Por Renata Martins de Oliveira Amado, Carolina Mascarenhas e Nathalia Cristina Mello Vargas
Ao julgar o Recurso Especial nº 1.860.368, de relatoria da ministra Nancy Andrighi, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu que o crédito decorrente de fiança honrada em nome da recuperanda apenas se constitui com o efetivo adimplemento da obrigação afiançada. Assim, se o pagamento ocorreu após o ajuizamento do pedido de recuperação judicial, o crédito correspondente deverá ser considerado extraconcursal. A ministra relatora também destacou que o contrato de fiança não deve ser confundido com o crédito em si. Embora o negócio jurídico (a fiança) exista desde a celebração do contrato, o crédito somente surge com o efetivo desembolso dos valores pela parte garantidora ao credor original. Esse é, portanto, o momento relevante para fins de sujeição ou não ao processo de reestruturação, nos termos do art. 49 da Lei nº 11.101/05 (Lei de Recuperações Judiciais e Falências de Empresas - LRFE). Para reforçar esse posicionamento, a Terceira Turma do STJ propôs até mesmo um paralelo e uma diferenciação dos créditos decorrentes de indenizações por responsabilidade civil: enquanto nestes deve-se considerar a data do ilícito (a data do fato gerador, independentemente da data do trânsito em julgado), os créditos oriundos de contratos de fiança têm peculiaridades que devem obrigatoriamente ser observadas. A partir desse entendimento, o STJ negou a inclusão do Banco Pine na recuperação judicial do Grupo OAS, confirmando as decisões de primeira e segunda instâncias. No caso em discussão, o Banco Pine somente honrou o débito garantido pelos contratos de fiança após o ajuizamento da recuperação judicial. Desse modo, sua pretensão apenas teria surgido nessa data e seu crédito seria extraconcursal, conforme confirmado pelo STJ. Não obstante a importância dos argumentos dos ministros julgadores, o recente posicionamento adotado pela Corte Superior não está isento de críticas e tampouco representa posição pacífica na doutrina e na jurisprudência. Em sentido contrário ao defendido no julgamento do Recurso Especial nº 1.860.368, os tribunais do Rio de Janeiro e de São Paulo já asseveraram que, por expressa disposição dos artigos 349 e 831 do Código Civil, o pagamento realizado pelo fiador acarreta a sub-rogação legal nos direitos do credor originário, sem que haja extinção do dever de pagamento pelo devedor. Sendo assim, o fiador adquire todas as qualidades do credor original (o afiançado), inclusive eventuais privilégios. Acompanhando tal posicionamento, parte da doutrina também considera que a sub-rogação legal, operada pelo garantidor ao honrar a fiança, resulta na transferência de titularidade do crédito do credor originário, com todos os seus acessórios e características, não havendo o surgimento de nova obrigação e/ou novo crédito. Sob essa ótica, portanto, a data do efetivo desembolso de valores pelo fiador não seria relevante para determinar a sua sujeição ou não aos efeitos da recuperação judicial. O fator essencial seria a própria data do contrato de fiança, fato gerador relevante para todos os fins. Sobrepondo essas visões que poderão surtir efeitos diametralmente opostos, pondera-se que o tema não é pacífico e que o Recurso Especial nº 1.860.368 é um dos primeiros casos analisados pela Corte Superior, a despeito de a LRFE estar em vigor há cerca de 15 anos. Especialmente diante da possível eclosão de novas recuperações judiciais em razão da pandemia, é necessário definir e aprofundar a matéria o quanto antes para solidificar os institutos. Afinal, ao se estruturar uma operação de financiamento, por exemplo, é natural que o agente financiador queira ter a previsibilidade dos riscos envolvidos. A segurança quanto aos efeitos de um processo de recuperação judicial sobre a operação em questão é fator determinante na precificação e na escolha da garantia a ser outorga, observadas as circunstâncias do caso concreto. Assim, espera-se que haja um amadurecimento e uma uniformização da jurisprudência sobre o tratamento de obrigações afiançadas em processos de recuperações judiciais. O recomendável é que o STJ venha a analisar o tema sob a forma de repetitivo, autorizado pela sistemática processual atual.(JOTA - 16.08.2020)