A Lei 14.193/21, que regulamenta a Sociedade Anônima do Futebol (SAF) – também conhecida como Lei da SAF – foi promulgada em outubro de 2021. Desde então, alguns clubes, como Botafogo, Cruzeiro, Vasco da Gama, América-MG e, mais recentemente, o Clube Atlético Mineiro, aderiram a esse instituto.
Mas, afinal, o que é SAF?
Trata-se da migração de clubes de futebol de associação civil sem fins lucrativos para sociedades anônimas específicas, regidas segundo as características e princípios da Lei da SAF, no modelo clube-empresa.
A estrutura societária dessas sociedades dá aos clubes meios de reestruturar suas dívidas, profissionalizar sua gestão e angariar novas fontes de receitas, inclusive por meio de emissão de instrumentos financeiros ou mesmo ingresso de futuros (acionistas) investidores.
A SAF também dispõe de um sistema tributário diferenciado, estruturado para acomodar as particularidades operacionais e administrativas que envolvem os negócios do esporte.
Formas de constituir uma SAF
O artigo 2º da Lei da SAF prevê que a Sociedade Anônima do Futebol pode ser constituída:
- pela transformação – em que se opera a modificação da natureza do clube, que passa de associação sem fins lucrativos à condição de SAF. Nesse caso, todos os associados convertem-se em acionistas de uma companhia;
- pela cisão – que consiste na operação em que uma pessoa jurídica – no caso, o clube – separa uma parte de seu patrimônio e o transfere para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes. Nesse caso, também ao menos uma parte dos associados converte-se em acionista da companhia; e
- pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento – nesse caso, ocorre a constituição de uma nova sociedade, que vai explorar os negócios do futebol, não existindo, necessariamente, uma relação entre essa nova sociedade (a SAF) e o clube de futebol da qual ela se origina.
Além dessas três formas, a lei estabelece, de maneira apartada em seu artigo 3º, que a SAF poderá ser constituída por meio de drop down. Essa forma de constituição, a mais utilizada, também é respaldada pelo art. 27, § 2º, da Lei 9.615/98 (Lei Pelé).
O drop down tem sido a forma de constituição mais utilizada pelos clubes. Nesse caso, em que o clube será o acionista da SAF e passará a apresentar em seu balanço as ações subscritas, que serão lançadas em contrapartida à baixa, isto é, ao aporte do patrimônio transferido à SAF. Inexiste, em princípio, perda, redução ou ampliação patrimonial. Há apenas uma troca de posições para refletir a substituição de bens diversos por ações.
A forma mais adequada de constituir uma SAF dependerá, fundamentalmente, da análise da estrutura atual de cada clube e da estrutura que se deseja ter.
A autorização dos jogadores é necessária?
No artigo 2º, a Lei da SAF regulamenta as regras para os tipos de constituição da SAF. Nele está previsto – em especial no §1º – que a SAF sucederá o clube nas seguintes hipóteses:
- em todas as relações com entidades de administração (Fifa, federações etc.) e com profissionais do futebol; e
- nos direitos e status esportivos que o clube tiver no momento da constituição da SAF, desde que a constituição se dê na forma de uma transformação (inciso I) ou de uma cisão (inciso II).
A Lei da SAF, nesse segundo ponto, pode dar margem a uma pequena inconsistência regulatória. Em uma interpretação literal, caso não fosse constituída por transformação ou cisão do clube (mas formada por drop down de ativos, por exemplo), a SAF teria que “recomeçar” no futebol, perdendo o status esportivo original do clube. Além disso, para conseguir atuar, precisaria buscar a expressa autorização dos jogadores e demais profissionais do clube, como contraparte dos respectivos contratos de trabalho.
No contexto de uma transformação, porém, nada é alterado em relação à situação dos contratos dos jogadores e demais profissionais do esporte. Afinal, a simples modificação do status da pessoa jurídica com a qual o respectivo profissional mantém vínculo de trabalho não é elemento suficiente para legitimar qualquer oposição – caso não se alterem, é claro, as demais condições contratuais aplicáveis. A relação contratual permanece rigorosamente a mesma.
A Lei da SAF, portanto, no § 1º do art. 2º, apenas acompanha os princípios societários essenciais do direito privado brasileiro. Dessa forma, todos os contratos firmados com os jogadores serão mantidos quando o clube for transformado em SAF.
No caso de constituição por meio da cisão do clube (seguida pela formação de uma SAF a partir do acervo patrimonial cindido), não há necessidade de autorização dos jogadores; a transferência dos contratos de trabalho para a SAF é obrigatória. Isso decorre da própria lógica societária referente à cisão, além, é claro, do disposto de maneira expressa no § 1º do art. 2º da Lei da SAF.
Na constituição da SAF por drop down, haverá um novo registro dos jogadores na CBF e um novo CNPJ do empregador. Portanto, será feito um novo contrato. Consequentemente, a assinatura dos jogadores será necessária.
Isso, porém, não deveria ser visto como necessidade de autorização dos jogadores para a cessão dos contratos, mas apenas como mera formalidade jurídica e documental. Seria possível, inclusive, caracterizar abuso de direito por parte dos profissionais que se opusessem, sem motivos justos e concretos, à cessão de seus contratos para as SAFs dos clubes aos quais estão vinculados.
A mesma lógica de constituição por meio da cisão deveria, portanto, ser seguida, sem dificuldades, no caso de constituição da SAF por meio de drop down, apesar da falta de clareza legal. Não há qualquer razão para impor requisitos diferentes para a transferência dos contratos de trabalho às SAFs com base apenas na forma jurídica escolhida para constituí-las.
Qual a diferença entre um clube que forma a sua SAF a partir da cisão do seu patrimônio de futebol e outro que opta por constituir uma SAF com o aporte de ativos – incluindo contratos dos jogadores?
Há algo que justifique não ser necessária a autorização dos jogadores na primeira situação, mas ela ser exigida no segundo caso?
Esclarecer alguns fatos pode ajudar a responder a essas questões.
Inicialmente, é importante entender como o termo “cisão” deve ser compreendido no texto legal analisado. A nosso ver, a Lei da SAF empregou o sentido amplo (não o técnico societário) da palavra, a fim de abarcar tanto a cisão societária propriamente dita, quanto a separação patrimonial – para atribuir posteriormente o acervo patrimonial à SAF (drop down).
Não faz sentido criar qualquer tipo de distinção esportiva entre SAFs e clubes apenas pelo formato jurídico escolhido para sua constituição, especialmente quando todos os direitos de credores do clube são preservados – como ocorre na operação de drop down – e quando as outras opções de constituição podem levar a resultados incorretos ou até indesejados – como tornar, no caso de transformação ou cisão, os associados do clube (e não o próprio clube) sócios da SAF.
Pode-se, portanto, interpretar que o legislador, ao estabelecer expressamente as formas de constituição da SAF no artigo 2º e elencar a cisão no inciso II, também considerou o drop down. Prevalecendo esse entendimento, conclui-se, sem dificuldade, que não haveria necessidade de autorização dos jogadores para a transferência dos seus contratos no caso de a SAF ser constituída por meio de drop down.
Garantir esse direito formal aos jogadores poderia impedir os clubes de formatar a estrutura jurídica mais adequada para constituir suas SAFs. Além disso, possibilitaria ações que tivessem como objetivo tirar vantagens indevidas do clube durante esse processo.
Na redação original da Lei da SAF (quando ela ainda era projeto de lei), a estrutura prevista no inciso II do art. 2º era justamente a do drop down. Somente depois o drop down foi deslocado para o art. 3º, o que abriu espaço para a inclusão da cisão no inciso II (que, vale frisar, não estava contemplada no projeto original da lei).
Após essa modificação no texto, porém, não se atualizou a redação no § 1º do art. 2º. Com isso, a referência expressa ao art. 3º deixou de ser feita.
Na redação original da lei, portanto, em seu § 1º, as mesmas consequências hoje claramente colocadas para a transformação e a cisão também estavam reservadas para o drop down.
É difícil saber as razões pelas quais o texto da Lei da SAF deixou de fazer referência expressa ao drop down quando impôs a transferência automática dos contratos de trabalho do clube às SAFs. Parece claro, porém, que a ideia do legislador sempre foi a de equiparar os institutos para essa finalidade específica.
Muitos daqueles diretamente envolvidos com o processo legislativo da Lei da SAF reconhecem que o disposto para a cisão (parágrafos 1º e 2º do art. 2º) também deve ser aplicado, ainda que por analogia, ao drop down, não havendo razões técnicas ou jurídicas para se fazer diferente,[1] posicionamento com o qual concordamos.
Até o momento, não temos evidências de casos de jogadores e profissionais do esporte que se recusaram a ceder seus contratos para as SAFs.
O tema é atual, e é importante que seja feita uma análise de cada operação. Apesar da posição geral aqui defendida, situações específicas podem demandar outra abordagem, especialmente em casos de simulação, nos quais a constituição da SAF sirva de forma ilegítima para a transferência de jogadores entre instituições esportivas.
Observadas as melhores práticas e cumpridos os critérios e requisitos da legislação, com avaliação personalizada dos impactos, é possível garantir maior segurança jurídica para todas as partes envolvidas.
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[1] Ver MONTEIRO DE CASTRO, Rodrigo R. (Coord.). Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol. Lei nº 14.193/2021. São Paulo: Quartier Latin, 2021. Pg. 96: “O parágrafo 2º é composto de 7 incisos que regulam situações relacionadas à cisão. Apesar de silente, todos eles devem se estender, por analogia, à modalidade consistente na constituição, pelo clube, da SAF (drop down). A aplicação é necessária porque essa via constitutiva se insere, expressamente, no sistema criado pela Lei 14.193/21 e não pode ser considerada como um elemento estranho e divorciado do seu conteúdo. A integração se dá pela aproximação estrutural entre a constituição da SAF e a cisão – em ambos os casos haverá transferência de patrimônio do clube a outra pessoa – ao passo que isso não ocorrerá na transformação ou na constituição por iniciativa de pessoa natural, jurídica ou fundo de investimento.”