Até que ponto o descumprimento de exigências formais previstas em lei, nos estatutos sociais e em acordos de acionistas pode anular a convocação de assembleias gerais de sociedades por ações (AGs)? Para buscar respostas a essa pergunta, analisamos neste artigo os entendimentos doutrinários e jurisprudenciais relacionados à anulabilidade das AGs convocadas em desconformidade com os procedimentos estabelecidos.
As disposições cogentes para convocação das AGs estão fixadas na Lei nº 6.404/76 (Lei das Sociedades por Ações ou LSA), mas estatutos sociais e/ou acordos de acionistas das companhias podem alterar essas regras, contanto que não entrem em confronto com o que dispõe a LSA.
Um requisito fundamental para que a convocação de uma AG seja válida é que a iniciativa parta de órgão ou de pessoa competente para tanto.[1] De acordo com o art. 123 da LSA, é competência do conselho de administração, se houver, ou dos diretores, observado o disposto no estatuto social, fazer essa convocação.
Também em conformidade com a LSA, sempre que for necessário realizar uma AG, os membros do conselho devem se reunir previamente, observando as formalidades próprias às reuniões desse órgão e respeitando sua natureza colegiada, para aprovar a proposta de convocação. Na prática, no entanto, a convocação é muitas vezes feita pelo presidente do conselho ou outro membro individualmente e, como ato rotineiro, não deveria resultar em nenhum prejuízo para companhia. Ressalva-se, no entanto, que, caso seja verificado algum dano ao interesse legítimo da companhia ou de algum acionista, a inobservância de formalidade pode tornar a convocação inválida.[2] Aqui, faz-se importante destacar que a anulabilidade da AG convocada com vício deve levar em consideração o efetivo dano causado à companhia e/ou aos seus acionistas.
A importância do interesse dos acionistas
Seguindo essa linha de pensamento, Erasmo Valladão Novaes França destaca que “perante uma determinada assembleia em concreto, na qual houve desrespeito às formalidades legais ou estatutárias relativas a convocação e instalação, não estão em jogo senão interesses dos próprios acionistas à época em que se realizou a reunião”.[3] Dessa forma, não se deve cogitar a anulabilidade de AG baseada em requisitos de forma quando o que está sob tutela, sendo esse o ponto deveras relevante, são os interesses dos acionistas. Na ausência de efetivo dano ou conflito em relação a tais interesses, não se justifica a nulidade da AG, e o ato deve, portanto, ser preservado.
Corrobora esse entendimento o seguinte julgado do Tribunal de Justiça de São Paulo, em que foi negada a pretensão anulatória de AG por não ter sido verificado real prejuízo ao acionista postulante:
“Apelação – Ação anulatória – Questionamento de atos de representação do Espólio de Guilherme Muller Filho – Alegação de vício de convocação de assembleia geral ordinária e da deliberação nela tomada – Superação por força do comparecimento espontâneo de todos os acionistas – Inexistência, ademais, da real e efetiva indicação dos prejuízos causados aos interesses das partes e ou da sociedade – Sentença motivada suficientemente – Ratificação na forma do art. 252 do Regimento Interno desta Corte – Recurso improvido.” (Ap. no 0104399-42.2007.8.26.0000, Rel. Beretta da Silveira, julg. em 07.02.2012)
Convocação de AG provocada por acionista
Outro ponto interessante sobre a anulabilidade das AGs convocadas apenas por parte do conselho é a interpretação estrita da LSA de que o presidente ou qualquer outro membro do conselho não teriam competência, individualmente, para atender ao pedido de convocação realizado de acordo com a alínea (c), parágrafo único do art. 123 da LSA.[4] O atendimento a solicitação para convocação de AG feita por acionista titular de ações representativas de 5% do capital social também exigiria, necessariamente, a realização de uma reunião prévia do conselho para, somente por meio de decisão colegiada, se proceder à convocação.
Argumentação contrária estabelece que o pedido de convocação de AG subscrito por acionista representante de 5% do capital social geraria um poder-dever[5] aos administradores, a ser interpretado como uma convocação provocada[6], o que autorizaria os membros do conselho a, no estrito cumprimento de suas atribuições, acatar o pedido do acionista e eventualmente contrariar procedimentos estabelecidos na LSA e/ou no estatuto social, a fim de cumprir o prazo legal de oito dias estabelecido no art. 123 da lei. Desse modo, os membros do conselho poderiam tomar medidas excepcionais que denotassem maior celeridade – o que, naturalmente, exigiria uma interpretação caso a caso, considerando a relevância de cada ato praticado contra as disposições da LSA e/ou de estatuto social e seu efetivo prejuízo aos demais acionistas.[7]
Nesse mesmo sentido, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) afirmou, ao analisar a função organizativa dos estatutos sociais, que não se pode aceitar “o aproveitamento indevido dessa função organizativa que o estatuto social tem, e é mesmo legitimo que tenha, para impedir ou cercear os direitos dos acionistas. A função organizativa dos estatutos não pode servir de pretexto para produzir rituais burocráticos e caprichos formais que impeçam o acionista (ou os conselheiros) de exercer o direito que a lei confere.”[8]
Verifica-se, novamente, uma inclinação por preservar os objetivos almejados pelas AGs, aqui interpretados de forma ampla, sobre os aspectos formais e/ou procedimentais de menor relevância indicados na LSA e/ou em estatutos sociais.
E quando o conselho é constituído de forma irregular?
Outra situação que pode caracterizar nulidade é a convocação de AG feita por conselho constituído irregularmente, em desacordo com as disposições do art. 146 da LSA e seus parágrafos (por exemplo, é preciso seguir os procedimentos de registro e publicação indicados no artigo para eleição dos conselheiros e indicar o prazo de mandato para cada conselheiro eleito).
Em relação a essa hipótese específica, ponderou Modesto Carvalhosa: “é evidente que não deve, na espécie, haver nulidade por questões formais, ou seja, convocação irregular. Se, no entanto, as deliberações tomadas forem lesivas ao interesse social ou individual dos sócios, a origem viciada da convocação será matéria de convencimento para a decretação da nulidade dessas deliberações”.[9]
Nesse caso, entendeu-se que a convocação irregular deve ser relevada, considerando sempre potenciais lesões ao interesse social e individual da companhia e dos acionistas, respectivamente, tendo em vista que a decretação de nulidade de todas as AGs convocadas por conselho irregularmente composto representaria um problema muito maior para a vida da companhia do que a falta de observância a uma simples questão formal de convocação, situação que se busca evitar.[10]
Além disso, entende-se que o fato de a LSA estabelecer procedimento de convocação pública para as AGs (arts. 124 e 289), em complemento ao procedimento convocatório do art. 123 da mesma lei, resguarda o objetivo maior de conferir a devida publicidade às convocações, informando corretamente os acionistas da realização das AGs. Diante do caráter suplementar desses dois procedimentos, é ainda mais irrelevante o descumprimento das formalidades de menor importância.
Prevalência da nulidade relativa sob a nulidade absoluta
Soma-se ainda ao aqui exposto o fato de que prevalece na doutrina e na jurisprudência o entendimento pelo afastamento da nulidade absoluta, devendo se preservar os atos societários quando for possível optar pela aplicação da nulidade relativa. Novamente, deve-se considerar o grau do descumprimento de normas e/ou procedimentos legais e o efetivo prejuízo aos acionistas. Esse é, por exemplo, o ensinamento de Nelson Eizirik ao afirmar que: “Aplica-se, com as necessárias adaptações, ao Direito Societário o regime geral da anulabilidade dos atos viciados ou defeituosos (nulidade relativa), não da nulidade absoluta”.[11]
Verifica-se, portanto, que o ordenamento jurídico brasileiro, tanto doutrinário quanto jurisprudencial,[12] invoca a existência de um distanciamento da nulidade em direito societário da teoria clássica das nulidades. Além disso, a tendência no direito nacional e comparado é de entender as nulidades no âmbito societário como relativas, relegando-se a nulidade absoluta tão somente a situações realmente excepcionais.[13]
Conclusões
Dessa forma, embora seja importante observar as disposições legais e/ou estatutárias sobre a convocação regular das AGs (e o recomendável é que isso seja feito de forma estrita para evitar questionamentos), a doutrina e a jurisprudência tendem a valorizar a preservação dos efeitos da convocação sempre que possível, seja pela relativização dos procedimentos de menor importância para convocação das AGs, seja pelo entendimento de que a aplicação da nulidade relativa deve prevalecer sobre a nulidade absoluta no âmbito do direito societário. Para cogitar a anulabilidade das AGs convocadas com vício de procedimento, portanto, é sempre necessário observar a relevância dos procedimentos contrariados e o efetivo prejuízo causado aos acionistas e/ou à companhia em virtude desse descumprimento.
1. Requisitos adicionais para a regular convocação de AG: (i) publicidade da convocatória (arts. 124 e 289 da LSA) e (ii) delimitação das matérias que serão objeto de discussão (art. 124 da LSA). TEPEDINO, Ricardo. Direito das companhias, 2v. / Coordenadores: Alfredo Lamy Filho; José Luiz Bulhões Pedreira – Rio de Janeiro: Forense, 2009, pg. 890.
2. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial, volume 2: direito de empresa – 15ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2011, pg. 225.
3. NOVAES FRANÇA, Erasmo Valladão. Invalidade das deliberações de assembleia das S/A e outros escritos sobre o tema da invalidade das deliberações sociais, 2ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, pg. 102.
4. “Art. 123, parágrafo único: A assembleia-geral pode também ser convocada: (...) (c) por acionistas que representem cinco por cento, no mínimo, do capital social, quando os administradores não atenderem, no prazo de oito dias, a pedido de convocação que apresentarem, devidamente fundamentado, com indicação das matérias a serem tratadas (...)”
5. GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Convocação de assembleia geral por acionista. Revista de Direito Mercantil, n. 41. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan/mar 1981, p. 154.
6. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. V. 2, p. 634.
7. CASTELLO BRANCO, Adriano. O Conselho de Administração nas Sociedades Anônimas. 2 ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007, p. 54-59.
8. CVM/RJ – Processo Administrativo no 2005/3806 – Voto do presidente Marcelo Fernandez Trindade, datado de 21.7.2005.
9. CARVALHOSA, Modesto. Comentários à lei de sociedades anônimas, 2º volume: artigos 75 a 137 – 6ª ed. – São Paulo: Saraiva, 2014, pg. 927.
10. TJSP – AI no 2136380-06.2017.8.26.0000 – 1ª Câm. Direito Empresarial – Rel. Cesar Ciampolini – julg. em 18.10.2017.
11. EIZIRIK, Nelson. A lei das S/A comentada, volume III, São Paulo: Quartier Latin, 2011, p. 591/592.
12. STJ – REsp 1.330.021 – (2012/0025233-6) – 4a T. – Rel. Min. Luis Felipe Salomão – Dje 22.04.2016.
13. BORBA, Gustavo Tavares. COELHO, Fábio Ulhoa (coord.). Tratado de direito comercial: tipos societários, sociedade limitada e sociedade anônima. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 371, 386 e 387.