Até agosto desse ano, o mercado brasileiro de imóveis rurais viveu um período de crescente valorização dos ativos, ingresso de novos investidores e realização de negócios de forma rotineira. Isso tudo impulsionado pelo aquecimento da economia brasileira, a retomada do apetite do mercado internacional por commodities – especialmente o chinês –, a disponibilidade de crédito e a chegada de uma nova onda de capital estrangeiro.

Esse panorama foi radicalmente alterado com a publicação, em 23/08, do Parecer nº 01/2008-RVJ, da Advocacia Geral da União (AGU). Em síntese, esse parecer alterou a interpretação anteriormente dada pelo Poder Executivo da Lei Federal nº 5.709/1971, que dispõe, dentre outros aspectos, sobre a aquisição de terras rurais por estrangeiros, sejam eles pessoas físicas ou jurídicas.

Esta lei estabelece que estrangeiros pessoas físicas, não residentes no Brasil, e jurídicas não autorizadas a funcionar no Brasil não podem adquirir imóveis rurais (restrição não aplicada à área urbana). Esse impedimento foi estendido, também, às pessoas jurídicas brasileiras “da qual participem, a qualquer título, pessoas estrangeiras físicas ou jurídicas que tenham a maioria do seu capital social e residam ou tenham sede no exterior”.
Parecer da AGU paralisa mercado rural de terras

MACHADO MEYER É O ESCRITÓRIO BRASILEIRO DO ANO

Carf confi ma isenção previdenciária de PLR segundo entendimento anterior da própria AGU, tal restrição teria deixado de vigorar com a alteração promovida na constituição de 1988 pela Emenda constitucional nº 06/1995 que passou a considerar brasileira toda a empresa constituída de acordo com o ordenamento jurídico nacional e desde que tenha sede e administração no país, independente da composição ou origem de seu capital social e de seus membros.

Ressalte-se que o motivo apresentado à época para tal alteração foi justamente a necessidade do país em promover a atração de capitais estrangeiros e promover uma maior abertura de mercado interno sendo assim, até a publicação do Parecer nº 01/2008-RVJ, prevalecia o entendimento de que empresas constituídas nos moldes descritos acima, ou seja, consideradas brasileiras, mesmo com participação estrangeira majoritária, poderiam adquirir terras rurais sem restrição (excetuando-se o caso de imóveis rurais em faixa de fronteira, cujo processo de compra obedece a rito próprio e autorizações específi cas).

Em seu novo parecer, a AGU sustenta que, com base no princípio da soberania nacional aplicado à ordem econômica, bem como em razão das mudanças ocorridas nos cenários econômico e social brasileiro, no aumento do valor dos produtos agrícolas, na crise mundial de alimentos e na possibilidade de adoção, em larga escala, do biocombustível, todos os limites e restrições contidos na Lei Federal nº 5.709/1971 e no decreto regulamentador devem ser re-estabelecidos desta forma, pelo Parecer da AGU, a equiparação da pessoa jurídica brasileira e pessoa jurídica estrangeira, para fi ns da Lei Federal nº 5.709/1971, ocorre nas hipóteses cumulativas: estrangeiro, pessoa física, não-residente, ou a pessoa jurídica que não possua sede no País; estrangeiro, pessoa física ou jurí- dica, descrito no item acima, participe, a qualquer título, de pessoa jurídica brasileira. Esses compradores fi cam sujeitos à autorização dos órgãos competentes (a começar pelo Incra).

Em linha com a posição da AGU, o conselho nacional de Justiça (cnJ) determinou que as serventias extrajudiciais notariais e registrárias observem rigorosamente as disposições da mencionada Lei Federal nº 5.709/1971, quando se apresentarem ou tiverem de lavrar atos de aquisição de terras rurais por empresas brasileiras com participação de estrangeiros. Embora não seja lei, o parecer da AGU vincula toda a Administração Pública Federal, direta e indireta, (Incra, Registros de Imóveis, tabelionatos de notas etc) mais do que alterar uma simples interpretação, o parecer da AGU gerou grande insegurança jurídica e criou dúvidas generalizadas sob como aplicar tal entendimento, o que praticamente paralisou o pujante mercado de terras rurais no Brasil. sem falar na concessão de créditos para a produção agrícola nacional, que será afetada no que se refere à constitui- ção de garantias reais imobiliárias, comprometendo, assim, o desenvolvimento do agronegócio no médio prazo.

Além de questionar a constitucionalidade de tal parecer, o que nos parece perfeitamente cabível, o investidor estrangeiro tem como alternativa o direito real de superfície que pode ser constituído tendo como objeto os imó- veis rurais e como fundamento o có- digo civil de 2002. Pelo direito real de superfície, o proprietário concede ao superfi ciário o direito de construir ou de plantar em seu imóvel, por tempo determinado, gratuita ou onerosamente, mediante escritura pública que é registrada na respectiva matrícula. Esse é um direito de natureza real e, como tal, goza de todas as prerrogativas atinentes a essa categoria, tais como seqüela, aderência, efi cácia erga omnes, publicidade e outras.

A Lei Paulista n.º 13.918/09 – exigência na barreira de Icms devido a outro estado

Recentemente, a ministra Ellen Gracie, do supremo tribunal Federal (stF), concedeu a um contribuinte liminar suspendendo a exigibilidade de crédito tributá- rio relacionado à guerra fi scal do Icms. nesse processo, minas Gerais procurava impedir a apropriação de créditos do Icms em operações interestaduais benefi ciadas, na origem, com crédito presumido do imposto concedido à revelia do conFAz (conselho nacional de Política Fazendária).

A ministra, sabiamente, fez constar dizeres do ministro sepúlveda Pertence ao mencionar que “inconstitucionalidades não se compensam”. Esta decisão veio nos lembrar de outras inconstitucionalidades que vem sendo cometidas pelos Estados da Federação, com o objetivo de combater os benefícios fi scais concedidos à revelia do conFAz. diversos Estados exigem do contribuinte estabelecido em seu território, que tenha recebido mercadoria benefi ciada em sua origem sem autorização do conFAz, o estorno dos créditos apropriados, acrescido de juros e penalidades. outros concedem aos contribuintes benefícios mais atrativos, para não saírem perdendo na guerra fi scal.

Em dezembro de 2009, porém, são Paulo inovou: foi publicada a Lei n.º 13.918, acrescentando à Lei nº 6.374/89 o artigo 60-A, o qual estabelece que “nas operações interestaduais destinadas a contribuinte paulista, benefi - ciadas ou incentivadas em desacordo com o disposto na alínea “g” do inciso XII do 2º do artigo 155 da constituição Federal, o Poder Executivo poderá exigir o recolhimento, no momento da entrada da mercadoria em território paulista, do imposto correspondente ao valor do benefício ou incentivo.” Veja-se que, por meio da publicação desta Lei, que fere de morte o princípio federativo e desrespeita a repartição dos tributos, pretende o Estado de são Paulo exigir, na barreira, o Icms que deixou de ser recolhido a outro Estado em virtude de benefício fi scal concedido à revelia do conFAz. no entanto, o valor do Icms que deixou de ser pago somente poderia ser exigido pelo Estado para o qual o tributo era devido inicialmente.

É patente que, com esta conduta, o Estado de são Paulo acaba por tentar fazer justamente o que foi condenado pela ministra Ellen Gracie: coibir uma inconstitucionalidade - a concessão de benefícios fi scais sem anuência do conFAz - por meio de outra inconstitucionalidade - a exigência de imposto que não lhe compete.

A atuação dos noteholders / bondholders na recuperação e na falência

A emissão de títulos no exterior, ou de papéis de dívida (os notes ou bonds), depositados e custodiados por instituições estrangeiras, tem sido uma importante ferramenta de captação pelas empresas brasileiras. Tais títulos são, normalmente, regulados por uma escritura de emissão (indenture), que estabelece os direitos e deveres dos titulares (os bondholders ou noteholders), emissores e garantidores dos títulos, bem como do agente fiduciário (trustee), que representa o conjunto de detentores dos títulos.

As escrituras de emissão podem ser mais ou menos detalhadas em relação às conseqüências da insolvência, falência, recuperação judicial ou recuperação extrajudicial da empresa emissora ou da sua garantidora, e são regidas por lei estrangeira. Assim como a crise econômica global colocou à prova a Nova Lei de Recuperação e Falência, passou a testar, também, a maneira como tais títulos impactam a reestruturação da empresa. Quando as empresas brasileiras têm dificuldades financeiras, a emissão de títulos externos pode aumentar a complexidade de eventual processo de falência ou recuperação, além de fazer surgir diversas questões jurisprudenciais inéditas.

O primeiro caso notório foi o da Parmalat. A empresa recuperanda havia emitido notes, que tinham como agente fiduciário o Deutsche Trustee Company Limited. Em primeira instância, foi negado ao agente fiduciário o direito de participar da Assembléia Geral de Credores (AGC) e de votar em nome dos titulares das notas. No entanto, a Câmara Reservada à Falência e Recuperação do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reconheceu o direito do agente fiduciário, como órgão representante dos detentores dos títulos, de participar, com voz e voto, da AGC.

Na recuperação judicial do Frigorífico Independência, por sua vez, houve decisão, em primeira instância, intimando o agente fiduciário, Bank of New York Mellon, a apresentar “todos os documentos comprobatórios de sua representação”, bem como “a relação pormenorizada de todos os efetivos e reais detentores das Notas (que sejam necessariamente os seus beneficiários finais), com os documentos que comprovam tal titularidade”, sob pena de perda do direito a participar e votar na AGC, com base na alegação de que era necessário verificar se os titulares das notas não possuíam relação com a recuperanda, passível de impossibilitar seu voto na Assembléia.

Por conta dessa decisão, alguns dos detentores de notas requereram a sua participação direta na AGC, mediante apresentação de comprovação da titularidade das notas, bem como de seus documentos societários. Esse pedido foi deferido pelo mesmo Juízo e os noteholders, organizados em grupo, puderam, efetivamente, participar das negociações do plano de recuperação judicial e da sua subseqüente aprovação pelas respectivas AGCs. Ademais, não se pode desprezar a possibilidade de que as instituições detentoras dos títulos se envolvam nas operações de novos financiamentos das empresas recuperandas, essenciais para o sucesso da sua estratégia de reestruturação.

Deve-se notar que a representação direta por parte dos detentores de títulos externos não é fenômeno exclusivo da recuperação e também ocorreu no processo de falência do Banco Santos. Como se verifica, a utilização de tais títulos pode ter conseqüências relevantes para procedimentos de recuperação ou falência das empresas brasileiras, e suscita novos desafios para o Judiciário e para a advocacia no Brasil.

Em especial, é importante que o estudo e a prática relacionados ao tema cuidem para que, de um lado, a escritura de emissão de títulos no exterior preveja, detalhadamente, as conseqüências de eventos de insolvência, bem como a forma de atuação do agente fiduciário nesses casos, e, de outro lado, seja reconhecida a eventual legitimidade da representação dos créditos decorrentes de títulos estrangeiros.