Por Camila Galvão, Ana Carolina Lourenço, Júlio Nunes, Maria Inácia Carvalho, Marcius Filipe Modesto, Sara Patriarcha, Thiago Percides e Victor Santa Cruz.
A advocacia exerce a função primordial de salvaguardar o Direito. Ela protege os interesses sociais e minimiza as injustiças, a fim de garantir o pleno funcionamento do Estado Democrático de Direito e do nosso sistema de justiça. Ocorre que, apesar de vivermos em um país predominantemente negro, o exercício da advocacia se dá em um ambiente majoritariamente branco.
A estética branca prevalente induz o profissional negro a buscar se enquadrar nos padrões eurocêntricos, sofrendo dessa forma um “embranquecimento”, que pode levá-lo a se afastar de certos espaços, pela certeza do não pertencimento.
Nesse contexto, vale fazer o questionamento: é possível existir justiça sem o protagonismo negro na advocacia? De quantos advogados negros precisamos para fazer justiça?
O abismo entre as populações negra e branca no Brasil é latente, e não seria diferente nas grandes bancas de advocacia. Em 2019, o Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial e a Fundação Getulio Vargas, ouviu 3.624 pessoas de nove dos maiores escritórios de São Paulo. A pesquisa mostrou que os negros representavam 1% dos advogados por eles contratados.
A tão sonhada oferta de oportunidades promissoras na advocacia ainda encontra entraves raciais, e a chance de ocupar espaços de prestígio no Direito é predominantemente restrita a pessoas brancas. Fatores como a menor presença de negros em universidades renomadas ou até mesmo a falta de um curso de inglês se somam à cor de pele para excluir esse grupo das chamadas oportunidades de ouro.
Apesar de, atualmente, os louros da advocacia estarem majoritariamente destinados a uma única parcela da sociedade, o Direito foi e tem sido enorme aliado na luta contra o racismo e os reflexos da escravização que durou mais de 300 anos no Brasil.
Figuras históricas como Esperança Garcia (1751 - ?), considerada pela OAB-PI a primeira advogada do Piauí, e Luiz Gama (1830 – 1882), que com auxílio do Direito conseguiu libertar centenas de escravizados e é popularmente conhecido como um dos maiores abolicionistas do Brasil, são exemplos de resistência e do exercício da advocacia por negros como ferramenta de proteção e garantia de direitos, em uma época na qual o peso da desigualdade racial era ainda mais brutal do que hoje.
Evolução histórica do racismo nas normas jurídicas – leis racistas e antirracistas
Desde a época em que pessoas, em razão de sua cor, eram tratadas como propriedade privada, ou bens semoventes, até a criminalização do racismo, um longo caminho normativo foi percorrido, e a atuação de movimentos sociais e de grandes advogados, como o já mencionado Luiz Gama, foi primordial para viabilizar a mudança.
Não apenas a escravização era permitida, como o ordenamento garantia e reforçava as estruturas de poder, alçando à categoria de direito os privilégios da população branca, em normas como a Lei do Ventre Livre (1871), que em seu artigo 1º determinava que “os filhos de mulher escrava que nascerem no Império desde a data desta lei, serão considerados de condição livre”, mas previa que “[...] o senhor da mãe terá opção, ou de receber do Estado indenização ou de utilizar-se dos serviços do menor até a idade de 21 anos completos”. Já a Lei dos Sexagenários (1885) concedia a liberdade para os escravizados que tivessem mais de 60 anos, embora a expectativa de vida, à época, fosse de 19 anos para os escravizados, além de obrigá-los a indenizar os senhores pelo período de três anos, em virtude da sua alforria.
A Lei Áurea (1888), assinada há pouco mais de cem anos, é conhecida como o ato que aboliu a escravização. Mas sua sanção não foi suficiente para que negros fossem tratados como seres humanos e sujeitos de direito, já que somente transferiu essas pessoas das senzalas diretamente para a pobreza. Com efeito, desde 1888 até hoje, é impossível deixar a condição de escravizado se a dignidade humana não é garantida e os direitos mais básicos não são assegurados.
Transferidos das senzalas para as ruas, os escravizados passaram a ser encarcerados. O poder do direito continuava visando à manutenção sistêmica do racismo. Ao mesmo tempo, imperava o projeto de embranquecimento da população, fundado na ideia de que o branco era associado ao progresso. O Direito, como espelho da sociedade, refletia essa imagem em normas que buscaram a marginalização dos negros. Alguns exemplos:
- Código Criminal do Império do Brasil (1830): estabelecia como justificável o crime de castigo a escravizados. Embora as disposições contrárias à Lei Áurea tenham sido revogadas com a instituição dessa norma em 1888, o código considerava crime a insurreição pela liberdade de escravizados, a mendicância e a vadiagem. Assim, em virtude das duas últimas tipificações, aqueles que foram alforriados e passaram a viver nas ruas passaram a ser criminalizados por sua condição.
- Decreto 528, de 28 de junho de 1890: determinava que a entrada de pessoas vindas especificamente da Ásia e da África dependia da autorização do Congresso Nacional.
- Decreto 145, de 11 de junho de 1893: determinava a prisão de vadios, vagabundos e capoeiras. Portanto, vagar pela cidade na ociosidade e realizar manifestações culturais eram também crimes. A vadiagem ainda é considerada contravenção penal, conforme os artigos 13 a 15 da Lei 3.688, de 1941.
- Decreto-lei 7.967/1945: estabelecia em seu artigo 2º que “atender-se-á, na admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na composição étnica da população, as características mais convenientes da sua ascendência européia [sic], assim como a defesa do trabalhador nacional”.
Contudo, se o Direito pode servir à opressão e ao racismo, ele também pode ser instrumento de justiça, sua característica mais intrínseca. Podemos citar as seguintes normas como exemplos voltados a coibir a discriminação racial no Brasil:
- Lei Afonso Arinos (1951): incluiu “[...] entre as contravenções penais a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor”.
- Constituição de 1988: tem por princípio o repúdio ao racismo e tornou inafiançável e imprescritível o crime de racismo.
- Lei 9.459/1997: tipificou a injúria racial no Código Penal.
- Lei 10.639/2003: estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
- Lei 12.288/2010, conhecida como Estatuto da Igualdade Racial: destinada a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica.
- Lei 12.711/2012, conhecida como a Lei de Cotas: dispõe, em seu artigo 3º, que “em cada instituição federal de ensino superior, as vagas de que trata o art. 1º desta Lei serão preenchidas, por curso e turno, por autodeclarados pretos, pardos e indígenas e por pessoas com deficiência, nos termos da legislação, em proporção ao total de vagas no mínimo igual à proporção respectiva de pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo da Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE”.
Observa-se, portanto, que as leis antirracistas acabam por refletir, como fenômeno social que são, o pensamento social da sua época. A título de exemplo, pode-se citar a Lei de Cotas, cuja origem remonta à Índia da década de 1930 e que tem por beneficiários os dalits (considerada casta mais baixa do país).
Tal lei acabou por influenciar outros países, como os Estados Unidos na década de 1970, quando uma demanda do movimento dos direitos civis dos negros acabou por induzir as universidades a adotar as cotas como uma política social de ação afirmativa, embora não haja uma lei nacional que as obrigue a fazê-lo.
Significa dizer, assim, que tanto os movimentos sociais quanto o combate normativo ao racismo são necessários, pois se retroalimentam e viabilizam a criação de um contexto que permite termos cada vez mais juristas negros e negras seguindo rumo à equidade racial dentro e fora do Poder Judiciário.
As leis citadas, entretanto, não são suficientes para que tenhamos a justiça que almejamos, pois a aplicação da justiça, muitas vezes seletiva, continua reproduzindo o racismo existente na nossa sociedade.
Nosso papel como operadores do Direito
Como operadores do Direito, de modo geral, somos parte integrante do sistema jurídico, não só como receptores passivos, mas como instrumentos capazes de trazer inquietude, mudança e desenvolvimento ao setor, uma vez que somos porta-vozes das pessoas que representamos e que anseiam por justiça e por uma resposta aos seus direitos transgredidos.
É notório que a advocacia deve combater o racismo institucionalizado, tanto no Judiciário como na sociedade de modo geral. Isso pode ser feito de maneira direta, com propostas de ações e demandas que visem a esse enfrentamento, ou pelo uso de teses e fundamentações de juristas negros e antirracistas em ações que não necessariamente tenham como propósito o combate ao racismo, mas cujos conceitos construídos por tais juristas sejam utilizados ao menos na mesma proporção em que os de juristas brancos.
Segundo o professor Adilson José Moreira, em seu livro “O que é discriminação”, o sistema jurídico brasileiro e grande parte dos doutrinadores só reconhecem a existência de uma discriminação direta,[1] uma vez que a interpretação da norma jurídica realizada por esses juristas está intrinsecamente ligada ao entendimento de que atos discriminatórios ofendem o princípio da isonomia formal. Por esse mandamento constitucional centrado na noção de justiça simétrica, para se configurar um ato discriminatório rechaçado pela Justiça, é preciso que existam elementos de intencionalidade e arbitrariedade.
A justiça avança no reconhecimento do racismo e na punição da discriminação direta. Em julgado recente, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a injúria racial como espécie do gênero racismo, no HC 154.248 no caso em que uma frentista negra no Distrito Federal (DF) foi chamada de “negrinha nojenta ignorante e atrevida”. Dessa maneira, o crime passa a ser imprescritível e inafiançável. Além disso, está em trâmite a ADI 6987 sobre a mesma questão, e o resultado da ação será de efeito erga omnes, ou seja, poderá ser aplicado contra todos.
Para que se consiga impedir a prática de ações antidiscriminatórias e para que a justiça puna e impeça essas práticas, é necessário, porém, que a mesma justiça entenda que existe mais de um tipo de discriminação. Além da direta, há a discriminação indireta, intergeracional, institucional, estrutural, interseccional e organizacional.
Ao entender e conseguir identificar os tipos de discriminação existentes, a advocacia conseguirá pautar suas teses e pedidos de maneira fundamentada e, assim, instigar o sistema jurídico para que também entenda e aplique tais fundamentações em suas decisões. Essa é uma das formas como a advocacia pode contribuir no combate ao racismo e na discriminação racial e de outros grupos sociais tão marginalizados pela sociedade.
Como operadores do Direito, também podemos atuar na articulação e representação de grupos a fim de combater esse sistema que exclui tantos brasileiros. A título de exemplo, podemos citar as comissões de igualdade racial da maioria das seccionais da OAB, a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, os coletivos negros existentes nos cursos de graduação em ciências jurídicas, entre tantos outros grupos e entidades que se unem para promover uma sociedade mais igualitária em termos formais e materiais.
Articular, influenciar e agir de diversas maneiras e em diversos espaços públicos e não públicos de poder político, econômico, cultural e social é o que torna a advocacia fator importantíssimo para que a mudança aconteça.
A história da justiça no Brasil não será completa se não houver inclusão. Para que o pouco, mas significativo, avanço se concretizasse, foram necessários diversos movimentos sociais liderados tanto pelos anônimos quanto pelos primeiros advogados negros, Esperança Garcia e Luiz Gama.
Se o movimento de transformação for integrado por um contingente expressivo, sua força obviamente será inquestionável. Isso significa que, para se fazer justiça, é necessário haver não só advogados no sentido profissional da palavra, mas também no contexto dos movimentos sociais, no original latino, ad.vocare (junto de = interceder em favor de), ou seja, precisamos de tantos advogados quantos bastem para erradicar o racismo, uma luta a ser abraçada por todos.
[1] MOREIRA, A.J. O que é discriminação. Belo Horizonte-MG: Letramento, 2017. Pág. 17 e 18.