A Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) concluiu em agosto o julgamento do Recurso Especial (REsp) 1.837.386/SP, no qual se discutia se o enunciado da Súmula 326 do STJ[1] – editado com base no Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73) – conflitaria com a redação do artigo 292, V do Código de Processo Civil (CPC) vigente.[2]
Entre os dispositivos submetidos à análise da corte no REsp,[3] merece atenção, em matéria processual, o artigo 86 do CPC, segundo o qual as partes devem suportar, proporcionalmente, as custas processuais e os honorários advocatícios de sucumbência na hipótese de sucumbência recíproca.
De acordo com o recente entendimento do STJ, firmado por ocasião do julgamento do REsp 1.837.386/SP, nas ações de indenização por dano moral, ainda que o montante indenizatório arbitrado pela sentença seja ínfimo se comparado ao valor indicado no pedido inicial, “não há falar em sucumbência dos autores da demanda, vencedores em seu pedido indenizatório”, o que reforça o teor do enunciado da Súmula 326.
Isso porque seria facultado ao autor formular pedido de indenização por danos morais de forma estimativa, como, por exemplo, com a utilização “de fórmulas genéricas como ‘indenização não inferior a’, sem que a condenação em montante superior a sua estimativa qualifique decisão ultrapetita”.
A discussão submetida ao STJ é antiga e objeto de divergência. De um lado, há quem defenda, na doutrina[4] e na jurisprudência,[5] a manutenção da vigência do enunciado da súmula. Considerando que o juiz, em tese, não ficaria vinculado à quantia pleiteada na petição inicial para fixação do quantum indenizatório, prevaleceria o entendimento de que, julgado procedente o pedido de indenização por danos morais, ainda que em quantia inferior à pleiteada, não haveria sucumbência parcial ou recíproca entre as partes.
Nesse passo, embora o artigo 292, V, do CPC exija expressamente que o pedido de danos morais seja quantificado e determinado pelo autor quando do ajuizamento da ação, a sucumbência total seria da parte ré, uma vez que o valor indicado na inicial para o arbitramento da indenização por danos morais seria meramente estimativo.
Do ponto de vista do direito constitucional, a primeira corrente busca tutelar o pleno acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV, da CF), por entender que o risco de a parte incorrer no pagamento de verba sucumbencial, no caso de acolhimento parcial do pleito indenizatório, pode inibir o ajuizamento de ações visando à reparação por danos morais. Na prática, isso não raras vezes acontece, já que o valor indenizatório deriva da avaliação subjetiva do magistrado.
Na linha do entendimento mantido pelo STJ por ocasião do julgamento do REsp 1.837.386/SP, seria incoerente impor ônus sucumbenciais ao autor que ganhou a ação de pedido de indenização por danos morais, uma vez que, a depender da situação, o valor da indenização fixada pelo juízo poderia ser, inclusive, inferior aos honorários advocatícios impostos ao vencedor da demanda.[8]
Assim, ao manter o entendimento disposto na Súmula 326, o STJ demonstra zelar pelos potenciais efeitos e consequências jurídicas que decorreriam de eventual superação do referido precedente, como dispõe o art. 21 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB).[9]
Por outro lado, quanto à segunda corrente, não há como ignorar que o CPC é explícito ao exigir que o autor apresente pedido certo e determinado na “ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral”, não cabendo pedido genérico ou por estimativa. Muito embora se reconheça a existência de autorização legal do artigo 324, §1º, II, do CPC para a formulação de pedido genérico, “quando não for possível determinar, desde logo, as consequências do ato ou do fato”, essa hipótese não se aplica a demandas que pretendem indenização por danos morais.
Isso porque, embora seja inegável a instabilidade da jurisprudência, os jurisdicionados – sobretudo com o advento da internet – têm amplo acesso a inúmeros parâmetros para quantificar a pretensão indenizatória conforme o caso concreto – como pesquisa jurisprudencial nos tribunais de todos os estados na federação, elaboração de estudos de jurimetria, entre outros.
Ainda que a sentença não venha a fixar a exata quantia indenizatória pleiteada na petição inicial, caberia ao juiz avaliar se, no caso concreto, o autor teria decaído em parte mínima do pedido que justificasse a condenação exclusiva do réu aos ônus sucumbenciais, como dispõe o parágrafo único do artigo 86 do CPC.
Essa interpretação prestigia a sistemática prevista no artigo 7º do CPC, assegurando às partes o exercício do contraditório, na medida em que, além de possibilitar ao réu discutir a extensão do valor pretendido pelo autor, impede a formulação irresponsável de indenização por dano moral em razão da possibilidade de sucumbência parcial.
Ressalvada a hipótese prevista no parágrafo único do artigo 86 do CPC, parece razoável que o percentual de honorários sucumbenciais a ser fixado em favor do advogado do réu observe o proveito econômico obtido, alcançado pela diferença entre o valor excessivo pleiteado e a quantia fixada em sentença a título de danos morais.
Esse entendimento foi ratificado pelo Enunciado 14/15 da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam),[10] aprovado por cerca de 500 magistrados durante o seminário O Poder Judiciário e o novo CPC, realizado de 26 a 28 de agosto de 2015 na sede do próprio STJ.
Em síntese, parte-se da premissa de que demandar judicialmente envolve riscos, entre eles os ônus da sucumbência. Nesse contexto, os sujeitos processuais – inclusive o juiz – têm o dever de cooperar entre si para viabilizar a entrega da prestação jurisdicional (artigo 6º do CPC).
De um lado, cabe ao autor fixar com prudência o valor pleiteado a título de danos morais, sob pena de, não o fazendo, arcar com parte dos ônus sucumbenciais. De outro lado, é papel do magistrado, ponderando as alegações do réu em sentido contrário, examinar a razoabilidade do quantum indenizatório pretendido, tendo em vista a situação fática e a jurisprudência existente sobre o tema.
Trata-se do modelo coparticipativo e colaborativo do processo,[11] fundado nos princípios da segurança jurídica e do devido processo legal previstos no artigo 5º, XXXVI e LIV, da CF, que se presta, inclusive, a aperfeiçoar a jurisprudência.
Independentemente de simpatia por uma ou outra corrente, fato é que o CPC não traz uma solução expressa para a controvérsia. Considerando que o artigo 292, V, do CPC trata especificamente da ação indenizatória fundada em dano moral, o melhor caminho para dirimir a questão talvez seja buscar a adequação da lei processual pela via ordinária do processo legislativo constitucional, mediante a participação popular de todos os interessados.
Enquanto isso não ocorre – ou a matéria não é submetida a julgamento sob a sistemática dos recursos repetitivos prevista nos artigos 1.036 e seguintes do CPC –, o resultado do julgamento do STJ continuará a ser alvo de críticas fundamentadas, sobretudo diante da robusta divergência jurisprudencial e doutrinária sobre o tema.
[1] “Na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca.” (Corte Especial, j. 7 de junho de 2006).
[2] Art. 292. O valor da causa constará da petição inicial ou da reconvenção e será: (...) V - na ação indenizatória, inclusive a fundada em dano moral, o valor pretendido;
[3] Nas razões recursais, o recorrente indica violação aos artigos 186 e 927 do Código Civil (CC) e aos artigos 85, §2º e 86 do CPC.
[4] “Posição interessante tem sido adotada pela jurisprudência em torno da ação de indenização por dano moral. Uma vez que o arbitramento da verba indenizatória é de exclusiva competência do juiz, o entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça fixou-se no sentido de que, ‘na ação de indenização por dano moral, a condenação em montante inferior ao postulado na inicial não implica sucumbência recíproca’ (Súmula 326/STJ).” (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 56. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2015, p. 308).
[5] STJ, REsp 579.195-SP, rel. min. Castro Filho, 3ª Turma, j. em 21 de outubro de 2003; TJMG, Embargos de Declaração-Cv 1.0000.22.037448-2/002, des. rel. José Augusto Lourenço dos Santos, 12ª Câmara Cível, j. 02.09.2022; TJSP, Embargos de Declaração Cível 1000476-56.2017.8.26.0412, des. rel. Coelho Mendes, 10ª Câmara de Direito Privado, j. 5 de fevereiro de 2019.
[6] “Problema que merece cuidadosa análise é a do pedido genérico nas ações de reparação de dano moral: o autor deve ou não quantificar o valor da indenização na petição inicial? A resposta é positiva: o pedido nestas demandas deve ser certo e determinado, delimitando o autor quanto pretende receber como ressarcimento pelos prejuízos morais que sofreu. Quem, além do próprio autor, poderia quantificar a ‘dor moral’ que alega ter sofrido? Como um sujeito estranho e por isso mesmo alheio a esta ‘dor’ poderia aferir a sua existência, mensurar a sua extensão e quantificá-la em pecúnia? A função do magistrado é julgar se o montante requerido pelo autor é ou não devido; não lhe cabe, sem uma provocação do demandante, dizer quanto deve ser o montante. Ademais, se o autor pedir que o magistrado determine o valor da indenização, não poderá recorrer da decisão que, por absurdo, a fixou em um real (R$ 1,00), pois o pedido teria sido acolhido integralmente, não havendo como se cogitar interesse recursal. O art. 292, V, do CPC, parece ir por este caminho, ao impor como o valor da causa o valor do pedido nas ações indenizatórias, ‘inclusive as fundadas em dano moral’. Somente é possível a iliquidez do pedido, nestas hipóteses, se o ato causador do dano puder repercutir, ainda, no futuro, gerando outros danos (p. ex.: uma situação em que a lesão à moral é continuada, como a inscrição indevida em arquivos de consumo ou a contínua ofensa à imagem); aplicar-se-ia, então, o inciso II do par.1º do art. 624, aqui comentado. Fora dessa hipótese, incabível a formulação de pedido ilíquido.”(DIDIER JÚNIOR, Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento.17. ed. rev., ampl. e atual. Salvador : JusPodivm, 2015, p. 581).;
[7] TJRJ, Apelação 0002064-42.2017.8.19.0079, rel. des. Alexandre Câmara, 2ª Câmara Cível, j. em 16 de setembro de 2020.
TJSP, Apelação 1002707-40.2016.8.26.0655, rel. des. Antonio Rigolin, 31ª Câmara de Direito Privado, j. em 23.01.18. TJ-MG, Apelação 10000191312040001, rel. des. Lílian Maciel, j. em 20 de janeiro de 2020. TJ-DF, 0723140-23.2018.8.07.0001, rel. des. Leila Arlanch, 7ª Turma Cível, j. em 24 de julho de 2019.
[8] STJ, AgRg no Ag 459.509-RS, min. rel. Luiz Fux, 1ª Turma, j. em 25 de novembro de 2003
[9] Art. 21. A decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
[10] Enunciado Enfam 14/2015: “Em caso de sucumbência recíproca, deverá ser considerada proveito econômico do réu, para fins do artigo 85, §2º, do CPC/2015, a diferença entre o que foi pleiteado pelo autor e o que foi concedido, inclusive no que se refere às condenações por danos morais.” (g. n.)
[11] DIDIER JR., Fredie. “Os três modelos de direito processual: inquisitivo, dispositivo e cooperativo”. Revista de Processo: RePro, v. 36, n. 198, p. 213-225, ago. 2011.