Encerrado o primeiro trimestre de 2023, o Brasil ainda apresenta uma das maiores taxas básicas de juros reais e nominais do mundo. Juntando a isso as turbulências por que passa a economia internacional em um cenário de pós-pandemia e guerra, com inflação alta e aumento dos juros mesmo nos países mais desenvolvidos, o financiamento da infraestrutura no Brasil vive um momento especialmente desafiador.

O crédito é fundamental para todos os setores da economia, inclusive para as famílias. No entanto, sem crédito, principalmente na modalidade do project finance, projetos de infraestrutura confiados à iniciativa privada não se viabilizam. E o investimento em infraestrutura tem papel relevante no crescimento econômico, já que a disponibilidade e a qualidade da infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações, entre outras, são requisitos para o crescimento e a competitividade dos demais setores da economia.

Não por acaso, a redução das taxas de juros é uma das maiores preocupações do novo governo.

Diversos fatores explicam o elevado valor da Selic (a taxa básica de juros no Brasil), com destaque para a situação fiscal do país e como ela é vista, com maior ou menor desconfiança, pelo mercado.

Por outro lado, um dos principais fatores responsáveis pelas taxas ainda mais altas de juros nas operações de crédito realizadas no mercado financeiro é o elevado risco de inadimplência, que está diretamente relacionado à disponibilidade e eficiência de garantias.

Em 1º de junho de 2022, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 4.188/21, que busca aprimorar o regime de garantias no Brasil. De iniciativa do Poder Executivo, o projeto contou com contribuições de associações representativas de diversos segmentos do mercado e aguarda apreciação pelo Senado Federal, onde deverá ter prioridade.

Garantias podem contribuir para a maior disponibilidade de crédito e para o seu barateamento, além de favorecerem o cumprimento dos contratos e a segurança jurídica de modo geral. Aprimoramentos, portanto, são mais do que bem-vindos, sobretudo no Brasil, onde costuma ser lenta a reação do Poder Legislativo para corrigir ineficiências ou lacunas legais, sendo igualmente lenta a consolidação de jurisprudência para superação de dúvidas interpretativas.

O projeto pretende, por exemplo, eliminar ineficiências e incertezas do regime da alienação fiduciária de imóveis que persistem há mais de 25 anos, desde o advento da Lei 9.514, de 1997!

Entre elas, está a discussão se a regra do parágrafo 5º do art. 27 da lei implicaria a extinção automática da dívida garantida, em caso de segundo leilão do imóvel alienado em que não se verificasse lance igual ou maior que o valor da dívida, mesmo que o contrato de alienação fiduciária afaste expressamente essa extinção.

Alguns precedentes judiciais já apontam para a licitude do afastamento do efeito extintivo, quando acordado expressamente em relações entre empresas, e não entre indivíduos. Mas esses precedentes ainda estão longe de constituir entendimento jurisprudencial pacificado.

E quais são os demais aprimoramentos propostos pelo Projeto de Lei 4.188/21?

As principais novidades são:

  • a disciplina do serviço de gestão especializada de garantias, a cargo de instituições gestoras de garantia – IGGs;
  • a disciplina do agente de garantias;
  • o reconhecimento da possibilidade jurídica e a disciplina mais detalhada de alienações ou cessões fiduciárias sucessivas sobre o mesmo bem;
  • o aprimoramento mais amplo do processo de execução extrajudicial da alienação fiduciária de bens imóveis; e
  • o reconhecimento da possibilidade jurídica e disciplina da execução extrajudicial de hipotecas.

O serviço de gestão especializada de garantias e as instituições gestoras de garantia – IGGs

Essa é sem dúvida a maior inovação do projeto, que cria a figura da IGG, pessoa jurídica de direito privado responsável pelo serviço de gestão especializada de garantias, que deverá ser regulamentado de forma mais detalhada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN).

Embora não se qualifique como instituição financeira e esteja proibida de conduzir atividades privativas dessas instituições, a IGG estará sujeita à regulação, autorização e fiscalização do Banco Central.

A IGG atuará em nome próprio, quando da constituição, registro, gestão, avaliação e execução de garantias, mas em benefício das instituições financeiras credoras. Também assumirá deveres fiduciários não somente em relação a essas instituições, mas também aos devedores das operações garantidas e ao prestador da garantia. A quebra desses deveres implicará em responsabilidade pessoal da IGG.

Com tamanho nível de regulação e responsabilidades, cabe questionar se teremos efetivamente empresas dispostas a assumir esse papel.

A IGG difere de um mero agente de garantias. Este último é figura já conhecida no mercado, sobretudo no exterior (collateral agent). No Brasil, embora não tão disseminado e reservado a operações mais complexas, o agente de garantias equivale a um simples mandatário de credores titulares de garantia real, agindo no interesse exclusivo destes e com escopo de atuação, direitos e obrigações definidos em contrato com eles firmado.

Já a IGG foi pensada para exercer outro papel. Ao contrário do que ocorre com o agente de garantias, a iniciativa de contratação da IGG seria, como regra, não do agente credor, mas da pessoa física ou jurídica interessada em manter um bem, em geral indivisível, vinculado a múltiplas operações de crédito em potencial.

Como um dos potenciais usos desse serviço, imagine um indivíduo que tenha apenas um bem imóvel para dar em garantia. Poderia ser, em tese, até um bem de família, pois o projeto, entre suas disposições gerais, também altera o regime legal do bem de família, para afastar a imunidade de execução sempre que o bem for oferecido em garantia de forma voluntária por seu titular, não importa a natureza da obrigação garantida.

Suponha-se, então, que esse indivíduo, num primeiro momento, vislumbre a necessidade de tomar um crédito que represente apenas 10% do valor do imóvel. Em vez de vincular 100% do seu único e indivisível imóvel ao empréstimo, o que representaria uma indesejável sobregarantia e poderia criar empecilho para eventuais novas operações de crédito no futuro, o indivíduo contratará uma IGG para gerir a garantia sobre o imóvel.

A garantia sobre o imóvel será então registrada em nome da IGG, admitindo-se no respectivo instrumento de contratação da IGG a vinculação de múltiplas operações de crédito a essa garantia dentro do prazo máximo de vigência da contratação e até o valor máximo total equivalente ao valor do bem, conforme avaliado de forma independente pela IGG.

Uma vez que determinada instituição financeira aceite conceder crédito ao indivíduo em questão, ela vincularia seu crédito à garantia sob gestão da IGG, consumindo naquele momento, em relação ao lastro total da garantia, apenas o valor máximo do crédito concedido e aparentemente sem a necessidade de qualquer aditamento ao instrumento de garantia já registrado em nome da IGG no registro público competente.

O indivíduo ficaria liberado para contratar novas operações de crédito no futuro, até exaurir o valor total da garantia, conforme avaliado pela IGG. Além disso, à medida que as operações originalmente vinculadas fossem sendo amortizadas, isso abriria mais espaço para novas operações de crédito.

As garantias geridas pela IGG, como mera prestadora de serviços, e registradas em seu nome não se confundiriam com seu patrimônio próprio. Portanto, não responderiam por obrigações próprias da IGG, constituindo patrimônio em separado.

Riscos e vantagens da proposta

O mercado precisará de tempo para assimilar essa novidade, mas a figura da IGG tem mérito e poderá otimizar o uso de bens dados em garantia, viabilizando um maior número de operações de crédito, a um menor custo.

No entanto, a mudança não está imune a riscos, em particular o risco de diminuição superveniente do valor original de avaliação do bem, após esse valor original ter dado lastro a operações de crédito que o tenham consumido totalmente. Nesse caso, qualquer redução superveniente do valor do bem dado em garantia, ou mesmo a avaliação original superestimada, significará uma insuficiência de garantia, a ser compartilhada de modo proporcional entre todos os credores, salvo se estipulada ordem de prioridades entre eles.

Talvez por ter antecipado esse possível cenário, o projeto autorizou a IGG a prestar garantias pessoais, que assegurariam o crédito justamente quando a garantia real por ela administrada for insuficiente. Da mesma forma, o projeto estabelece que o CMN poderá disciplinar a possibilidade de a IGG adquirir direitos creditórios existentes, inclusive os vinculados à garantia.

Se essas autorizações podem, de um lado, mitigar o risco de insuficiência da garantia sob gestão, por outro, podem criar o risco de conflito de interesses que o projeto demonstra preocupação em afastar, ao impedir que a IGG pratique atividades privativas de instituição financeira.

De todo modo, compreendido o propósito da IGG, não parece que ela possa ter muita serventia para o contexto do financiamento à infraestrutura. É da essência das operações de project finance, típicas do setor de infraestrutura, que os agentes financeiros tenham o protagonismo na estruturação das garantias. Para esse contexto, a disciplina do agente de garantias terá maior aplicação.

A IGG parece ter sido pensada para operações de crédito mais simples e padronizadas, tanto que está limitada a operações no sistema financeiro nacional. Foram excluídas desde logo de sua aplicação operações de crédito no mercado de capitais ou com financiadores estrangeiros.

Como mostra a exposição de motivos do projeto, as IGGs têm potencial para facilitar a atuação de cooperativas, fintechs e instituições financeiras de pequeno porte, instituições que não necessariamente exijam garantias individualizadas ou por elas mesmas estruturadas.

O agente de garantias

A figura do agente de garantias não é nova, mas seu regramento expresso será muito bem-vindo.

Nas operações de project finance, em que frequentemente há necessidade de diferentes agentes financiadores prioritários ou subordinados compartilharem garantias, a nomeação do agente de garantias por esses agentes já era algo comum, mesmo no Brasil.

Com ressalvas aplicáveis a determinados ativos, não sendo uma atividade regulada (ao contrário da IGG), qualquer pessoa jurídica pode atuar como agente de garantias. Entre as exceções, vale citar o recebimento e custódia de recursos financeiros em depósito, que é atividade privativa de instituição financeira, bem como a administração ou gestão de fundos de investimento, que requer autorização da CVM.

Em parcerias público-privadas, também é comum a nomeação de agentes de garantia para custódia de valores, recebíveis ou ativos em garantia da contraprestação pública devida ao parceiro privado. Nesse caso, a nomeação do agente de garantias deve atender aos requisitos estabelecidos no edital da PPP ou na minuta do contrato de concessão e seus anexos.

Em razão desses usos frequentes, já defendíamos em 2018 a conveniência de uma disciplina legal para o agente de garantias.[1]

De fato, em qualquer desses contextos, enquanto não aprovada uma disciplina expressa, o agente de garantias não estará livre de indesejáveis questionamentos. Ainda que todos sejam defensáveis, a mera existência de dúvidas e questionamentos contraria o propósito último das garantias, que é dar segurança e previsibilidade.

A rigor, se justificada a sua atuação com fundamento exclusivo no contrato de mandato, o agente de garantias deveria atuar em nome do mandante, e não em nome próprio. Mas a prática não é essa: o agente de garantias normalmente recebe e registra garantias reais em seu nome, sem a necessária indicação de todos os beneficiários da garantia.

Sob esse aspecto, a comissão seria o contrato típico mais apropriado para que o agente de garantias atuasse em nome próprio, mas no interesse do comitente. Entretanto, o contrato típico de comissão, como previsto pelos arts. 693 e seguintes do Código Civil, parece limitar seu uso ao contexto da aquisição ou venda de bens, o que não se encaixa exatamente com o recebimento, gestão e execução de garantias reais.

Mas, mesmo fundamentando a figura do agente de garantias em uma contratação atípica, que não seria vedada, a ausência de um regramento claro pode trazer dúvidas no cenário de execução da garantia ou para o regime de responsabilidades do agente. A disciplina proposta é, portanto, muito oportuna para dar mais segurança à figura do agente de garantias, inclusive no contexto do project finance.

Alienações e cessões fiduciárias sucessivas sobre o mesmo bem

Em boa hora, o Projeto de Lei 4.188/21 veio confirmar expressamente a possibilidade de alienações fiduciárias sucessivas, como já admitido sem maiores dúvidas para a hipoteca.

Com algum esforço interpretativo, já era possível defender a legalidade e validade de alienações fiduciárias de “segundo ou terceiro grau”.

Numa linha perfeitamente factível de raciocínio, defendia-se a possibilidade de o fiduciante alienar em garantia os seus direitos residuais sobre o bem já alienado fiduciariamente em momento anterior, inclusive o direito de reaver a propriedade plena do bem, após a quitação da dívida garantida.

O projeto recorre a um outro fundamento, mas com efeitos equivalentes: o de que é lícito a qualquer um alienar bem futuro. Ainda que, nesse caso, a propriedade fiduciária em favor do credor fiduciário só se aperfeiçoe com a aquisição superveniente do bem pelo devedor fiduciante, a eficácia da alienação retroagirá à data do registro da garantia (art. 1361, §3º, do Código Civil).

Embora o projeto tenha trazido essa confirmação expressa apenas no contexto da alienação fiduciária de imóvel, sua fundamentação parece perfeitamente aplicável à alienação ou cessão fiduciária de qualquer outro bem ou direito.

A proposta tem bom potencial de aplicação inclusive no financiamento da infraestrutura, pois não é incomum, nesse mercado, a necessidade de garantias com distintos graus de prioridade em favor de credores subordinados. Embora já fosse possível defender a viabilidade jurídica da alienação fiduciária de segundo grau, o risco de questionamento não poderia ser ignorado.

Aprimoramentos à execução da alienação fiduciária de bens imóveis

Outra novidade a ser destacada no projeto é a previsão objetiva de que, em segundo leilão, o imóvel alienado fiduciariamente possa ser vendido por até 50% do valor a ele atribuído no contrato de alienação fiduciária. Afasta-se assim o subjetivismo do conceito de preço vil.

E, como já antecipado, caso a venda seja efetuada por preço inferior ao da dívida, permanecerá o devedor responsável pela diferença, afastando-se a quitação automática.

É interessante também a introdução de disposição para tratar especificamente – e com menos espaço para dúvidas – da execução de crédito garantido por mais de um bem imóvel alienado fiduciariamente.

Execução extrajudicial de hipotecas

O projeto propõe, ainda, a alteração da Lei 9.514/97 para estender a alternativa da execução extrajudicial também às hipotecas, o que não é atualmente admitido no regime do Código Civil.

Essa possibilidade poderá ser útil em diversos segmentos, inclusive no financiamento da infraestrutura. A execução extrajudicial tende a oferecer maior celeridade e eficiência ao processo de execução forçada do bem, afastando-se a morosidade e litigiosidade da via judicial.

Outras mudanças

O projeto ainda traz outras mudanças mais específicas. Ele passa a admitir expressamente a constituição de garantia real sobre direitos minerários para além da concessão de lavra, como sobre o direito de alvará de autorização de pesquisa, direito de licenciamento e permissão de lavra garimpeira.

Também pretende abolir o monopólio da Caixa Econômica Federal sobre o penhor civil.

Entre outras matérias estranhas ao tema central da garantia e com especial chance de revisão no Senado ou veto presidencial, destaca-se ainda a proposta de redução a zero do imposto de renda na fonte, com relação a rendimentos pagos ou creditados a beneficiário residente ou domiciliado no exterior, produzidos por quaisquer títulos de dívida distribuídos publicamente por pessoa jurídica de direito privado que não instituições financeiras, por FIDCs ou ainda por letras financeiras, sem maiores requisitos ou condições.

O Projeto de Lei 4.188/21 está distante de oferecer solução integral para todas as ineficiências e desafios existentes em nosso sistema de garantias, nas suas diversas modalidades e segmentos de mercado, mas certamente demonstra preocupação e avanços louváveis. Espera-se que seja aprovado com a urgência que o tema merece.

 


[1]ENEI, José Virgílio Lopes. Garantias de Adimplemento da Administração Pública ao Contratado nas Parcerias Público-Privadas. São Paulo: Almedina, 2018.