Uma análise da Lei nº 14.112/2020
No dia 24 de dezembro foi sancionada pelo Presidente da República e publicada no Diário Oficial a Lei nº 14.112/2020, que altera a Lei de Recuperação de Empresas e Falências (Lei nº 11.101/2005, a LRF), trazendo importantes inovações aos processos de recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falências.
Dentre as inovações trazidas, destaca-se a ampliação dos meios de recuperação previstos no artigo 50 da LRF para prever a possibilidade de venda integral da empresa devedora no âmbito do processo de recuperação judicial, sem assunção de dívidas ou sucessão nas obrigações pelo adquirente, desde que garantidas aos credores extraconcursais não aderentes condições no mínimo equivalentes as que teriam em caso de falência.
Vale lembrar que a versão original da LRF permite na recuperação judicial apenas a venda blindada de filiais ou de unidades produtivas isoladas na recuperação judicial, deixando a venda integral da empresa reservada ao processo falimentar.
Tal inovação é, a nosso ver, um importante avanço legislativo e está em linha com os propósitos da LRF de preservação da empresa, entendida como um complexo de bens destinado ao exercício de uma atividade empresarial, independentemente do empresário que a conduz.
De fato, não raras vezes a quebra de confiança nos controladores e administradores que estiveram à frente dos negócios é vista como parte do problema que levou a empresa à situação de crise e a transferência da empresa a um terceiro – que poderá promover uma gestão mais eficiente, ou que tenha capacidade financeira para injetar os recursos necessários para reestruturar a operação – mostra-se a única solução para viabilizar a manutenção da empresa e a preservação do going concern value.
Ademais, em muitas das recuperações judiciais no Brasil, o negócio em crise envolve tão somente um estabelecimento, de modo que não há outros estabelecimentos ou uma filial a ser vendida que poderia gerar recursos para empresa em crise reforçar seu caixa e/ou pagar seus credores.
A LRF passa também a proteger o adquirente de boa-fé contra a invalidade ou ineficácia da venda, desde que realizada mediante autorização judicial ou prevista no plano aprovado. Da mesma forma, em caso de identificação do esvaziamento patrimonial em prejuízo de credores não sujeitos à recuperação judicial, a venda não poderá ser invalidada e o juiz determinará o bloqueio do produto da venda e a devolução dos valores já distribuídos, os quais ficarão à disposição do juízo.
Confere, portanto, maior segurança jurídica a terceiros interessados na aquisição de ativos e da própria sociedade devedora, com potencial de se tornar uma alternativa efetiva para viabilizar a recuperação da empresa, em linha com o que ocorre em outros países, a exemplo das vendas realizadas em processos de Chapter 11 nos Estados Unidos por meio da section 363 do Bankruptcy Code.
Contudo, alguns desafios são postos.
A comprovação de que a venda da empresa garante aos credores não submetidos à recuperação judicial condições no mínimo equivalentes àquelas que teriam na falência traz desafios relevantes. Assemelha-se ao best interest of creditors test existente no direito norte-americano, segundo o qual exige-se que credores que não tenham aprovado o plano de reorganização em determinada classe recebam em condições no mínimo equivalentes às que teriam em caso de uma liquidação no âmbito do Chapter 7 do Bankruptcy Code.
A elaboração de uma análise de liquidação (liquidation analysis) é novidade no nosso ordenamento jurídico e pode ser custosa e litigiosa, trazendo complicações e atrasos ao processo de venda. Divergências quanto ao valor a ser obtido nos dois cenários provavelmente seriam submetidas ao judiciário, que não possui expertise financeira necessária para realizar essa avaliação, além de se esbarrar na polêmica análise da viabilidade econômica pelo judiciário.
Acrescenta-se ainda que a análise de liquidação deverá levar em consideração a ordem de prioridade de pagamento dos credores na falência, estabelecida no artigo 83 da LRF e segundo a qual o Fisco deve receber integralmente seu crédito antes que qualquer pagamento seja feito aos credores quirografários. Levando-se em consideração o perfil de endividamento das empresas brasileiras, em que a dívida fiscal assume papel relevante, comportar o pagamento integral do Fisco para que os quirografários possam se apropriar de algum valor será uma tarefa desafiadora.
Esta tarefa ficará ainda mais difícil quando estivermos diante da crise do produtor rural, em que, de forma assistemática, as alterações à LRF previram que certos créditos não estão sujeitos ao processo de recuperação judicial (por exemplo, recursos controlados previstos na Lei 4.829/65 e dívidas constituídas nos três anos anteriores ao pedido de recuperação relacionadas à aquisição de propriedade rural), sem dar a mesma preferência em um cenário de quebra.
Vale lembrar que a venda integral da devedora em forma de UPI deverá constar do plano de recuperação, a ser aprovado pelos credores sujeitos ao processo.
Sendo assim, quais seriam os incentivos dos credores quirografários em aprovar a venda da devedora nas situações em que quase nada receberiam, em razão do alto nível de endividamento fiscal?
Sem dúvidas, a venda integral da empresa como going concern e sem sucessão parece uma alternativa atraente, tanto para investidores quanto para os credores. O pagamento do valor justo de mercado soluciona o problema de iliquidez e garante o pagamento imediato dos credores com os recursos obtidos, evitando-se haircuts agressivos e longos prazos de pagamento típicos dos planos de recuperação. Contudo, o requisito imposto de que a venda da empresa garanta aos credores dissidentes ou não sujeitos condições no mínimo equivalentes àquelas que teriam na falência pode inviabilizar a venda de muitas devedoras mergulhadas em dívidas fiscais impagáveis.
Na nossa visão, a habilidade do juízo da recuperação administrar de forma eficiente o tratamento desses créditos não sujeitos determinará o sucesso dessa importante novidade legislativa.
JOTA - 20/01/2021