Por Raphael Soré
No contexto das coisas tipicamente brasileiras, ao lado da saúva, do saci e da jabuticaba, há um fantasma jurídico: o da "Lei que não pega".
O fato de existir no Brasil uma sensação de que nem toda lei devidamente aprovada e sancionada será cumprida é de certa maneira justificado por nossos legisladores terem por vezes mais criatividade que bom senso. Essa sensação, contudo, cria também um problema jurídico-social de ceticismo e imobilismo perante as inovações legislativas.
Não é raro que indivíduos e empresas afetados por uma nova lei simplesmente deem de ombros à obrigação de se adequar a ela, como que esperando para ver se efetivamente ela terá consequência prática ou se será relegada ao esquecimento nas prateleiras empoeiradas das "leis que não pegaram".
Sancionada em 2013, a Lei Anticorrupção (nº 12.846), que prevê a punição às empresas que se envolvem em atos de corrupção e que recomenda a adoção dos chamados programas de compliance, completou há pouco cinco anos de vigência e também enfrenta a avaliação popular sobre se é ou não para valer.
Apesar de em seus primeiros quatro anos ter suscitado a abertura de 183 processos punitivos apenas em nível federal (punindo 30 empresas), existe certa desconfiança de empresários e juristas de que tais casos são apenas um efeito da "onda lava-jato", mas que, quando a operação acabar, a aplicação da lei acabaria mesmo morrendo na praia.
A desconfiança não é injustificada. A lei é muito abrangente, e suas sanções bastante gravosas. Sua aplicação é possível por quase todo órgão público, o que cria um caos procedimental; e seus acordos de leniência têm sofrido para encontrar segurança jurídica num cenário de conflito institucional entre diversas instâncias estatais.
Sendo assim, não é raro encontrar quem pense que a Lei Anticorrupção inaugura um novo personagem no imaginário pátrio: o da Lei que pega mais ou menos. Isso é, existe um sentimento - especialmente entre uma parcela do empresariado que não acompanha o dia a dia do assunto - de que a lei até é e será aplicada, mas que tal aplicação ficaria limitada a poucos e célebres casos, particularmente aos grandes escândalos de corrupção nos quais a punição da empresa pela Lei Anticorrupção entraria meio que a reboque de sanções penais a grandes executivos e políticos.
Se correta, tal impressão levaria à conclusão de que a lei falhou em seu objetivo maior: o de induzir que o próprio mercado, formado por empresas de todos os tamanhos, passe a valorizar a integridade corporativa, prevenindo atos de fraude e corrupção e se negando a fazer negócios com agentes econômicos de má reputação ética. Contudo, se equivocada, tal impressão é efetivamente perigosa para tais empresários, já que os coloca em imobilismo quando o contexto demanda adequação.
Uma observação dos dados sobre a aplicação de sanções da Lei Anticorrupção parece indicar a segunda alternativa. O Cadastro Nacional de Empresas Punidas da CGU indica que 80 empresas foram punidas pela lei, o que não parece tanto assim. Uma análise atenta dos dados, porém, revela que o governo federal, regionais e locais estão afiando seus dentes para maiores e mais frequentes mordidas, sendo que 50 (60% do total) das punições se deram em 2018 e 2019.
Além disso, os dados indicam que não é apenas o governo federal que quer fazer a Lei "pegar": 47 dos processos punitivos foram encabeçados por órgãos estaduais (com destaque para a Secretaria de Controle do Espirito Santo) ou municipais (com destaque para a Controladoria do Município de São Paulo), dando sinal de que de que os diversos entes da Administração Pública estão se equipando e capacitando para aplicar a lei.
Alguém poderia insistir, contudo, que isso é um efeito "Lava-Jato" e está restrito aos grandes escândalos e às grandes empresas. Ocorre, e talvez esse é o detalhe mais interessante da análise dos dados disponíveis, que enquanto os acordo de leniência efetivamente têm ficado restritos às grandes empresas envolvidas em megaoperações, a esmagadora maioria das punições da Lei Anticorrupção foi contra empresas limitadas ou individuais que nada têm a ver com as operações da Polícia Federal, jogando por terra o argumento de que a lei só tem dentes para casos televisivos.
Infelizmente não se pode prever o futuro, mas tudo isso indica que a Lei Anticorrupção deve ter aplicação crescente nos próximos anos e que novos procedimentos devem pipocar pelo país, sejam em grandes e graves casos de corrupção, seja no caso de fraudes em contratos e licitações que envolvam baixos valores e pequenas empresas.
A maioria dos agentes econômicos já compreendeu a mudança e adequou suas práticas e seus controles, sendo notável no mercado a existência de um novo momento. Contudo, ainda é necessário o despertar de uma camada relevante de empresários que, ao pensar estar diante do fenômeno da "lei que não pega", podem ignorar sinais e colocar carreiras e negócios em risco.
Raphael Soré é mestre em direito, ex- secretário-executivo do Conselho Nacional de Controle Interno (Conaci) e ex-presidente do Comitê de Transparência do Estado de São Paulo. Advogado sênior da área de Compliance e especialista em integridade corporativa do Machado Meyer Advogados.
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(Notícia na Íntegra)