Por José Virgílio Lopes Enei e Antonio Paulo Kubli Vieira

Os projetos de infraestrutura desenvolvidos ao longo das duas últimas décadas no Brasil consolidaram a utilização da modalidade de financiamento internacionalmente conhecida como project finance ou financiamento de projetos.

Em financiamentos dessa natureza, o fluxo de caixa do empreendimento é a fonte primária de recursos para pagamento da dívida contraída e a análise dos riscos do financiamento é baseada, primordialmente, nos riscos do projeto em si e na capacidade dos empreendedores de implementá-lo. Nesse sentido, o sucesso do empreendimento é chave. Diferentemente das modalidades tradicionais de financiamento (também conhecidas como corporate finance), que dependem fundamentalmente de garantias pessoais ou corporativas lastreadas no patrimônio dos donos ou controladores do projeto (como o aval ou a fiança), nas operações realizadas sob a modalidade project finance, as principais garantias oferecidas aos financiadores são garantias reais (como o penhor, a hipoteca, a cessão fiduciária, a cessão condicional, entre outros) sobre as receitas operacionais, ativos do projeto e as ações ou quotas da sociedade responsável pelo projeto.

Além das garantias reais, diante da importância do sucesso do empreendimento para os financiadores, é bastante usual que a estes sejam outorgados certos direitos de ingerência nas atividades da sociedade responsável pelo projeto. Por exemplo, com o intuito de possibilitar o acompanhamento de aspectos financeiros da sociedade, é comum que se preveja a obrigação da empresa de disponibilizar periodicamente as suas demonstrações financeiras aos financiadores, cumulada com a obrigação de atender a determinados índices financeiros, especialmente aqueles relacionados ao endividamento e à capacidade de gerar caixa suficiente para pagamento do financiamento. Outro exemplo é o direito de veto. No âmbito do contrato de penhor ou alienação fiduciária de ações, é permitida a outorga aos financiadores de direitos de veto em certas deliberações da sociedade, o que pode constituir um importante instrumento de ingerência dos financiadores nas decisões mais relevantes da sociedade. Além de direitos de veto, os contratos de penhor ou alienação fiduciária de ações costumam contemplar outra poderosa forma de controle pelos financiadores: o step-in right ou direito de assunção do controle da sociedade financiada.

O step-in right é uma técnica contratual, oriunda dos países de origem anglo-saxônica, que possibilita a intervenção dos financiadores na sociedade financiada quando a atual gestão ameaçar o sucesso do projeto ou a sua capacidade de honrar o financiamento contratado.  A cláusula de step-in autoriza a assunção pelo financiador do controle direto da sociedade que se encontra em situação de inadimplemento no âmbito do contrato de financiamento. Por meio da assunção do controle, o financiador exercerá pessoalmente o direito de voto na assembléia geral da sociedade, em substituição ao acionista original, podendo, inclusive, destituir a administração empossada e eleger outros membros de sua confiança. O objetivo último do step-in é sanear o inadimplemento e/ou crise financeira incorrida pela sociedade, salvaguardando o crédito do financiador, ou mesmo preparando a sociedade para a sua venda em uma futura excussão das garantias. Por óbvio, o instrumento deve ser utilizado somente em situações extremas, de grave inadimplemento, tendo em vista a intensidade da medida e as responsabilidades que pode suscitar ao financiador.

Do ponto de vista contratual, o step-in costuma ser instrumentalizado mediante a outorga ao financiador do penhor sobre as ações da sociedade financiada, cumulado com o usufruto condicional sobre as mesmas ações empenhadas, a saber, um usufruto sujeito a condição suspensiva, que é justamente o inadimplemento da sociedade perante o financiador, seguido de uma notificação do financiador optando pela efetivação de tal mecanismo.

A adoção do step-in no Brasil não é livre de dúvidas, considerando que tal instituto foge à nossa tradição jurídica romano-germânica e que sua legalidade, além de não ter sido testada em nos nossos tribunais, pode ser questionada em vista da vedação ao pacto comissório - isto é, a proibição do financiador de ficar com o objeto da garantia, caso a dívida não seja paga no seu vencimento. Vale ressaltar que, no direito brasileiro, o credor deve, necessariamente, alienar o objeto da garantia - as ações da sociedade, por exemplo - a um terceiro e utilizar o produto dessa alienação na amortização dos valores devidos e não pagos no âmbito do financiamento, devolvendo o montante que porventura sobejar.

Para não incorrer na vedação ao pacto comissório, a assunção do controle direto sobre a sociedade, via exercício dos direitos políticos próprios da ação, deveria ser obtida temporariamente, com o intuito limitado de preparar a sociedade para a alienação de suas ações.  Além disso, caso o inadimplemento fosse regularizado durante a fase de exercício do step-in, incumbiria ao financiador devolver as ações ao acionista original, eis que não haveria fundamento para a excussão da garantia sem saldo devedor vencido e não pago que a justifique.  No entanto, é de se destacar que a lei não fixou um prazo máximo durante o qual o credor pignoratício pode manter a custódia do bem dado em garantia em preparação de sua excussão.

Não obstante o step-in right já existir no Brasil desde a década de 1990, o primeiro diploma legal a autorizar expressamente a sua utilização foi a Lei 11.079, de 30 de dezembro de 2004, Lei de Parcerias Público-Privadas (PPPs), em seu artigo 5º, §2º, inciso I. Tal dispositivo estabeleceu que os contratos de PPPs poderão prever os requisitos e condições em que o parceiro público autorizará a transferência do controle da sociedade de propósito específico para os seus financiadores, com o objetivo de promover a sua reestruturação financeira e assegurar a continuidade da prestação dos serviços, não se aplicando para este efeito o previsto no inciso I do parágrafo único do art. 27 da Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Trata-se de uma autorização legal para a inclusão, nos contratos de PPPs, da cláusula de step-in, permitindo ao financiador assumir o controle direto da sociedade em caso de crise financeira. Na mesma linha, a Lei 11.196, de 21 de novembro de 2005 - a Lei do Bem - alterou o artigo 27 da Lei 8.987, de 13 de fevereiro de 1995 - Lei de Concessões - para autorizar, expressamente, a possibilidade de previsão, no contrato de concessão de serviço público, das condições pelas quais será permitida a assunção provisória do controle da concessionária pelos financiadores.

Vale ressaltar que tanto a Lei de PPPs quanto a Lei de Concessões dispensaram o atendimento dos requisitos de capacidade técnica e idoneidade financeira pelos financiadores para exercício do step-in. Tais requisitos, em primeiro lugar, poderiam inviabilizar o exercício do direito de assunção de controle pelos financiadores, já que estes dificilmente teriam os atributos técnicos necessários à prestação do serviço e, por conta do perfil diferenciado de endividamento das instituições financeiras, poderiam não atender aos requisitos de idoneidade financeira exigidos originalmente da sociedade concessionária. Em segundo lugar, o não atendimento desses requisitos pelos financiadores em nada afetaria a qualidade da prestação dos serviços, já que, mediante o exercício do step-in, os financiadores assumem apenas o controle da sociedade concessionária, não a efetiva e direta prestação dos serviços. Pressupõe-se que a sociedade concessionária já possui, por si só, os bens, a tecnologia e os recursos humanos e financeiros necessários à adequada prestação do serviço, e, nesse sentido, a mudança do controle da sociedade não alteraria esse cenário.

Fora do contexto das PPPs e das concessões de serviços públicos, todavia, permanecem alguns dos problemas e dúvidas gerais relacionados à utilização do direito de step-in. As concessões do setor de petróleo e gás, por exemplo, possuem um regime jurídico próprio, não se aplicando a ele as regras sobre step-in ou transferência de controle aplicáveis às concessões comuns. A Lei 9.478, de 6 de agosto de 1997 - Lei do Petróleo -, em seu artigo 29, previu que a transferência do contrato de concessão dependerá da prévia e expressa autorização da Agência Nacional do Petróleo - ANP, sendo que o novo concessionário deverá atender aos requisitos técnicos, econômicos e jurídicos estabelecidos pela ANP. A Lei do Petróleo, todavia, não tratou especificamente do tema da transferência de controle da concessionária, tampouco da possibilidade de se outorgar o direito de assunção provisória do seu controle por um financiador. Nesse sentido, tendo em vista essas lacunas legais, o mais recomendável seria prever no contrato de penhor de ações (ou outro instrumento contratual que disciplinar o step-in) que a assunção do controle da concessionária do setor de petróleo pelo financiador dependerá da prévia aprovação da ANP. Permaneceria, entretanto, a incerteza sobre quais requisitos seriam estabelecidos pela ANP para aprovar o step-in, bem como se seria necessário o atendimento pelo financiador de requisitos de capacidade técnica ou idoneidade financeira (requisitos dispensados para os contratos de PPP e de concessão comum). 

Em suma, apesar de a criação de um marco regulatório para o exercício do direito de step-in ter representado um importante avanço para a sua utilização, o fato de a legislação sobre o tema se aplicar apenas aos contratos de PPP e aos contratos de concessão de serviços públicos faz com que permaneçam as antigas dúvidas e potenciais questionamentos referentes à utilização do step-in nos demais contextos. Nesse sentido, entendemos que a legislação brasileira ainda pode ser aperfeiçoada para enfrentar alguns dos problemas atinentes ao direito de step-in: a conciliação do exercício do step-in diante da vedação ao pacto comissório; os prazos e limites para a utilização desse mecanismo; a possibilidade de utilização do step-in em setores regulados, porém não sujeitos ao regime jurídico dos contratos de concessão de serviço público, entre outros.

(Revista TN Petróleo, edição nº 91, setembro/outubro de 2013)

(Notícia na Íntegra)