Desde novembro de 2017, quando a Reforma Trabalhista estabeleceu que os “prêmios” não estão sujeitos à incidência de encargos trabalhistas e previdenciários, muito se tem discutido qual seria a interpretação da Receita Federal para esse instituto e os requisitos para sua caracterização. A questão ganha força quando se leva em conta que a legislação previdenciária também não define  o conceito de prêmio.

Como já havíamos discutido neste artigo, com base nas novas disposições implementadas pela Reforma Trabalhista, o principal fator capaz de gerar diferentes interpretações é a falta de clareza na definição dos requisitos “pagamento por liberalidade” e “pagamento em razão de desempenho superior ao ordinariamente esperado”. O que seria um pagamento por liberalidade? Qual seria o desempenho superior ao ordinariamente esperado que autorizaria o pagamento do prêmio?

Naquela oportunidade, identificamos duas principais correntes de interpretação para o “pagamento por liberalidade”.

A primeira é que liberalidade seria tudo o que é concedido pela empresa, mas não exigido pela lei. Nesse caso, seria possível defender que o prêmio abrangeria toda e qualquer forma de remuneração variável, ainda que contratualmente acordada, pois, na maioria absoluta dos casos, a empresa não é obrigada a pagar remuneração variável.

A segunda é que liberalidade seria tudo o que é concedido pela empresa e que, além de não exigido pela lei, também não tenha sido contratualmente acordado. Nesse caso, o prêmio teria abrangência limitada apenas aos pagamentos feitos de forma espontânea e inesperada pelo empregador. O prêmio pago por mera liberalidade não poderia ser equiparado ao prêmio ajustado contratualmente (em contratos, políticas, ofertas de trabalho etc.), na medida em que esse ajuste prévio afastaria sua caracterização como liberal, transformando-o em obrigação contratual.

O requisito “pagamento em razão de desempenho superior ao ordinariamente esperado” também poderia gerar diferentes interpretações: uma delas é que o salário fixo remuneraria o desempenho ordinariamente esperado, e a remuneração variável retribuiria o desempenho superior ao ordinariamente esperado. A outra é que somente a parcela da remuneração variável devida pela superação das metas remuneraria o desempenho superior ao ordinário. Essa última seria uma interpretação mais restritiva.

Pois bem. A Receita Federal, por meio da Solução de Consulta Cosit nº 151, de 14 de maio de 2019, manifestou sua interpretação sobre esses requisitos.

Em resumo, para a Receita Federal, a partir de 11 de novembro de 2017, não integram a base de cálculo das contribuições previdenciárias os prêmios, ainda que habituais,[1] que (i) não decorram de obrigação legal ou de ajuste expresso, hipótese em que restaria descaracterizada a liberalidade do empregador; e (ii) decorram de desempenho superior ao ordinariamente esperado, devendo o empregador comprovar, objetivamente, qual o desempenho esperado e também o quanto esse desempenho foi superado.

Ou seja, ao interpretar o requisito “pagamento por liberalidade”, a Receita Federal optou pela segunda interpretação acima, mais restritiva, limitando a abrangência do prêmio apenas aos pagamentos feitos de forma espontânea e inesperada que não decorram de ajustes contratuais (em contratos, políticas, ofertas de trabalho etc.).

Entendemos que essa interpretação, entretanto, vai além do previsto em lei e pode ser questionada judicialmente, na medida em que a Reforma Trabalhista não restringiu o prêmio a pagamentos que não tenham sido ajustados expressamente. Ao estabelecer esse requisito, a Receita Federal extrapolou os limites previstos em lei.

Como a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) é muito clara em relação à possibilidade de pagamento habitual de prêmio, a Receita Federal reconhece que a eventualidade não é requisito para a caracterização de prêmio. Não fosse esse ponto, em linhas gerais, a interpretação dada ao prêmio em muito se assemelharia à gratificação eventual, a qual não é previamente pactuada e também já não era sujeita a encargos trabalhistas e previdenciários. Sob esse prisma, a interpretação esvazia o tratamento dado aos prêmios pela Reforma Trabalhista. Ora, se o prêmio é equivalente à gratificação eventual, por que a Reforma Trabalhista teria criado um novo instituto?

Com relação ao desempenho superior ao esperado, a Receita Federal entende que é dever do empregador comprovar, objetivamente, qual o desempenho esperado e também o quanto esse desempenho foi superado. Aqui, novamente, a interpretação se mostra contraditória, sendo incompatível com o próprio requisito de “liberalidade”. Como pode o empregador comprovar, objetivamente, o que seria desempenho esperado e superior ao esperado sem ter definido expressamente esse parâmetro?

Em última análise, segundo a interpretação da Receita Federal, caso a empresa divulgue sua expectativa de desempenho de cada cargo e/ou empregado sem prever qualquer premiação, ela poderá, ao fim do período, decidir, por sua liberalidade, que é o momento de premiar aqueles que extrapolaram o desempenho esperado. Esse procedimento certamente também geraria questionamentos fiscais.

Ao estabelecer essa interpretação restritiva, a Receita Federal traz óbices ao pagamento de prêmios pelas empresas, agindo na contramão do disposto no art. 28, §9º, “z”, da Lei n° 8.212/91, que exclui expressamente os prêmios do salário de contribuição. Em lugar de esclarecer o tema e fornecer diretrizes sobre o uso da premiação, o órgão manteve o cenário de incerteza e falta de segurança jurídica, pois, embora não tenha força de lei, a solução de consulta Cosit vincula a administração pública e orienta a atuação dos fiscais.

Nesse contexto, entendemos que as empresas que pagam prêmios a seus empregados devem atentar para os requisitos acima e, caso eles se mostrem incompatíveis com suas práticas, avaliar o interesse em buscar amparo judicial para reconhecer que agiram nos estritos termos da lei, pois, em razão da referida Solução de Consulta Cosit nº 151/2019, os fiscais tendem a autuar esses contribuintes.


[1]Para a Receita Federal, haveria limitação no número de pagamentos anuais apenas no período compreendido entre 14 de novembro de 2017 e 22 de abril de 2018, durante a vigência da Medida Provisória nº 808/2017, segundo a qual o prêmio não poderia exceder o limite máximo de dois pagamentos ao ano.