O segmento de “última milha” (last mile) corresponde à etapa final da distribuição, na qual as encomendas são levadas do ponto mais próximo da cadeia logística diretamente ao consumidor. Esse tipo de operação não tem regulação específica aplicável, o que gera oportunidades de mercado, mas também uma série de incertezas jurídicas.

Neste breve artigo, exploramos o contexto regulatório desse segmento de transporte logístico, as últimas iniciativas das autoridades reguladoras para sistematizar o assunto e apontamos alguns dos principais desafios enfrentados pelos players desse mercado.

O segmento last mile

Desde 2016, o aumento das transações no e-commerce tem ampliado a demanda por entregas rápidas e personalizadas. Em 2023, o e-commerce representava 9,2% do varejo total no Brasil, mais do que o dobro de sua participação em 2016 (4,2%).[1] O crescimento desse mercado reflete mudanças nos hábitos de consumo, com uma maior preferência por compras on-line e entregas ágeis.

A entrega das mercadorias vendidas por marketplaces, de maneira geral, envolve três etapas logísticas: first mile, middle mile e last mile.

Enquanto a primeira delas engloba o transporte da mercadoria do fornecedor ou produtor até o centro de distribuição regional ou armazém, a segunda abarca o transporte do local onde o produto está armazenado até o centro de distribuição mais próximo do destino final. O last mile é a última etapa da cadeia logística de transporte. Consiste na entrega ao consumidor final, a partir do centro de distribuição mais próximo, localizado em centros urbanos ou o mais próximo possível deles.

Impulsionado pelo e-commerce, o mercado de transporte municipal ou intraestadual de pequenas cargas registrou crescimento, concentrado nos grandes centros urbanos brasileiros. A etapa last mile é realizada por diversos prestadores de serviços, desde grandes transportadoras até trabalhadores autônomos que utilizam veículos leves – como carros e motocicletas – e a tração humana – como as bicicletas – para percorrer pequenas distâncias.

No entanto, existem diversos desafios inerentes ao segmento last mile, como trânsito intenso, custos inesperados decorrentes de legislação e/ou regulamentação local específica, violência nos centros urbanos e ausência de regulamentação uniforme entre as cidades.

Em relação a esse último fator, percebe-se que práticas de mercado vêm sendo adotadas justamente para suprir lacunas da legislação e regulamentação em vigor.

Reunião participativa da ANTT e as ações para instituir uma regulação de uniformização de práticas para o last mile

Em abril de 2024, a Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT) realizou a Reunião Participativa 9/24, para colher contribuições e discutir a regulação do mercado do transporte rodoviário de pequenas cargas de e-commerce na etapa last mile.

A agência relatou dificuldade do regulador em acessar os grandes players do e-commerce para realizar visitas técnicas e discutir a regulamentação da etapa last mile. Ao mesmo tempo, a agência ressaltou que há preocupação do público regulado sobre o modelo regulatório a ser adotado e a extensão da agenda regulatória, ou seja, o quanto a agência passaria a intervir no segmento – que atualmente conta com pouca intervenção regulatória.

Nesse sentido, a iniciativa buscou colher subsídios e discutir o modelo regulatório a ser adotado pela ANTT. Na reunião, diversos agentes do mercado se manifestaram, incluindo representantes de grandes players do e-commerce, sindicatos, transportadoras e órgãos governamentais.

As contribuições refletiram uma ampla variedade de perspectivas, mas pode-se destacar um ponto comum: o consenso entre alguns agentes sobre a necessidade de adaptar a regulação existente às especificidades do mercado de transporte rodoviário de pequenas cargas na etapa last mile.

Essa adaptação é vista como essencial, tanto para assegurar a eficiência do mercado, quanto para garantir o alinhamento às normas regulatórias aplicáveis, sem gerar rupturas socioeconômicas relevantes.

Como resultado das discussões, a ANTT definiu, por meio de um relatório simplificado, os próximos passos relacionados ao tema, que incluem:

  • analisar as contribuições recebidas durante a Reunião Participativa 9/24;
  • promover uma nova rodada de reuniões com o setor e com órgãos governamentais para aprofundar os debates; e
  • avaliar a necessidade de propor medidas regulatórias no âmbito da agência.

Embora os próximos passos estejam bem delineados pela agência, até o momento não foram identificados resultados concretos. Além disso, não houve inclusão do tema relativo a novos mercados de transporte rodoviário de cargas no Plano de Gestão Anual de 2025 da ANTT.

É importante que as discussões sejam retomadas e aprofundadas para assegurar que a regulação acompanhe as especificidades desse mercado em evolução.

Regulação existente sobre o transporte de cargas

O transporte rodoviário de cargas no Brasil é regido por diversas normas legais e regulamentares. A Lei 11.442/07, que trata do transporte de cargas realizado por terceiros mediante remuneração, e a Lei 13.703/18, que estabelece a Política Nacional dos Pisos Mínimos de Frete, são as duas principais normas aplicáveis ao tema.

Além disso, a Resolução ANTT 5.982/22 define os procedimentos para inscrição e manutenção no Registro Nacional de Transportadores Rodoviários de Cargas (RNTRC), fundamental para a regulação da atividade exercida pela ANTT.

Apesar da abrangência dessas normas, nenhuma delas aborda diretamente aspectos fundamentais do transporte urbano de cargas na etapa conhecida como last mile. Essa lacuna normativa gera discussões sobre a aplicabilidade das regras já existentes a essa modalidade de entrega, cada vez mais presente no contexto das operações de players do e-commerce e da logística urbana.

A ANTT relatou que vem recebendo reclamações de concorrência desleal entre os motoristas particulares que utilizam veículos de pequeno porte para realizar entregas – na qualidade de prestadores de serviço de transporte regrado pelo Código Civil (artigo 730 e seguintes) – e os transportadores autônomos de cargas (TAC), que são regulamentados pela Resolução ANTT 5.982/22. 

Um exemplo da lacuna regulatória é a situação dos motoristas particulares que utilizam veículos de pequeno porte para realizar entregas last mile. Esses transportadores, que não são regulamentados e utilizam seus veículos de passeio para realizar entregas, competem diretamente com os TACs.

Definidos como pessoas físicas ou jurídicas (MEI) que realizam atividades de transporte rodoviário remunerado de cargas com até três veículos próprios, os TACs devem cumprir uma série de exigências regulatórias, incluindo a inscrição no RNTRC.

Ciente das reclamações, a ANTT, porém, não apontou solução para a questão.

Desafios de atuação no segmento last mile

Em um mercado competitivo que exige progressivamente redução do tempo de entrega e aprimoramento das operações por meio de inovações tecnológicas, é crucial estabelecer um ambiente regulatório com condições jurídicas e operacionais que estimulem a eficiência do mercado, gerem incentivos à operação das empresas, fomento à inovação e geração de emprego e renda.

A ausência de uma regulação específica impõe grandes desafios. As autoridades reguladoras frequentemente fiscalizam e realizam análises casuísticas de práticas adotadas pelos operadores, para aplicar apenas sanções administrativas, o que gera insegurança jurídica para qualquer negócio.

Para as empresas de e-commerce, a falta de clareza regulatória – isto é, uma definição clara da posição institucional dos reguladores sobre diversos aspectos relevantes de suas operações – representa um obstáculo à interlocução com as autoridades e ao próprio desenvolvimento das atividades econômicas. Essa situação cria um ambiente que, embora dinâmico, carece de maior segurança jurídica e operacional.

O Machado Meyer tem assessorado diversos players a enfrentar os complexos desafios regulatórios relacionados à logística de entrega de mercadorias. Estamos à disposição para ajudar na interlocução com autoridades públicas em discussões sobre o tema e na construção de soluções eficientes e inovadoras.

 


[1] Nota Técnica SEI 3660/2024/CRTRC/GERET/SUROC/DIR/ANTT. Processo 50500.136500/2024-00.