A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), em linha com o movimento de atualização, consolidação e simplificação do arcabouço normativo que regula o mercado de capitais brasileiro iniciado em 2020, editou, em 29 de março de 2022, a Resolução CVM 80, “que dispõe sobre o registro e a prestação de informações periódicas e eventuais dos emissores de valores mobiliários admitidos à negociação em mercados regulamentados de valores mobiliários”. A resolução revoga diversas instruções anteriores, sendo as mais relevantes a Instrução CVM 480 (que dispõe sobre o registro de emissores de valores mobiliários) e a Instrução CVM 367 (que dispõe sobre a declaração a ser prestada por administradores de companhias abertas quando de sua eleição).
Com a revogação de dez instruções anteriores, a Resolução CVM 80, na prática, consolidou em uma única norma as regras referentes ao registro e à prestação e divulgação de informações periódicas eventuais por emissores de valores mobiliários, sem alterações significativas das obrigações existentes. A exceção foi a instituição de uma nova obrigação aplicável às companhias abertas registradas na categoria “A”, relativa à divulgação de informações sobre demandas societárias envolvendo as próprias companhias, seus acionistas ou seus administradores, como partes.
A criação dessa obrigação não é novidade para os participantes, uma vez que o tema foi colocado em audiência pública pela CVM em 2021, na qual a autarquia destacava o propósito de aprimorar os mecanismos de proteção aos investidores e acionistas minoritários, baseada, entre outras questões, nas recomendações da OCDE em seu relatório Private Enforcement of Shareholder Rights: A Comparison of Selected Jurisdictions and Policy Alternatives for Brazil, publicado em novembro de 2020.
Nas razões expostas no edital da audiência pública, a CVM sustenta que os deveres de comunicação hoje existentes não são suficientes para dar aos investidores das companhias abertas visibilidade adequada sobre demandas envolvendo a companhia investida que, muitas vezes, referem-se a discussões sobre questões que podem, direta ou indiretamente, se relacionar a direitos caros aos acionistas.
As demandas societárias que deverão ser divulgadas pelas companhias abertas registradas na categoria A são todo processo judicial ou arbitral cujos pedidos estejam, no todo ou em parte, baseados em legislação societária ou do mercado de valores mobiliários, ou nas normas editadas pela CVM, desde que tais demandas envolvam as próprias companhias, seus acionistas ou administradores e que, alternativamente, envolvam direitos ou interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos; ou nas quais possa ser proferida decisão cujos efeitos atinjam a esfera jurídica da companhia ou de outros titulares de valores mobiliários de emissão do emissor que não sejam partes do processo, tais como ação de anulação de deliberação social, ação de responsabilidade de administrador e ação de responsabilidade de acionista controlador.
O Anexo I da Resolução CVM 80 estabelece o conteúdo mínimo que deverá ser divulgado. Ele se aproxima muito do conteúdo que já era exigido em relação aos processos judiciais relevantes, nos itens 4.3 a 4.7 do formulário de referência, que incluem partes do processo, os valores, bens ou direitos envolvidos e os principais fatos.
Para além das informações que já seriam usualmente divulgadas, a norma passa a exigir que sejam informados expressamente:
- No caso de processos judiciais – pedidos ou provimentos pleiteados, decisões sobre pedidos de tutelas de urgência e evidência, decisões sobre jurisdição e competência, decisões sobre inclusão ou exclusão de partes e julgamentos de mérito ou extintivos do processo sem julgamento de mérito, em qualquer instância; e
- No caso de arbitragem – apresentação de resposta, celebração de termo de arbitragem ou documento equivalente que represente estabilização da demanda, decisões sobre medidas cautelares ou de urgência, decisões sobre jurisdição dos árbitros, decisões sobre inclusão ou exclusão de partes e sentenças arbitrais, parciais ou finais. Em relação a ambos os tipos de demanda societária, a nova obrigação exige a divulgação sobre a celebração de quaisquer acordos realizados nessas demandas.
A nova obrigação de divulgação não interfere na análise da companhia em relação à necessidade de divulgar a mesma informação por meio de fato relevante, nos termos da norma aplicável. Ou seja, independentemente da divulgação prevista na Resolução CVM 80, as companhias deverão fazer a sua própria análise para avaliar se é necessário divulgar a informação por meio de um fato relevante, ficando dispensadas de apresentar o informe, desde que o fato relevante contenha todas as informações requeridas pela resolução.
A Resolução CVM 80 também estabelece que as obrigações de sigilo previstas no regulamento das câmaras arbitrais não devem se sobrepor ao cumprimento da nova obrigação regulatória, observadas as regras legalmente estabelecidas a respeito do sigilo dessas demandas.
A divulgação desse tipo de informação é um tema polêmico por si só. Em diversas ocasiões, esse tipo de demanda tramita em órgãos arbitrais institucionais que têm regras rígidas sobre o sigilo das causas. Isso, inclusive, pode ser considerado uma das razões que levam as companhias a preferir esse tipo de meio para administrar e resolver conflitos societários, dado o potencial lesivo que uma demanda societária tem para a imagem das companhias.
Sobre isso, a própria CVM cuidou de incluir seus argumentos quanto à questão do sigilo no edital de audiência pública, ressaltando que “os regulamentos das câmaras não podem contrariar dispositivos legais e regulamentares” e “que as obrigações de divulgação refletem preocupações centrais do regramento do mercado de capitais e não podem ser afastadas por convenções de arbitragem, regulamentos de câmaras arbitrais ou por qualquer outra convenção, respeitadas as hipóteses e observados os limites aplicáveis de sigilo decorrentes de lei”.
Em relação ao tema, as manifestações dos participantes, contidas no relatório da audiência pública da qual resultou a criação da obrigação (no sentido de que a confidencialidade da arbitragem também tem amparo legal e que um conjunto menor de informações deveria ser exigido de demandas sigilosas), já dão o tom das possíveis discussões em torno do conflito normativo entre as regras que estabelecem o sigilo das demandas arbitrais e a nova obrigação estabelecida pela CVM.
Apesar das polêmicas que envolvem o tema e que certamente ainda renderão discussões, a Resolução CVM 80 entrará em vigor em 2 de maio. A aplicação da nova obrigação de divulgar demandas societárias será compulsória para as demandas societárias instauradas a partir dessa data e facultativa para aquelas iniciadas antes da vigência da norma.