A pandemia de covid-19 alterou toda a dinâmica corporativa, com impactos no relacionamento entre stakeholders e nas interações com o governo. Em tempos de crise, mais do que nunca, os sistemas corporativos de integridade precisam funcionar com rapidez e flexibilidade, sem, contudo, perder sua eficácia. As diversas urgências e situações de exceção que as empresas enfrentam criam brechas para irregularidades e geram grande pressão para seus administradores, funcionários e parceiros comerciais. Nesses momentos, é preciso se ater, ao máximo, aos processos e procedimentos previamente delimitados.
Em setembro de 2015, a Controladoria Geral da União (CGU) divulgou suas diretrizes para a divisão do programa de integridade de empresas privadas em cinco pilares, a serem observados no momento de desenvolvimento e implementação. São eles: (i) comprometimento e apoio da alta direção; (ii) instância responsável pelo programa de integridade; (iii) análise de perfil e riscos; (iv) estruturação de regras e instrumentos; e (v) estratégias de monitoramento contínuo.
A covid-19, no entanto, tem o potencial para desestabilizar a rotina das empresas, o que inclui também seus programas de integridade. Isso ocorre porque as consequências da atual pandemia podem afetar as condições de mercado e concorrência, a situação financeira, o dia a dia corporativo e o ambiente normativo, com o surgimento de diversas regras transitórias para enfrentar situações emergenciais, como a Medida Provisória nº 926/20 (que flexibilizou procedimentos licitatórios), o aumento da demanda por doações solidárias de empresas e a previsão de crise econômica a ser enfrentada pelo país e pelo mundo.
Levantamento feito pelo Centro de Estudos de Mercado de Capitais da Fipe (Cemec-Fipe) indica que cerca de 23% das 245 companhias brasileiras de capital aberto abrangidas no estudo poderão ficar com caixa negativo nos primeiros 30 dias sem receita.
É natural, portanto, que, neste momento de crise, haja uma mudança do foco empresarial para outras prioridades. Em meio ao senso de urgência constituído pela covid-19 em tantas frentes, é possível que os programas e sistemas de integridade empresarial não recebam a devida atenção e orçamento. Além disso, a flexibilização dos processos e procedimentos preestabelecidos, se feita de maneira inadequada, poderá colocar em risco a eficácia dos programas corporativos de integridade.
Não se recomenda, naturalmente, abordar a situação atual com total inflexibilidade, ignorando a conjuntura extraordinária trazida pela pandemia. O ideal é que se faça um esforço para que os processos cuidadosamente determinados pelos programas corporativos de integridade não sejam desprezados em um momento de incerteza e alta exposição a risco.
Assim, o programa de integridade deve ser visto como um aliado no momento de crise. Sua adoção pode não só padronizar comportamentos, o que favorece a previsibilidade de ações de funcionários da empresa, como evita maiores danos decorrentes da situação atípica, que poderia levar ao descumprimento da Lei Anticorrupção, por exemplo. É importante que se confirme a independência e se atribua orçamento adequado para a área de compliance, a fim de conservar a governança interna diante do cenário desafiador e mutável que a empresa enfrenta.
Diretrizes sobre o relacionamento com a Administração Pública se mostram ainda mais necessárias em um ambiente de flexibilização de regras estabelecidas pelo Estado. Por isso, devem ser reiteradas e adaptadas para continuarem a ter eficácia:
- Reuniões, mesmo que virtuais, devem continuar sendo realizadas de forma íntegra e transparente, com a manutenção de agendamento e pautas prévias, além da participação, como boa prática, de ao menos dois funcionários da empresa.
- Registros em atas devem continuar sendo feitos após reunião com representantes da Administração Pública, mesmo que ela tenha sido realizada de modo remoto. Ainda, muitas ferramentas disponíveis atualmente, como Microsoft Teams e Zoom, permitem a gravação da reunião, uma boa prática que também pode ser adotada pela companhia.
- O relacionamento com a Administração Pública deve continuar sendo feito por escrito (via e-mails), seguindo as melhores práticas e com a maior clareza possível sobre o intuito da comunicação. O momento de urgência e a necessidade de rápida comunicação podem levar à falta de atenção quanto à comunicação escrita – é vital que isso seja monitorado na interação com agentes públicos para evitar escrita dúbia.
- Doações – crescentes neste momento de solidariedade – devem ser cuidadosamente registradas e direcionadas diretamente ao beneficiário, sem intermediações de terceiros e com propósito claro e lícito, a fim de manter e reforçar a conformidade com as políticas internas e a legislação aplicável. As doações não devem ser feitas com exigências ou expectativas de benefícios ou contrapartidas da Administração Pública, sob pena de desvirtuar a natureza jurídica da doação e violar as leis anticorrupção e de contratação pública.
- O programa de integridade da empresa deve continuar visível e operante durante o momento de crise, apesar do trabalho remoto e da diminuição de contato direto entre a área de compliance e outras áreas da empresa. A divulgação de políticas e procedimentos deve ser feita constantemente, seja por encaminhamento de e-mails ou por envio de mensagens diretas aos funcionários por outros aplicativos. Além disso, como muitas vezes as políticas internas são concentradas na intranet, é recomendável – caso esse ambiente seja inacessível fora da companhia – que se crie uma pasta para acesso remoto, por exemplo, através do compartilhamento e armazenamento em nuvem.
- Os ciclos de treinamentos dos programas de integridade não devem ser interrompidos. Pelo contrário, recomenda-se que sejam intensificados para garantir que a equipe seja comunicada e treinada sobre as flexibilizações do programa de compliance para enfrentar as situações excepcionais e emergenciais. A tecnologia, nesse sentido, deve ser utilizada em favor do programa, com a adaptação de treinamentos presenciais para a forma remota, a criação ou adaptação de canais diretos com a área de compliance para resolução de dúvidas e divulgação de lembretes sobre regras em maior evidência no momento de crise.
- A manutenção do canal de denúncias/comunicação como um canal aberto de comunicação entre empresa e funcionário é essencial para detectar comportamentos disruptivos. Esse canal deve continuar ativo, disponível e ser gerenciado em intensidade igual ou maior do que antes. Muitas indústrias estão passando por um momento de reforço de contingente, para que não faltem alimentos e remédios nos mercados e farmácias do país. Isso torna a rotina de trabalho mais intensa. Situações de estresse acabam levando ao uso da ferramenta de comunicação, e a gestão dessa demanda deve ser feita com atenção para evitar problemas que possam afetar outras esferas, como a trabalhista.
- Com relação às doações para organizações não governamentais e entidades do terceiro setor que se proponham a combater a pandemia de covid-19, recomenda-se que o mesmo processo de verificação e validação seja mantido, com mais celeridade se possível, porém com o mesmo nível de cautela e profundidade. Diligências prévias de verificação da regularidade jurídica, situação das certificações, histórico reputacional e checagem de mídia adversa, mais do que nunca, continuam recomendáveis nesse momento de crise.
O melhor meio para evitar problemas futuros no âmbito da integridade é a manutenção e atualização de diretrizes comportamentais, dos registros de iniciativas e da promulgação da comunicação interna. É necessário lembrar que em alguns meses, a rotina voltará ao normal e eventuais más condutas durante a pandemia poderão ter consequências.
A CGU, em suas diretrizes, estabelece que é papel da empresa adaptar o programa de integridade à sua realidade. Pois bem, na realidade da covid-19, cabe à empresa garantir que seu programa não seja descontinuado nem negligenciado, mas sim utilizado de forma adequada à situação atual, demonstrando comprometimento com as regras brasileiras de integridade.