A 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), em acórdão recente relatado pelo desembargador Cesar Ciampolini, anulou uma sentença arbitral proferida na fase de liquidação de danos, por entender ter havido abstenção de voto de um dos coárbitros que, vencido em sentença parcial sobre o mérito da disputa, deixou de se pronunciar sobre a quantificação dos prejuízos.[1]
A arbitragem discutia a rescisão de contratos que tratavam, entre outros, da compra e venda de espaços para veiculação de mídias de publicidade.
No mérito, o tribunal arbitral, em sentença parcial proferida por maioria de votos, julgou parcialmente procedentes os pedidos formulados pela parte requerente para:
- condenar a parte requerida ao pagamento de lucros cessantes devido à não veiculação da mídia contratada; e
- determinar que esses danos fossem apurados em fase de liquidação de sentença. Na ocasião, foi vencido um dos coárbitros, que entendeu não estar presente o nexo causal necessário para justificar o pagamento de danos por lucros cessantes.
Durante a liquidação de sentença, e após a realização de laudo pericial para apuração dos lucros cessantes, o tribunal arbitral novamente se dividiu. O coárbitro que havia sido vencido no mérito se absteve de votar sobre o valor da indenização, reiterando sua posição de que não havia sido demonstrado nexo causal que justificasse os lucros cessantes.
A outra coárbitra – que, no mérito, acompanhou o posicionamento vencedor – votou pela realização de nova perícia, por entender que o exame pericial realizado não atendia aos critérios fixados na sentença de mérito. O presidente do tribunal arbitral, por sua vez, homologou os cálculos do perito.
Como não se chegou a um consenso, o presidente do tribunal arbitral determinou a prevalência de seu entendimento sobre o tema, com fundamento no artigo 24, §1º, da Lei de Arbitragem.[2]
A parte requerente na arbitragem iniciou, então, ação anulatória no Poder Judiciário. Entre outros motivos, alegou que o posicionamento do coárbitro (que, vencido no mérito, votou na fase de liquidação apenas para reiterar o seu posicionamento em relação à ausência de nexo causal e consequentemente de quaisquer danos) constituiria, na verdade, um não voto.
Em resumo, a autora da ação judicial sustentou que a abstenção do coárbitro impediria que o presidente exercesse o voto de minerva. A sentença arbitral proferida na fase de liquidação seria nula por:
- violação ao princípio da inafastabilidade da jurisdição;
- ser proibido o non liquet (isto é, impossibilidade de o julgador se furtar a decidir um litígio por falta de elementos para embasar a sua decisão);
- ter sido proferida fora dos limites da convenção de arbitragem, já que as partes decidiram que a arbitragem seria julgada por um painel composto por três árbitros;
- violação à coisa julgada (em relação à sentença parcial proferida em fase de mérito na arbitragem); e
- ofensa à garantia do devido processo legal.
Ao reformar a sentença de primeira instância – que havia julgado improcedente o pedido de anulação da sentença arbitral –, o TJSP concluiu que o coárbitro em questão, de fato, teria se abstido de votar, já que ele teria se limitado apenas a fazer referência ao entendimento que adotara na sentença parcial de mérito, uma posição, inclusive, já derrotada.
O TJSP apontou que os árbitros – assim como os juízes – têm o dever de garantir o direito das partes ao acesso à Justiça e não podem se abster de tomar uma posição em uma questão apresentada a eles.
No acórdão, o tribunal concluiu que o voto do coárbitro na fase de liquidação configuraria non liquet. Ele não teria cumprido seu dever de decidir, violando, assim, o princípio constitucional do acesso à Justiça (CF, art. 5º, XXXV). Isso, portanto, tornaria nula a sentença arbitral.
Além da peculiaridade da questão analisada pelo TJSP (que, por si só, já é bastante interessante), a decisão recém-proferida é de importância para a comunidade arbitral devido à fundamentação adotada pelo TJSP para anular a sentença. Afinal, pelo que se tem notícia, essa é a primeira vez que uma sentença arbitral é anulada especificamente por violação ao princípio constitucional do acesso à Justiça.
Embora a inobservância do princípio constitucional do acesso à Justiça não esteja mencionada na Lei de Arbitragem como causa para anulação da sentença arbitral, o TJSP concluiu que os princípios constitucionais listados no artigo 21, §2º, da Lei de Arbitragem – cuja violação resulta na nulidade da sentença arbitral – deveriam ser interpretados de for ampliada, para incluir outros princípios constitucionais de mesma categoria, ainda que eles não estivessem expressamente referidos na Lei de Arbitragem.
Muitos doutrinadores que apontam a taxatividade das hipóteses de nulidade da sentença arbitral previstas no artigo 32 da Lei de Arbitragem já reconheciam que a violação à ordem pública constitui princípio implícito, cuja violação também caracterizaria a nulidade da sentença arbitral[3] (isto é, uma condição geral de validade da sentença arbitral).[4]
Da mesma forma, o Superior Tribunal de Justiça também já havia se pronunciado no sentido de que “[a] ação anulatória de sentença arbitral há de estar fundada, necessariamente, em uma das específicas hipóteses contidas no art. 32 da Lei 9.307/1996, ainda que a elas seja possível conferir uma interpretação razoavelmente aberta, com o propósito de preservar, em todos os casos, a ordem pública e o devido processo legal e substancial, inafastáveis do controle judicial”.[5]
Apesar dessas considerações sobre a ordem pública, e até onde se tem conhecimento, nossos tribunais estatais ainda não haviam anulado uma sentença arbitral valendo-se especificamente da ampliação do rol de princípios previstos no artigo 21, §2º, da Lei de Arbitragem.
A discussão é bastante relevante.
De um lado, reconhecer que o artigo 21, §2º, da Lei de Arbitragem pode ser interpretado de forma ampliada é um passo importante para garantir os direitos das partes a um procedimento justo e conduzido conforme os princípios constitucionais gerais aplicáveis. Por essa interpretação ampliada, a violação a princípios constitucionais gerais do processo não mencionados expressamente na Lei de Arbitragem (como é princípio do acesso à Justiça) poderia levar à anulação da sentença arbitral.
De outro, a utilização desse entendimento deve ser sempre feita de forma criteriosa e balizada pelo Judiciário, para evitar o alargamento indevido das situações legais de anulação da sentença (artigo 32 da Lei de Arbitragem), o que certamente poderia macular o instituto da arbitragem e impactar a segurança jurídica que lhe é tão cara.
Caberá aos tribunais estatais, em sua tarefa de controle, analisar e interpretar as situações concretas, detectando caso a caso eventuais excessos ou iniquidades.
Assim, será possível garantir às partes o devido processo legal (em sentido processual e material), sem dar motivo para anulação indevida de sentenças arbitrais que estejam em conformidade com as garantias constitucionais e as regras legais aplicáveis à arbitragem.
[1] TJSP, apelação cível 1094661-81.2019.8.26.0100, Rel. Des. Cesar Ciampolini, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 24.05.2023.
[2] Art. 24. A decisão do árbitro ou dos árbitros será expressa em documento escrito.
- 1º Quando forem vários os árbitros, a decisão será tomada por maioria. Se não houver acordo majoritário, prevalecerá o voto do presidente do tribunal arbitral.
[3] “A leitura do caput e do §2° do artigo 33 leva à conclusão de que o rol do artigo 32 é taxativo, o que é sustentado pela doutrina visando à estabilidade da sentença arbitral e à segurança jurídica dela decorrente, como reflexo da renunciabilidade à garantia de acesso ao Poder Judiciário, valendo mencionar que às partes não é dado ampliar o rol de hipóteses legais, nem renunciar previamente à aplicação do disposto nos artigos 32 e 33 da Lei, considerados cogentes.
No entanto, ainda entre aqueles que defendem a taxatividade do rol em apreço, que sintetiza matérias de ordem pública que o Estado não admite sejam superadas, muitos há que admitem a existência de hipóteses excepcionais de configuração de causas de nulidade da sentença arbitral ali não expressas, como no caso em que esta ofende a ordem pública, por não aplicar corretamente lei dessa natureza, lembrando-se que, pese embora não seja prevista no rol do artigo 32, desta Lei, atue a ordem pública, ao lado dos bons costumes, como limite às escolhas dos contratantes no âmbito da justiça privada, conforme se lê no artigo 2o, desta Lei.
(...)
Como exemplo de hipótese não arrolada no artigo 32 da Lei em estudo, e que pode levar à nulidade da sentença arbitral, temos que a declaração de inconstitucionalidade pelo árbitro constitui questão de ordem pública, existindo, outrossim, precedentes do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, no sentido da caracterização da matéria como de ordem pública. (...)
(...)
Portanto, a nulidade do ato inconstitucional encontra previsão na Constituição, como princípio implícito, além de matéria de ordem pública” (FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves; ROCHA, Matheus Lins; FERREIRA, Débora Cristina Fernandes Ananias Alves. Lei de Arbitragem Comentada. 2 ed. Editora JusPODIVUM, 2021, pp. 329-330).
[4] “(…) Em outras palavras: se o legislador não levasse em consideração, como causa de anulação da sentença arbitra (nacional), a violação à ordem pública, todas as arbitragens certamente viriam dar em território nacional (todos os atos seriam praticados no exterior e apenas a sentença arbitral seria proferida no Brasil, o que tornaria a sentença arbitral – ab absurdo – imune a qualquer ataque por força de ofensa à ordem pública!). O argumento (ad terrorem, sem dúvida) serve para pôr à mostra a consequência de tentar evitar o reconhecimento do óbvio: o sistema arbitral brasileiro é coerente, de modo que tanto as sentenças arbitrais nacionais quanto as sentenças arbitrais estrangeiras estão sujeitas à mesma condição geral de validade, qual seja, não atentar contra a ordem pública” (CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei nº 9.307/96. 3 ed., ver. atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2009, pp. 417-148).
[5] STJ, REsp 1.660.963/SP, rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 26 de março de 2019.