Em decisão inédita, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, no dia 5 de abril, que a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) pode ser aplicada em casos nos quais as vítimas são mulheres transgênero. A decisão ocorreu no julgamento do Recurso Especial 1.977.124, referente ao caso de uma mulher trans espancada pelo próprio pai, que não aceitava o fato de ela se identificar com outro gênero. A mulher requereu medidas protetivas previstas na Lei da Maria da Penha, incluindo o afastamento do agressor do lar.

Apesar de o recurso não ter caráter repetitivo e, portanto, o entendimento valer apenas para o caso em questão, a posição do STJ representa um importante avanço do Judiciário para a consolidação de uma sociedade mais inclusiva.

A Lei Maria da Penha entrou em vigor em agosto de 2006 para tentar prevenir e diminuir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Sua criação está ligada ao emblemático caso de uma farmacêutica cearense chamada Maria da Penha, vítima de dupla tentativa de feminicídio pelo seu ex-marido em 1983. Devido às agressões, Maria da Penha acabou ficando tetraplégica. Apesar de o marido ter sido condenado à prisão em dois julgamentos (em 1991 e 1996), a sentença não foi cumprida por questões processuais.

Diante do descaso da Justiça brasileira, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Brasil em 2001 por omissão e negligência em relação à violência doméstica praticada contra as suas cidadãs. Pressionada, a Justiça finalmente decretou a prisão do marido de Maria da Penha em 2002, 19 anos após o crime, que estava prestes a prescrever.

Desde então, o alcance da Lei Maria da Penha era determinado pelos tribunais de justiça dos estados, que, via de regra, negavam às mulheres transgênero a possibilidade de utilizar as prerrogativas da lei para sua proteção, alegando que a legislação não seria aplicável a elas devido a seu sexo biológico.

No caso em questão, na 1ª instância, o juiz negou as medidas protetivas requeridas, pois, em sua interpretação, a expressão “gênero” somente incluiria sexo biológico feminino, portanto não se aplicaria ao caso. Ao julgar recurso impetrado pelo Ministério Público de São Paulo, o Tribunal de Justiça de São Paulo confirmou a sentença, justificando que “mulher” e “homem” seriam conceitos científicos e biológicos, impossibilitando, portanto, a aplicação da Lei Maria da Penha às mulheres trans.

O Ministério Público recorreu ao STJ argumentando que a própria Lei Maria da Penha determina que ela se aplica ao gênero feminino e não ao sexo feminino. Caberia, portanto, a simples aplicação literal da lei, em respeito ao seu artigo 5º, que configura como violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que cause a ela morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.

Em voto extremamente fundamentado, contendo ementas, doutrinas, dados estatísticos e tabelas explicativas, o ministro relator do recurso, Rogério Schietti, discorre sobre a diferença entre gênero, sexo e identidade de gênero, singularizando como premissa: “mulher trans mulher é”.

O ministro frisou a existência da transfobia na sociedade brasileira, enfatizando que o Brasil é o país recordista em índices de assassinatos de pessoas trans do mundo. A informação é confirmada por estudo realizado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), segundo o qual pelo menos 140 pessoas trans foram assassinadas no ano passado no Brasil, 135 delas travestis, números que tornam o país aquele onde mais se assassina pessoas trans no mundo pelo 13º ano consecutivo.

Em sua explanação, o relator explicou ainda que o julgamento tratava da “vulnerabilidade de uma categoria de seres humanos”, que não pode ser resumida à objetividade de uma ciência exata. As existências e as relações humanas são complexas, e o Direito não se deve alicerçar em discursos rasos, simplistas e reducionistas, especialmente nestes tempos de naturalização de falas de ódio contra minorias”.

Ao concluir, o ministro salientou ser descabida a preponderância de um fator meramente biológico sobre o que realmente importa para a incidência da Lei Maria da Penha, com todo o seu arcabouço protetivo, inclusive a competência jurisdicional para julgar ações penais decorrentes de crimes perpetrados em situação de violência doméstica, familiar ou afetiva contra mulheres”.

Seguindo o entendimento do relator, a 6ª Turma acolheu o recurso do Ministério Público, estendendo às mulheres trans a aplicação da Lei Maria da Penha e, consequentemente, de suas medidas protetivas.

A decisão do STJ corrobora o princípio constitucional da isonomia. É um exemplo de inclusão e dá novo enfoque ao posicionamento da Justiça em relação à violência contra a mulher e pessoas trans. Espera-se que esse julgamento sirva de referência para casos semelhantes e permita que as mulheres trans possam, efetivamente, contar com a proteção do nosso ordenamento jurídico e o Brasil deixe de ocupar a vergonhosa liderança entre os países que mais matam pessoas trans no mundo.

 


 Fontes:

Site Consultor Jurídico – ConJur: Voto do ministro Rogerio Schietti REsp 1.977.124

Site do STJ – Lei Maria da Penha é aplicável à violência contra mulher trans, decide Sexta Turma

Dossiê Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2021

Lei 11.340

Site do Instituto Maria da Penha

Site Migalhas: STJ: Lei Maria da Penha pode ser aplicada para mulheres transexuais