Aprovada pelo Congresso após mais de sete anos de tramitação e sancionada pela Presidência da República no último dia 1º de abril, a Nova Lei de Licitações substituirá, após dois anos de vacatio legis, a Lei nº 8.666/93, que vigorou por quase trinta anos, e outras leis esparsas a respeito de licitações e contratos administrativos.
Nenhuma lei é perfeita, e a Nova Lei de Licitações talvez pudesse ter promovido maiores avanços em muitos pontos. De todo modo, e com a ressalva de que a sua contribuição efetiva só será mais bem conhecida com o tempo, a partir da interpretação e aplicação reiteradas pela doutrina, pelo Poder Judiciário e pela própria Administração Pública, entre outros operadores do Direito, desde logo é possível identificar nela algumas novidades positivas.
Seria inviável descrever todas essas inovações neste breve artigo, mas pode ser esclarecedor chamar a atenção para alguns dos principais pilares do texto:
- Consolidação e simplificação. Embora a Nova Lei de Licitações tenha mais artigos que a Lei nº 8.666/93 isoladamente considerada (191 contra 126), ela busca promover uma importante simplificação e racionalização da legislação de contratações públicas, ao consolidar disposições até então disciplinadas na Lei nº 8.666/93 e outras leis esparsas, como a Lei do Regime Diferenciado de Contratação e a Lei do Pregão, incorporando ainda entendimentos jurisprudenciais já pacificados.
Resta claro também que a Nova Lei de Licitações não se aplicará às empresas estatais, as quais continuarão regidas pelo seu estatuto próprio (Lei nº 13.303/16).
- Modernização e adequação da lei às novas tecnologias. A nova lei busca, com mérito, adequar-se ao mundo digital e às novas tecnologias. Embora essa preocupação permeie uma série de suas disposições, vale destacar a regra geral de que “as licitações serão realizadas preferencialmente sob a forma eletrônica”, admitindo-se a sessão presencial apenas excepcionalmente e mediante devida motivação (art. 17, §2º), ou ainda a disposição que admite a celebração eletrônica de contratos (art. 91, §3º). Não são exatamente inovações, embora a formalização eletrônica não constasse expressamente de leis específicas de licitações e contratos administrativos, mas essas medidas consistem, sem dúvida, em passos relevantes para romper a nossa cultura cartorial burocrática.
Quanto às novas tecnologias, é ilustrativo o art. 19, §3, segundo o qual, “nas licitações de obras e serviços de engenharia e arquitetura, (...), será preferencialmente adotada a Modelagem da Informação da Construção (Building Information Modelling – BIM) ou tecnologias e processos integrados similares ou mais avançados que venham a substituí-la”.
- Sustentabilidade ambiental e diversidade. Além do critério puramente econômico e da defesa do caráter isonômico da licitação, a Nova Lei de Licitações aprofunda outros valores já previstos por leis específicas de licitações e contratos administrativos, entre outras leis de incentivo à diversidade e sustentabilidade ambiental. São exemplos de previsões que promovem a inovação, a diversidade, a inclusão e outros aspectos sociais:
- o art. 5º, ao contemplar o desenvolvimento nacional sustentável como um dos princípios norteadores da nova lei;
- o art. 11, ao estabelecer como objetivo do processo licitatório “incentivar a inovação e o desenvolvimento nacional sustentável”;
- o art. 25, §9º, ao autorizar o edital a exigir que um percentual mínimo da mão de obra responsável pelo cumprimento de determinada contratação seja constituído “por mulheres vítimas de violência doméstica” ou ainda por “oriundos ou egressos do sistema prisional”;
- o art. 60, III, admitindo como critério de desempate, o “desenvolvimento pelo licitante de ações de equidade entre homens e mulheres no ambiente de trabalho, conforme regulamento”;
- o art. 45, VI, ao prever que as licitações de obras e serviços deverão obedecer às normas relativas a “acessibilidade para pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida”;
- as diversas normas que prestigiam as microempresas e pequenas empresas.
- Integridade, conformidade e prevenção. Como legado da Lava Jato e outras medidas de combate à corrupção, a nova lei estabelece como objetivo expresso dos processos licitatórios “evitar contratações com sobrepreço ou com preços manifestamente inexequíveis e superfaturamento na execução dos contratos”. Nas licitações para obras de grande vulto, o edital deve “prever a obrigatoriedade de implantação de programa de integridade pelo licitante vencedor” (art. 25, §4º). Admite-se expressamente como critério de desempate o “desenvolvimento pelo licitante de programa de integridade, conforme orientações dos órgãos de controle” (art. 60, IV). Prevê-se, como critério de dosimetria da sanção, “a implantação ou o aperfeiçoamento de programa de integridade, conforme normas e orientações dos órgãos de controle” (art. 156).
- Reforço da obrigação de cumprimento do contrato pelo contratante e pelo contratado. Nos últimos anos, diversos aspectos do contrato administrativo entraram em descrédito. De um lado, foram frequentes as situações de descumprimento do contrato pelo Poder Público ou, quando menos, de suspensão sem justo motivo de sua execução, tendo como resultado paralisação e deterioração de obras, obrigações de pagamento levadas ao Judiciário e aumento do estoque de precatórios. Esse cenário desestimula o licitante sério ou a apresentação de proposta mais eficiente. Isso também contribuiu para que licitantes tratassem a licitação e o contrato como meras formalidades a serem assumidamente descumpridas, submetendo propostas inexequíveis, com a certeza de que poderiam ser renegociadas, ao longo da execução do contrato, desde as condições mais acessórias até as mais características daquela modalidade de contratação, criando uma indústria de revisões e reequilíbrios artificiais.
A Nova Lei de Licitações busca corrigir essa situação. Entre outras disposições voltadas a assegurar o cumprimento do contrato pelo setor privado, ela admite que, em contratos de obras e serviços de engenharia de grande vulto, possa exigir-se do contratado garantia de fiel cumprimento do contrato no montante de até 30% do valor da contratação. A nova lei confere também às seguradoras que tenham emitido essa garantia o direito de acompanhar o contrato e, quando necessário, intervir nele para assegurar seu cumprimento. É uma importante inovação, pois a Lei nº 8.666/93 contemplava como garantia máxima o valor de 10% do contrato, o que não estimulava as seguradoras a atuar mais proativamente no monitoramento do contrato.
Prestigia-se ainda o planejamento responsável, mediante a obrigatoriedade da elaboração do Plano de Contratações Anual (Art. 12, VII e §1º) e a responsabilidade expressa da alta administração do órgão ou entidade contratante por “promover um ambiente íntegro e confiável, assegurar o alinhamento das contratações ao planejamento estratégico e às leis orçamentárias” (art. 11, parágrafo único).
Vale ressaltar ainda a instituição do dever da Administração Pública de observar estritamente a ordem cronológica na realização de pagamentos por ela devidos nos seus contratos administrativos. Tal ordem será verificada por categoria de contratos: fornecimento de bens, locações, prestação de serviços e realização de obras. O agente encarregado da aprovação dos pagamentos poderá ser pessoalmente responsável em caso de inobservância dessa ordem cronológica. Reduz-se assim margem para favorecimentos.
- Eficiência, flexibilidade e desburocratização. A nova lei consolidou disposições legais esparsas que promovem a eficiência dos processos licitatórios e contratações, em detrimento do aspecto meramente formal.
Por exemplo, no julgamento da licitação, a nova lei admite que o critério de preço leve em consideração não somente o valor nominal da proposta, mas o menor dispêndio global para a administração, considerando “os custos indiretos, relacionados com as despesas de manutenção, utilização, reposição, depreciação e impacto ambiental do objeto licitado, entre outros fatores vinculados ao seu ciclo de vida” (art. 34, §1º).
Com inspiração semelhante, a nova lei introduziu como critério de julgamento o “maior retorno econômico”, reservado aos contratos de eficiência, em que a remuneração do contratado consistirá num percentual da economia propiciada à administração.
Ainda como desdobramento dessa busca de maior eficiência, a nova lei oferece maior flexibilidade no processo licitatório, admitindo conjunto mais amplo de modalidades de contratação à disposição da Administração Pública (contratação integrada, contratação semi-integrada, contrato de eficiência etc.), de critérios de julgamento e de alternativas de licitação. Alguns desses instrumentos já estavam disponíveis para as empresas estatais e, a depender da adoção do regime diferenciado de contratação, até mesmo para os demais órgãos e entidades estatais, mas agora se alçaram a ferramentas legais inquestionavelmente aplicáveis para toda a Administração Pública, inclusive a direta, autárquica e fundacional.
Em paralelo à extensão do âmbito de aplicação de algumas modalidades de contratação, a nova lei inovou ao criar a figura do diálogo competitivo. Impensável em tempos mais apegados à nossa tradição burocrática, tal modalidade de licitação permite a discussão de soluções entre a Administração Pública e os interessados privados em fases intermediárias do processo licitatório, tendo como objetivo alcançar a solução mais eficiente para atender ao interesse público.
- Alocação objetiva de riscos. Por fim, destacam-se as previsões da nova lei no sentido de prestigiar a alocação objetiva de riscos, inclusive mediante a elaboração de matriz de riscos nos contratos, aproximando a lei, nesse aspecto, de outros diplomas mais modernos, como a legislação de PPPs. Novamente, embora o instrumento já estivesse disponível legalmente para as empresas estatais, havia dúvidas se ele poderia ser utilizado pela administração direta, autárquica ou fundacional.
Além de oferecer maior clareza aos contratos, quanto à distribuição de responsabilidades entre as partes, a alocação objetiva de riscos parece também viabilizar soluções mais flexíveis a serem desenhadas de acordo com as especificidades de cada contrato. Com efeito, a Lei nº 8.666/93 parecia, a esse respeito, bem mais rígida, na medida em que certos riscos deveriam, segundo sua interpretação predominante, ser necessariamente alocados a uma ou a outra parte, sem grande espaço para compartilhamentos ou excepcionalizações.
É importante, contudo, que tal repartição dos riscos seja feita de forma eficiente em cada caso, alocando-se os riscos à parte que tenha maior capacidade de geri-los e mitigá-los.
Em paralelo a esses inegáveis avanços, merecem foco alguns vetos presidenciais à lei aprovada pelo Congresso Nacional. Vinte e seis disposições originais foram rejeitadas pelo Poder Executivo na versão sancionada da Nova Lei de Licitações. Entre eles, destacamos os seguintes:
- a) Exceção ao direito de receber assessoria jurídica da advocacia pública: a nova lei reconhece o dever da advocacia pública de representar judicial ou extrajudicialmente os agentes públicos que tiverem seus atos questionados nas esferas administrativa, controladora ou judicial, desde que tais atos tenham observado estritamente orientação constante de parecer jurídico. Na versão original da nova lei, esse direito era excepcionado na hipótese de o parecer jurídico ter sido elaborado por profissional não permanente da Administração Pública.
Essa exceção foi vetada. Na prática, se o parecer jurídico for emanado de profissional externo à Administração Pública, nem por isso o agente público deixará de poder ser representado judicial ou extrajudicialmente pela advocacia pública.
O veto parece-nos salutar. Além de a disposição original contrariar as prerrogativas profissionais dos advogados, independentemente das carreiras pública ou privada, os pareceres jurídicos externos submetem-se a procedimentos internos de aprovação e recebimento pelas procuradorias. Não há razão para se rebaixar um parecer jurídico externo, devidamente escrutinado por esse procedimento, apenas pelo fato de o advogado não pertencer aos quadros permanentes da Administração Pública.
- b) Restrição ao diálogo competitivo: a versão original da nova lei limitava a aplicação do diálogo competitivo a hipóteses nas quais os modos de disputa aberto ou fechado não permitissem a adequada apreciação da variação entre as propostas. Essa restrição também foi vetada, e igualmente em boa hora.
Na prática, a limitação intimidaria a aplicação do diálogo competitivo, pois seria muito difícil justificar por que não se adotou o modo de disputa aberto ou fechado. A avaliação da variação entre as propostas é resultado de um processo, ao qual serve precisamente a fase do diálogo. Ao seu termo é que a Administração Pública poderá eventualmente chegar à conclusão se existe a possibilidade de variação entre as propostas dos licitantes pré-selecionados – e de que maneira essa variação será apreciada.
- c) Monitoramento do diálogo competitivo: na versão da nova lei aprovada pelo Poder Legislativo, admitia-se que o Tribunal de Contas poderia acompanhar e monitorar os diálogos competitivos, opinando, no prazo máximo de 40 dias úteis, sobre a legalidade, a legitimidade e a economicidade da licitação, antes da celebração do contrato. Essa disposição foi vetada. Embora concordemos com as razões do veto, pelas quais essa atribuição do Tribunal de Contas, além de extrapolar o rígido rol do art. 71 da Constituição da República, feriria o princípio da separação dos Poderes, na prática sabe-se que os órgãos de controle têm exercido uma interferência real e abrangente sobre as contratações públicas. A norma original tinha o mérito de buscar disciplinar essa interferência, a qual poderá ocorrer incidentalmente e extemporaneamente por meio de representações, denúncias ou auditorias por alçada ou amostragem, que implicam inevitavelmente a participação do Tribunal de Contas nas contratações administrativas.
Outras leis já previram o envolvimento prévio do Tribunal de Contas nos processos de contratação administrativa mais complexos, e parece-nos que tais medidas apenas trouxeram mais segurança jurídica aos negócios público-privados.
- d) Conta vinculada: a nova lei busca reforçar a obrigação do poder público contratante. Entre outras medidas, a versão original continha a previsão de que “nas contratações de obras, a expedição da ordem de serviço para execução de cada etapa será obrigatoriamente precedida de depósito em conta vinculada dos recursos financeiros necessários para custear as despesas correspondentes à etapa a ser executada” (art. 115, §2º). Ou seja, não se iniciaria obra sem dinheiro em caixa e segregado para tanto.
A disposição foi vetada. As razões de veto salientaram que a obrigatoriedade de depósito em conta vinculada como requisito para expedição de ordem de serviço na execução de obras traz o risco de empoçamento de recursos, inviabilizando remanejamentos financeiros que possam se mostrar necessários ou mesmo para atender demandas urgentes ou inesperadas.
Pois era exatamente essa flexibilização no manejo dos recursos destinados ao pagamento das ordens de serviços que a nova lei visava impedir. Se é verdade que a emissão da nota de empenho continua sendo um requisito para a realização da despesa pública, ela não o é para a emissão da ordem de serviço. A Nova Lei de Licitações não condicionou a emissão da ordem de serviço à emissão da nota de empenho, e a versão sancionada não o fez nem em relação ao depósito em conta vinculada, que seria uma medida ainda mais efetiva para segurança do contratado. Essas faltas submeterão o contratado aos diversos inconvenientes dos contingenciamentos discricionários ou obrigatórios, incentivando comportamentos oportunistas dos administradores públicos.
- e) Acordo de leniência com participação do Tribunal de Contas: por fim, os vetos abrangeram dispositivo pelo qual, sob a hipótese de celebração de acordo de leniência, nos termos da Lei Anticorrupção, a Administração Pública poderia isentar o interessado das sanções administrativas da nova lei e, se houvesse manifestação favorável do Tribunal de Contas, igualmente daquelas sanções previstas na lei orgânica desse órgão.
A previsão era salutar. A celebração dos acordos de leniência sem uma vinculação de outras autoridades legitimadas à aplicação de sanções é o principal risco para os interessados e certamente o fator que mais causa empecilho às colaborações em procedimentos investigatórios envolvendo ilícitos perante a Administração Pública. O dispositivo apenas promovia a possibilidade de um consorciamento entre algumas dessas autoridades legitimadas. Não havia obrigatoriedade. E a facilitação desse consorciamento poderia trazer mais segurança jurídica às práticas dos acordos de leniência.
Em que pesem os erros e acertos da Nova Lei de Licitações e dos vetos da Presidência da República, parece haver motivo para acreditarmos que o novo diploma poderá, de fato, constituir um importante passo em direção a um ambiente mais saudável e eficiente de contratações públicas.