Por Gisela Ferreira Mation, Nathália Vargas e Thaís Harari.

Ao julgar a controvérsia nº 146 (RRC 146), no dia 28 de abril, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) afetou para julgamento, sob o rito dos recursos repetitivos, os recursos especiais 1843332/RS, 1842911/RS, 1843382/RS, 1840812/RS e 1840531/RS. Na ocasião, a Corte delimitou a seguinte tese controvertida: “definir o momento em que o crédito decorrente de fato ocorrido antes do pedido de recuperação judicial deve ser considerado existente para o fim de submissão a seus efeitos, a data do fato gerador ou do trânsito em julgado da sentença que o reconhece”. Foi determinada, ainda, a suspensão de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional, excetuada a concessão de tutelas provisórias de urgências.

A tese controvertida é relevantíssima pois definirá se, para se considerar um crédito como sujeito à recuperação judicial, importa a data da ocorrência do fato objeto da demanda judicial ou a data do trânsito em julgado da sentença indenizatória.

A sistemática de recursos repetitivos foi trazida pelo Novo Código de Processo Civil e está relacionada com a existência de múltiplos recursos fundamentados em idêntica questão de direito. Com isso, o STJ poderá selecionar um ou mais recursos representativos da controvérsia para julgamento. A decisão final será, então, aplicada aos demais casos que versarem sobre a mesma questão de direito, independentemente das partes envolvidas nos litígios. Trata-se de mecanismo processual que imprime maior celeridade e racionalidade ao julgamento das demandas, além de garantir tratamento isonômico aos jurisdicionados, já que aplica uma só solução a todos processos que tenham por objeto a mesma discussão legal. Esse é também o objetivo da Lei 11.101/05 (Lei de Falência e Recuperação Judicial – LFR), que tem por pilar o princípio da igualdade dos credores que estão na mesma situação jurídica.

No caso sob análise, todos os recursos especiais representativos da controvérsia para julgamento sob o rito dos repetitivos foram interpostos pela Oi S.A. – requerente de uma das maiores recuperações judiciais do país em termos de valor e número de credores. Tais recursos foram interpostos em face de acórdãos proferidos pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS), oriundos de demandas indenizatórias ajuizadas por consumidores. Em todos os casos, o TJ-RS entendeu pela extraconcursalidade dos créditos em discussão, em razão da ausência de sentença com trânsito em julgado quando do pedido de recuperação judicial. Ou seja, no entender da corte estadual, em virtude de não haver título executivo passível de cobrança quando do protocolo do pedido de recuperação judicial, os créditos objeto de discussão judicial não se sujeitariam aos efeitos da recuperação judicial.

Nos recursos afetados, a Oi questiona o entendimento adotado pelo TJ-RS, alegando, entre outras questões, violação ao artigo 49 da LFR, que dispõe estarem sujeitos ao processo de recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. A controvérsia surge justamente sobre o conceito de “crédito existente”. A discussão gira em torno da seguinte questão: para fins de análise da concursalidade de um crédito oriundo de demanda judicial, o marco temporal é a data do fato jurídico que gerou o crédito ou a data do trânsito em julgado da decisão que declarou a existência do crédito?

Ao se tratar do assunto da controvérsia, o STJ tem manifestado entendimento no sentido de que a submissão de determinado crédito aos efeitos da recuperação judicial não depende de provimento judicial anterior. Em decisão monocrática recente, proferida no âmbito do Recurso Especial nº 1.869.310,[1] o ministro Raul Araújo considerou que “a submissão de um determinado crédito à Recuperação Judicial não depende de provimento judicial anterior ou contemporâneo ao pedido, bastando que se refira a obrigações contraídas anteriormente ao pedido”. Especificamente no âmbito de ações indenizatórias, o STJ considerou que o dever jurídico de indenizar nasce com o evento danoso, como bem consignado pelo ministro Luis Felipe Salomão, no julgamento do Recurso Especial nº 1.447.981:[2] “com o ato ilícito surge o direito de crédito, cuja quantificação caberá às partes, em comum acordo, ou ao magistrado, por meio de ação indenizatória”. Assim, na medida em que o dever jurídico de indenizar nasce com o evento, “a consolidação do crédito (ainda que inexigível e ilíquido) não depende de provimento judicial que o declare e muito menos do transcurso de seu trânsito em julgado, para efeito de sua sujeição aos efeitos da recuperação judicial”, como consigna o ministro Marco Aurélio Bellizze, no julgamento do Recurso Especial nº 1.634.046.[3]

Contudo, a decisão do STJ de submeter a questão dos créditos oriundos de demandas judiciais à sistemática dos repetitivos colocará uma pá de cal na controvérsia existente nos tribunais do país, imprimindo maior segurança jurídica aos processos de recuperação judicial e garantindo igualdade de tratamento aos credores.

Além disso, ainda que a decisão sobre o tema afetado ao regime dos repetitivos incida sobre toda e qualquer controvérsia a respeito do assunto, não se pode ignorar que a questão é de relevância particular na recuperação judicial do Grupo Oi, que tem mais de 55 mil credores. Em relação a esse caso, foi criado até mesmo um programa de mediação para tentar solucionar de forma equânime o problema do passivo do grupo, considerando o número elevado de credores. O exemplo mostra que, a depender do resultado do julgamento do repetitivo, podem ser criadas situações injustas e desproporcionais entre os credores concursais.

Imagine-se, por exemplo, uma situação na qual se discute judicialmente as consequências de determinado descumprimento contratual – inclusive quanto ao direito à indenização. Se o descumprimento tiver se concretizado antes da apresentação do pedido de recuperação judicial, mas o trânsito em julgado da sentença reconhecendo o direito de quem teve a obrigação violada tiver ocorrido apenas depois, o crédito deverá ser considerado extraconcursal? Ou é possível considerá-lo “existente” quando do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, ainda que não exista decisão transitada em julgado reconhecendo a obrigação?

A título ilustrativo, imaginemos uma empresa que preste serviços aos consumidores em âmbito nacional e que, em um determinado momento, tenha passado a cobrar tarifas indevidas, dando aos consumidores o direito a receber os valores indevidamente cobrados. Inúmeros fatores podem contribuir para o prolongamento dos procedimentos judiciais – um tribunal estadual é mais célere que o outro, o procedimento está sujeito à interposição de recursos meramente protelatórios ou, ainda, a instrução probatória de um determinado caso é mais complexa que em outro. Fato é que pode existir uma situação em que dois consumidores tenham ajuizado ações indenizatórias simultaneamente, com mesmo pedido e causa, mas uma decisão transite em julgado muito antes da outra. Inclusive, entre um trânsito em julgado e outro, poderia ser deferido o processamento da recuperação judicial da empresa responsável pelo pagamento das indenizações e, portanto, devedora em ambos os casos.

Nesse caso hipotético e se adotado o entendimento de que o marco temporal é o trânsito em julgado da decisão, a despeito de ambos os consumidores possuírem créditos de mesma natureza (créditos quirografários) e de o fato gerador da indenização ter a mesma data, um dos credores estaria sujeito aos efeitos do plano de recuperação judicial e o outro não. Assim, um dos credores receberia seu crédito com deságio e em prazo prolongado de pagamento, enquanto o outro – indevidamente considerado extraconcursal – poderia exigir imediatamente os valores devidos pela empresa em recuperação judicial e solicitar medidas constritivas em relação ao patrimônio da companhia, o que certamente prejudicaria o andamento do procedimento como um todo e a reorganização da empresa.

Tal cenário cria distorções em relação aos credores que deveriam ser enquadrados na mesma classe e não foram. A jurisprudência consolidada sobre o assunto, por si só, já indica qual será o entendimento a ser adotado pelo STJ no julgamento do repetitivo. Ou seja, confia-se que será firmada a tese de que o marco temporal para efeitos de sujeição à recuperação judicial é a data da ocorrência do fato gerador da obrigação que gerou o crédito. Eventual entendimento diverso no julgamento do repetitivo iria contra não apenas o entendimento já consolidado, mas contra os preceitos estabelecidos pelo sistema recuperacional e pelo sistema civil.

De fato, nos parágrafos do artigo 6º da LFR, há determinação expressa no sentido de que “terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida” (§1º) e que o juiz competente “poderá determinar a reserva da importância que estimar devida na recuperação judicial ou na falência, e, uma vez reconhecido líquido o direito, será o crédito incluído na classe própria” (§3º). Ou seja, a LRF já cuida expressamente de casos que envolvam demandas ilíquidas e estabelece que os créditos deverão ser incluídos em suas respectivas classes, como créditos concursais, não fazendo qualquer ressalva quanto ao momento do trânsito em julgado da decisão.

Ainda que não seja uma hipótese aplicável propriamente a demandas ilíquidas, o artigo 9º da LRF estabelece que, entre outros requisitos, o credor deverá apresentar “os documentos comprobatórios do crédito e a indicação das demais provas a serem produzidas”, o que também evidencia que a lei não exige provimento judicial para que o crédito seja considerado existente na data do pedido de recuperação judicial. Basta que o credor apresente documentos suficientes para comprovar a existência de seu crédito.

Outro elemento a corroborar é o fato de que, em caso de reparação civil extracontratual, o marco inicial da fluência dos juros decorrentes da mora do devedor é contado da data do evento que gerou o dano (Súmula 54 do STJ). Assim, pode-se concluir que a posição de credor surge do evento danoso, e não da declaração judicial de ocorrência de tal evento.

Em resumo, é possível que se considere o crédito como “existente” quando do ajuizamento do pedido de recuperação judicial, ainda que não exista decisão transitada em julgado reconhecendo a obrigação. E confia-se que será esse o entendimento do STJ, quando julgados os recursos especiais representativos da controvérsia afetados para julgamento sob o rito dos repetitivos.

*Gisela Ferreira Mation, Nathália Vargas e Thaís Harari são, respectivamente, sócia e advogadas da área de Contencioso do Machado Meyer Advogados


[1] Decisão Monocrática, Resp 1.869.310, ministro Raul Araújo, DJe. 17/04/2020.
[2] AgInt no AREsp 1447981/RS, rel. ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, julgado em 25/06/2019, DJe 28/06/2019.
[3] REsp 1634046/RS, rel. ministra Nancy Andrighi, rel. p/ acórdão ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 25/04/2017, DJe 18/05/2017.

(O Estado de S. Paulo online - 09.05.2020)