No quinto e último artigo da série "Gaming, betting e eSports Law: o que você precisa saber?" analisamos como as empresas podem atuar de forma ética, responsável e em conformidade com as regulações aplicáveis.
O objetivo é fornecer informações que ajudem as empresas a fortalecer sua segurança jurídica e gerenciar adequadamente os riscos envolvidos, para que possam aproveitar ao máximo as oportunidades e colher melhores resultados de suas práticas.
Privacidade e proteção de dados pessoais. As atividades que envolvem as práticas de gaming, e eSports, ainda que variem de perfil e estrutura de governança, usam dados pessoais para sua execução. Ou seja, dados que permitam extrair informações sobre os indivíduos envolvidos nessas atividades, principalmente jogadores, apostadores e empregados.
É fundamental que as empresas tenham uma governança sólida dos dados pessoais para mitigar riscos e estejam plenamente adequadas à legislação de proteção de dados pessoais, em especial à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) e sua regulação pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD). Uma governança sólida também será profundamente estratégica para que as empresas possam utilizar os dados com conformidade jurídica e estejam bem-preparadas para o recebimento de investimentos, posicionando-se de forma consistente nas due diligences às quais forem submetidas.
Assim, as empresas também precisam estar prontas para prestar contas de suas atividades. Para isso, devem:
- ter a privacidade como elemento-chave de sua visão e missão;
- estruturar uma equipe responsável pelas questões de privacidade e, principalmente, nomear um encarregado de proteção de dados (Data Protection Officer);
- elaborar e manter atualizados inventários de dados, especialmente de registro das operações que envolvem dados pessoais, com a identificação e o mapeamento de todas as bases legais e a produção dos documentos pertinentes;
- estabelecer rotinas que consolidem o ideal de privacy by design para que a privacidade e a proteção de dados pessoais estejam integradas em todas as atividades da organização;
- realizar todas as avaliações pertinentes e necessárias, como:
- testes de balanceamento para atividades que se valham do legítimo interesse;
- relatórios de impacto relativos à proteção de dados para tratamentos de dados de alto risco e outras situações;
- avaliações de inteligência artificial;
- avaliações de fornecedores;
- avaliações dos controles e rotinas de segurança da informação; e
- due diligences pertinentes
- elaborar e atualizar políticas e avisos de privacidade;
- elaborar e manter um plano de atendimento às requisições de titulares de dados pessoais.
- implementar medidas de treinamento e conscientização dos profissionais;
- preparar adequadamente os contratos da empresa, com uma configuração clara sobre o papel do agente de tratamento e demais cláusulas pertinentes;
- adotar todas as medidas técnicas ou administrativas para evitar qualquer tratamento ilícito ou inadequado de dados pessoais e incidentes de privacidade, incluindo a elaboração de plano de resposta e remediação de incidentes de privacidade que prevejam exercícios simulados de verificação prática de riscos e procedimentos.
Nudges techniques e dark patterns. Para manter a conformidade com a legislação aplicável, especialmente de privacidade e de proteção envolvendo públicos específicos, como crianças, adolescentes e idosos, é altamente recomendável evitar a adoção de nudges techniques e dark patterns.
As avaliações técnicas e jurídicas preventivas são ótimas iniciativas para mitigar riscos e evitar o desperdício dos investimentos aplicados. Elas podem prevenir o lançamento de jogos em desacordo com as melhores práticas, ou que seja necessário prejudicar o fluxo de produção para efetuar correções ou ajustes.
- Nudges techniques são recursos utilizados no decorrer do jogo que guiam ou levam o usuário a seguir o caminho que o desenvolvedor deseja. Porém, se a técnica ou esse “caminho” prejudicar direitos do jogador, essas práticas devem ser evitadas.
- Dark patterns são nudges techniques mais ostensivas ou que exercem um poder de pressão maior sobre o usuário para que ele opte pelo que é melhor para o desenvolvedor. Entre os exemplos do que deve ser evitado na avaliação inicial e no desenvolvimento da prática, produto ou serviço – seja qual for sua modalidade ou plataforma de uso –, estão os seguintes recursos:
- play to skip, em que os jogadores são “convidados” a pagar um valor para fazer progressos durante o jogo;
- play to unlock, em que os jogadores são “convidados” a pagar um valor para liberar determinadas etapas do jogo ou conteúdos específicos; e
- dayly rewards, em que os jogadores recebem prêmios ou itens do jogo diariamente, o que os leva a frequentar o jogo com assiduidade.
Crianças e adolescentes. Considerado um dos principais públicos-alvo dessas práticas, há preocupações e riscos diretamente relacionados à proteção das crianças e adolescentes. É importante garantir que o desenvolvimento das práticas voltadas para esse público estejam alinhadas com a legislação, principalmente com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), o Código de Defesa do Consumidor (CDC) e a LGPD.
A mitigação dos riscos legais e a credibilidade dos games estão diretamente relacionadas à capacidade das empresas de inserir parâmetros legais de proteção no processo de desenvolvimento dos jogos. Avaliações e alinhamentos jurídicos são fundamentais.
Entre as principais medidas a serem consideradas estão:
- adotar mecanismos de identificação dos jogadores menores de 18 anos com elevado grau de precisão e implementar ferramentas e comunicações que desincentivem falsas declarações de maioridade.
- priorizar práticas e iniciativas que não sejam prejudiciais à saúde e ao bem-estar das crianças. Por exemplo, é recomendável adotar medidas para desincentivar a permanência por longos períodos contínuos nos games. Entre essas medidas estão:
- introduzir checkpoints frequentes;
- evitar o uso de loot boxes que tenham como condição de elegibilidade a permanência no jogo por longo período;
- adotar protocolos relacionados a idades diferentes para encorajar os jogadores a realizar intervalos; e
- não associar os resultados dos jogos ou o sucesso durante o jogo a grandes períodos de permanência.
- ter atenção com as práticas publicitárias enganosas (que não condizem com a realidade) e abusivas (que se aproveitam da fragilidade ou desconhecimento do público infantil) destinadas à comercialização dos games, serviços ou itens relacionados.
- priorizar como padrão a não adoção de profiling[1] ou perfilamento dos jogadores para fins de marketing ou publicitários, especialmente aqueles relacionados ao monitoramento de comportamentos dos usuários.
- implementar medidas de monitoramento ou controle dos games, publicidades e migrações dos jogadores para atividades de terceiros que podem não estar no mesmo nível de adequação e conformidade.
- evitar o uso de nudges techniques e dark patterns na jornada dos jogadores, principalmente pela maior vulnerabilidade desse público.
- adotar meios adequados para identificar comportamentos inadequados ou ilícitos em espaços de interação (vídeo, chat etc.), incluindo as situações extremas em que adultos participam do jogo para a prática de crimes relacionados à exposição e/ou pornografia infantil.
Inteligência artificial. As práticas se valem de ferramentas de inteligência artificial em boa parte de seus processos e operações. É importante que as empresas busquem a segurança jurídica necessária para o uso da inteligência artificial, com a adoção das melhores práticas para o uso dessa tecnologia, para minimizar riscos, maximizar oportunidades e garantir níveis adequados de ética, transparência, confiabilidade e segurança da informação.
Entre as iniciativas, recomenda-se:
- desenvolver e aplicar frameworks e soluções para governança ética e de conformidade legal, com a identificação dos parâmetros éticos, legislações e precedentes nacionais e estrangeiros aplicáveis, destacando-se, por exemplo, a recente aprovação do AI Act pela União Europeia;
- elaborar políticas e documentos de transparência aplicáveis;
- elaborar avaliações necessárias, como aquelas relativas à proteção de dados pessoais e ao uso de inteligência artificial;
- avaliar e contratar fornecedores;
- monitorar e fazer auditoria dos sistemas de inteligência artificial; e
- treinar e conscientizar as equipes responsáveis, inclusive com políticas de uso consciente desses sistemas para proteção dos dados pessoais e da propriedade intelectual da empresa.
Segurança da informação. O tema da segurança da informação também é um fator de alta sensibilidade. As empresas precisam estar preparadas para mitigar riscos de fraudes digitais, ataques cibernéticos e crises, assim como se manter prontas para responder adequadamente a todas essas situações.
É fundamental que as empresas se concentrem na:
- preparação, desenvolvendo planos e estruturas adequados para gerenciar o risco cibernético e responder a incidentes de forma rápida e eficaz. Para isso, é recomendável elaborar e revisar planos de resposta, políticas, contratos, campanhas, códigos de conduta e estruturas de governança corporativa, para reduzir a exposição a riscos e garantir a preservação de provas eletrônicas, com base nas melhores práticas do mercado, nas normas ISO ABNT 27.000 e 31.000, em práticas COBIT, ITIL, NIST, direito comparado e legislação vigente.
- resposta, mantendo-se preparadas para conter os impactos negativos do evento, assegurar a continuidade do negócio e proteger a reputação da marca. Para isso, é recomendável que as empresas estejam prontas para investigar incidentes, preservar as evidências necessárias, conduzir crises interagindo com as autoridades e reguladores, a alta administração e outros públicos envolvidos, como empregados, fornecedores e clientes.
- remediação, mantendo-se preparadas para mitigar o impacto de ações judiciais resultantes do incidente – incluindo responsabilização –, ações coletivas, procedimentos administrativos, entre outros. Também é recomendável que as empresas estejam preparadas para revisar os incidentes em um processo de avaliação de gaps e lições aprendidas que ajuda a fortalecer a segurança da informação da organização.
[1] A conduta de profiling ou perfilamento consiste em qualquer forma de tratamento automatizado de dados pessoais que avalie os aspectos pessoais relativos a um indivíduo. O objetivo é analisar ou prever aspectos relativos ao desempenho do titular dos dados, situação econômica, saúde, preferências ou interesses pessoais, confiabilidade ou comportamento, localização ou movimentos.