e contribuinte no conjunto total de 7.561 decisões proferidas de janeiro a junho de 2017. O Ministério da Fazenda argumentou que o número representaria de forma distorcida a atividade do tribunal. “Uma vez que o repetitivo, julgado uma única vez, por um único colegiado, representa uma só decisão”, lê-se em nota enviada ao JOTA. Professor de pós-graduação em Direito Tributário da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (FGV), o advogado Breno Vasconcelos discorda da metodologia defendida pelo Carf. Segundo o professor, a distorção estatística é causada justamente pela eliminação dos julgamentos em repetitivo. “São todos julgamentos proferidos pelo mesmo tribunal. Qual é a diferença desses acórdãos julgados em bloco para os demais [não repetitivos]? É uma forma de na marreta você aumentar a impressão de que há um equilíbrio nos julgamentos”, criticou. A partir das porcentagens de vitória nos 4.840 acórdãos e nos 2.721 repetitivos, Vasconcelos calculou que, do total de 7.561 decisões, apenas 38% favoreceram o contribuinte e 62% beneficiaram a PGFN. Em 2016, para o total de 7.821 acórdãos julgados, os percentuais divulgados pelo tribunal foram de 52,4% a favor do contribuinte e 47,6% favoráveis à Fazenda. Um exemplo de repetitivo aplicado favoravelmente à Fazenda Nacional é um caso envolvendo a ESPN do Brasil Eventos Esportivos, julgado em outubro de 2017 pela 2ª Turma da 3ª Câmara da 3ª Seção. Devido a um erro cometido pela empresa no Documento de Arrecadação de Receitas Federais (Darf), a turma manteve uma multa de mora por atraso no pagamento de PIS e Cofins. A companhia apurou corretamente os tributos devidos tanto no regime não cumulativo quanto no cumulativo, mas identificou o valor total no código do cumulativo. Assim, pagou o tributo neste regime e deixou de recolher no outro. Quando percebeu o erro, a ESPN fez uma compensação, já que não podia retificar o Darf. Entre a data do erro e da compensação, a Receita Federal aplicou a multa de mora, mantida pela turma. O resultado do julgamento foi aplicado a outros 53 processos sobre o mesmo tema. Um advogado tributarista que preferiu não se identificar afirmou ao JOTA que o Carf define as teses em repetitivo predominantemente quando a interpretação favorece a Receita Federal. “Temas que são de repetitivo a favor do contribuinte, não vemos. Ou o contribuinte não tem razão nenhuma e está litigando para não pagar, ou o Carf tem aplicado a jurisprudência de repetitivos de maneira parcial, o que é grave”, disse. Segundo ele, consequência disso seria a judicialização de questões que poderiam ser resolvidas na esfera administrativa. Como o Carf resistiria em reconhecer o direito do contribuinte mesmo com jurisprudência favorável, as empresas acabam recorrendo ao Judiciário. Como exemplo, o advogado citou o tema da concomitância na aplicação da multa isolada e de ofício. Ele afirma que, nesses casos, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem afastado a multa isolada, por ser vedada a dupla penalização para um único fato gerador. Porém, segundo ele, a Câmara Superior tem decidido a questão pelo voto de qualidade a favor da Receita Federal. “Aí o contribuinte precisa pegar esses temas e levar para a Justiça, o que onera o país como um todo. Quando se discutem teses jurídicas, o Carf não está sendo um filtro para o Judiciário, mas apenas um tribunal de passagem”, afirmou. Voto de qualidadeDe acordo com o levantamento preliminar do Carf, 8,5% das decisões proferidas pelo tribunal no primeiro semestre de 2017 resultaram de voto de qualidade. O percentual era de 7,3% no ano anterior. Segundo pesquisa da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), o número era de 4,85% em 2014. Não houve estatística publicada em 2015 devido à deflagração da operação Zelotes, que investiga irregularidades no tribunal administrativo.
O Carf ainda esclareceu que, em sua maioria, as decisões por voto de qualidade no primeiro semestre de 2017 favoreceram a Fazenda. Além disso, o instrumento teve participação mais relevante na Câmara Superior. No relatório preliminar, o tribunal não detalhou essas informações quantitativamente.
Quando há empate entre os oito julgadores das turmas do Carf, o voto do presidente do colegiado, representante da Fazenda, resolve a questão. A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) questionou o voto de qualidade no Supremo Tribunal Federal (STF), na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5.731, de 2017. A OAB argumenta que, quando há dúvida, as turmas deveriam priorizar o contribuinte. Sob a relatoria do ministro Gilmar Mendes, a Corte ainda não se manifestou sobre a matéria. O Ministério da Fazenda argumentou que a participação do voto de qualidade em 2017 se manteve em patamares históricos. Além disso, o órgão lembrou que 91,5% das disputas são decididas por unanimidade ou maioria. “A prevalência do voto por unanimidade e por maioria evidencia a absoluta convergência de entendimento entre os conselheiros na expressiva maioria dos casos julgados”, afirmou o texto. O professor e advogado Breno Vasconcelos afirmou que há claro aumento do voto de qualidade nas decisões do tribunal administrativo. Segundo Vasconcelos, o salto de 4,85% para 8,5% em três anos é relevante, ao contrário do que afirma a Fazenda. Além disso, de acordo com o professor, a predominância do voto de qualidade na Câmara Superior revela uma disfunção no papel da última instância do Carf como uniformizadora da jurisprudência. Como o instrumento é usado para desempatar interpretações divergentes no mérito, o percentual de 8,5% mostra que, mesmo ao final do processo administrativo, ainda restam dúvidas quanto às disputas tributárias. “O tribunal não está cumprindo seu papel de conferir liquidez e certeza para o crédito tributário”, afirmou. As decisões por unanimidade, quando há acordo entre todos os conselheiros, corresponderam a 65,4% do total. Já as decisões por maioria, quando a maior parte dos julgadores entra em acordo, representaram 26,1%. Sem detalhar a quantidade, o Carf afirmou que a maior parte das decisões por unanimidade e por maioria favoreceu o contribuinte. O advogado Douglas Odorizzi, sócio do escritório Dias de Souza Advocacia, considera relevante o aumento no voto de qualidade porque o instrumento acaba decidindo as questões tributárias mais importantes no Carf. “Apesar de ser um número pequeno perto do total, vemos muito mais voto de qualidade na Câmara Superior, que define as teses do tribunal”, argumentou. Sócio da área tributária do escritório Machado Meyer, o advogado Daniel Peixoto argumenta que o tribunal deveria fornecer dados mais completos sobre o instrumento. Segundo Peixoto, é necessário saber quantos processos foram julgados por voto de qualidade, em quantos casos foi favorecida a Fazenda Nacional e quais são os valores de crédito tributário envolvidos nessas disputas. “Percebemos que os temas emblemáticos do Carf, que movimentam os maiores valores, estão sendo decididos por voto de qualidade na Câmara Superior”, afirmou. Entre os assuntos mais polêmicos e com maiores valores em disputa, Peixoto citou casos de ágio e empresa veículo, preços de transferência e tributação de lucros no exterior. “O valor em disputa [em relação a esses três temas] deve ser bem maior que o de todos os outros casos somados, e tudo foi vitória do Fisco por voto de qualidade”, complementou Odorizzi. “Favorável” ao contribuinteO Ministério da Fazenda esclareceu que a metodologia empregada no relatório preliminar a fim de atribuir a vitória ao contribuinte ou à PGFN leva em consideração apenas quem é o recorrente, independentemente dos valores envolvidos na disputa. A parte é considerada vencedora caso obtenha provimento total ou parcial de seu recurso. “Se o recorrente atinge êxito em seu recurso, no todo ou em parte, considera-se que a decisão lhe foi favorável”, lê-se na nota enviada ao JOTA.
Sócio da área tributária do escritório Machado Meyer, o advogado Daniel Peixoto elogiou o esforço do tribunal administrativo em aumentar a transparência do seu trabalho. Porém, questionou o método empregado para atribuir vitória à Fazenda ou às empresas. “Esse número sozinho diz muito pouco, porque ele não mostra a relevância desses processos e os valores em jogo. Os grandes volumes, as matérias mais relevantes estão sendo discutidas em um número muito pequeno de processos. Estamos falando de cerca de 4% de processos que representam 89% do crédito tributário”, afirmou. Sócio do escritório Mattos Filho, o advogado João Marcos Colussi considera o critério adotado no relatório preliminar pouco representativo do que seria uma vitória para o contribuinte. Segundo Colussi, os dados não refletem o dia-a-dia de julgamentos do tribunal. O advogado afirma que a contabilização foi feita “de modo a ‘achar’ uma vantagem numérica em favor dos contribuintes que não condiz com os fatos.” Nesse sentido, como as decisões definitivas ocorrem na Câmara Superior, um dado mais relevante para análise seria a proporção de derrotas para o contribuinte nesse colegiado. Professor da FGV, Vasconcelos também discorda da metodologia do relatório. Ele exemplifica com uma disputa hipotética relativa a R$ 300 milhões em crédito tributário, em que o colegiado julga decaído o direito de a Receita Federal cobrar R$ 4 milhões desse total, mas mantém a cobrança dos R$ 296 milhões restantes. “Essa deve ser considerada uma decisão favorável ao contribuinte? Será que não teríamos que considerar também o valor do crédito tributário reduzido?”, argumentou. Peixoto ainda lembrou que muitos casos envolvem matérias diferentes e obtêm resultados diversos no julgamento. “Vemos muitas situações híbridas, em que tenho uma matéria muito importante julgada por voto de qualidade, e uma matéria secundária por maioria. Por exemplo, um caso de ágio que envolve juros sobre multa. Tenho dúvidas sobre como isso está refletido no relatório”, ponderou. Jota-BRhttps://www.jota.info/tributos-e-empresas/tributario/mais-favoraveis-fazenda-decisoes-em-repetitivo-ganham-peso-no-carf-26012018
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