A alta do dólar e a crescente demanda por commodities levaram a um aumento significativo do Índice Geral de Preços do Mercado (IGP-M), tradicionalmente utilizado como indexador para correção dos valores dos contratos de locação, apesar de a Lei do Inquilinato não determinar qual índice deve ser utilizado.
Esse aumento expressivo do IGP-M – índice calculado pelo Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) da Fundação Getulio Vargas (FGV) – vem desencadeando diversas discussões sobre a propriedade de sua aplicação nas relações locatícias e levou locatários e locadores a negociarem a adoção de outros indexadores, como o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) – calculado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para “medir a inflação de um conjunto de produtos e serviços comercializados no varejo, referentes ao consumo pessoal das famílias”.
O IGP-M é medido mensalmente e busca estipular a “variação de preços de bens e serviços, bem como o de matérias-primas utilizadas na produção agrícola, industrial e na construção civil”. Ele resulta de uma média aritmética ponderada de três outros índices:
- 60% do Índice de Preços por Atacado (IPA-M), que registra a variação dos preços nas transações interempresariais entre produtores agropecuários e industriais, como as commodities, e é especialmente impactado pela taxa de câmbio;
- 30% do Índice de Preços ao Consumidor (IPC-M), que registra a variação diária de preços de um conjunto fixo de bens e serviços, refletindo as oscilações sobre o poder de compra das famílias; e
- 10% do Índice Nacional de Custo da Construção Civil (INCC-M), que mede a evolução dos custos de construções habitacionais e também é impactado pelo preço das commodities, como aço e cimento.
A escolha do IGP-M como indexador para cálculo do reajuste anual dos valores de aluguéis remonta ao período histórico da hiperinflação – antes da adoção do Plano Real. Na época, a economia adotava o câmbio controlado, e a vinculação do IGP-M à variação cambial evitava que o valor dos aluguéis fosse corroído.
A opção pelo IGP-M também está relacionada ao fato de sua divulgação se dar de maneira cumulativa e periódica em três momentos distintos: projeções prévias do primeiro e segundo decênio e índice final. A primeira divulgação é realizada com base nas informações do período que vai do dia 21 a 30 do mês anterior ao mês de referência, enquanto a segunda compreende o período de 21 do mês anterior ao dia 10 do mês de referência. A terceira divulgação é o valor do índice final. Assim, a maneira de divulgação do índice ofereceu outra vantagem: a garantia de maior previsibilidade e transparência para os contratantes.
Com a adoção do Plano Real em 1994, o IGP-M e o IPCA passaram a atingir patamares similares, de modo que não existiam riscos para a manutenção do IGP-M como índice de reajuste das locações. Entretanto, com a adoção do câmbio variável em 1999, o IGP-M passou a subir rapidamente, tornando-se, de modo geral, superior ao IPCA. Apesar de, por vezes, o IGP-M atingir variações anuais inferiores ao IPCA – inclusive variações negativas, como em 2017, ano em que o IGP-M ficou em -0,52%, enquanto o IPCA foi calculado em 2,95% –, essa alteração ocorre em períodos de queda nos parâmetros utilizados para cálculo do IGP-M – taxa cambial negativa e/ou redução no preço das commodities – que não afetam diretamente o cálculo do IPCA.
O cálculo do IGP-M é diretamente afetado pela situação do mercado externo. Atualmente, com a disparada da cotação do dólar, atrelada ao aumento das demandas por commodities, houve a elevação significativa do IPA-M e, consequentemente, do IGP-M, que acumulou alta de 36,8% nos últimos 12 meses, calculado até julho de 2021. Por outro lado, o IPCA alcançou o patamar de 9,38% durante o mesmo período.
Considerando o cenário atual, foram protocolados cinco projetos de lei (PL) na Câmara dos Deputados para tentar solucionar a crise. São eles:
- PL nº 1.255/21, de autoria da dep. Renata Abreu (Podemos/SP), que visa estabelecer o reajuste máximo não superior a duas vezes o IPCA anual;
- PL nº 1.447/21, de autoria do dep. Aureo Ribeiro (Solidariedade/RJ), que objetiva determinar o IPCA como indexador de reajuste para todos os contratos de locação de imóveis urbanos, permitindo a adoção de outros índices inferiores, salvo se um superior for expressamente aprovado pelo locatário, vedando, inclusive, o reajuste até 31/12/2022;
- PL nº 1.538/21, de autoria do dep. Carlos Veras (PT/PE), que pretende criar uma lei específica estabelecendo o IPCA como índice para locações residenciais de imóvel urbano e não residenciais, desde que os locatários sejam classificados como microempresas, empresas de pequeno porte, empresários individuais ou profissionais liberais, prevendo, inclusive, a possibilidade de judicialização da revisão contratual para os contratos cujo reajuste, a partir de março/2020, tenha ocorrido pelo IGP-M;
- PL nº 2.554/21, de autoria do dep. Cleber Verde (Republicanos/MA), para determinar que o índice de reajuste não poderá ser superior à média aritmética obtida entre o IGP-M e o IPCA; e
- PL nº 1.026/21, de autoria do dep. Vinícius Carvalho (Republicanos/SP), o qual propõe que o índice de correção não poderá ser superior ao IPCA, salvo se a cobrança de valor superior for expressamente autorizada pelo locatário.
Atualmente, esses projetos estão apensados ao Projeto de Lei nº 1.026/21, que tramita em regime de urgência e aguarda votação no plenário da Câmara dos Deputados. Os projetos receberam, em 14/06/2021, o parecer da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, que, apesar de “reconhecer a boa intenção”, votou pela rejeição de todos, por entender que efeitos decorrentes da aprovação seriam contrários àqueles pretendidos.
Além da iniciativa na Câmara dos Deputados, o Partido Social Democrático (PSD) ajuizou, no dia 21/07/2021, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 869. A ADPF pretende que, conforme interpretação do artigo 317 do Código Civil e dos artigos 17 e 18 da Lei do Inquilinato baseada na Constituição, o reajuste dos contratos de locação residencial ou não residencial deva ocorrer por meio da aplicação do IPCA, em substituição ao IGP-M, ainda que este último esteja previsto contratualmente. De forma suplementar, a ADPF requer a aplicação do IPCA para reajustar os contratos de locação residencial e não residencial durante a pandemia do coronavírus, alegando a ilegitimidade constitucional do conjunto de decisões que determinam a aplicação do IGP-M previsto contratualmente.
Em 19/08/2021, a Advocacia-Geral da União manifestou-se contrária ao pedido, argumentando que não ficou demonstrada a violação aos preceitos constitucionais indicados – artigo 317 do Código Civil e artigos 17 e 18 da Lei do Inquilinato.
Com relação às decisões no âmbito dos tribunais de Justiça, não existe um entendimento pacificado. É possível localizar tanto decisões favoráveis à não intervenção judiciária em relações firmadas entre entes privados, como sentenças determinando a substituição do índice de reajuste dos aluguéis para garantir o equilíbrio entre as partes contratuais.
Considerando a ausência de uma posição pacífica nos tribunais e que as medidas sugeridas pelo Legislativo e Executivo ainda não foram apreciadas, o melhor caminho para solucionar a crise gerada pela aplicação do IGP-M nos contratos de locação permanece sendo a negociação entre locador e locatário.
Referências bibliográficas:
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Índice Geral de Preços – Mercado (IGP-M). Valor Consulting. Disponível em: <https://www.valor.srv.br/indices/igp-m.php>