Entre suas principais inovações, a internet levou a comunicação instantânea a qualquer lugar do mundo e a qualquer hora do dia.
Essa agilidade da troca de mensagens aumentou com a criação das redes sociais, em que opiniões, informações e notícias podem ser compartilhadas de forma ainda mais rápida. A interação pode ocorrer tanto de modo público, com qualquer pessoa tendo acesso ao conteúdo, como de forma privada, situação em que o assunto tratado deve (ou deveria) se manter apenas entre aqueles que foram selecionados para trocar as mensagens particulares.
Apesar de o mundo virtual estar bastante presente em nosso dia a dia, ele é uma terra nova. Como tudo que é novo, o conhecimento sobre esse universo ainda é incipiente e as regras estão em construção. A necessidade de regulamentar o tema logo se impôs e, com ela, a discussão jurídica sobre os limites da internet.
No Brasil, o início da regulamentação foi com a Lei 12.965/14, o Marco Civil da Internet, que demonstrou não ser capaz de comportar todas as nuances desse novo território em construção. Como consequência, a Lei 13.709/18, Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, foi promulgada para complementar aquilo que a Lei 12.965/14 não conseguiu abranger.
Antes dessas leis especiais, a regulamentação do tema ficava a cargo da legislação em vigor e da jurisprudência. Apesar de a analogia ser uma grande aliada para tomar decisões quando não há legislação específica, as novidades trazidas pelo uso da internet e das redes sociais deixaram claro que tanto nosso ordenamento jurídico quanto os operadores do direito ainda não estavam preparados para a mudança social radical que elas geraram.
Quando se debate sobre a internet, porém, há um entendimento unânime: os direitos fundamentais são o principal fator a ser respeitado no mundo virtual.
A conformidade com os direitos fundamentais se refere, principalmente, ao direito à privacidade. A importância desse direito é tão evidente que tanto o Marco Civil quanto a LGPD estabelecem o direito à privacidade como o princípio fundamental para o uso da internet (art. 3, II, do Marco Civil e art. 2º, I, da LGPD).
Ao se analisar casos concretos, percebe-se que é nas conversas instantâneas que se encontram os pontos de conflito com o direito à privacidade. É nessas conversas que direitos como a privacidade e a intimidade se contrapõem ao direito de liberdade de expressão e liberdade de informação.
A discussão envolvendo o tema fez com que ele chegasse aos tribunais superiores, culminando na decisão colegiada do Recurso Especial 1.903.273/PR.
Apesar de inexistir legislação própria sobre o assunto, é pacífico no STJ que as conversas realizadas no meio virtual estão resguardadas pelo sigilo das comunicações (art. 5º, X, da Constituição Federal). Somente pode haver acesso ao conteúdo das conversas por meio de consentimento dos participantes ou autorização judicial.[1]
Além dessas duas exceções (conhecimento dos participantes e decisão judicial), pode-se citar uma terceira: resguardar o direito próprio do receptor. Essa exceção que permite acessar o conteúdo das conversas se basearia na própria premissa do direito à privacidade – o detentor do direito disporia sobre aquilo que se refere a ele –, assim como do direito de defesa.
Direito à privacidade é a base para determinar a proteção ao sigilo das conversas
Como mencionado, a proteção ao sigilo das conversas se baseia em um direito fundamental: o direito à privacidade. Foi nesse sentido que o STJ fixou entendimento sobre o tema.
A decisão colegiada no REsp 1.903.273/PR, inicialmente, estabelece que o direito à privacidade é resguardado pela forma de armazenamento de dados da plataforma. Esse entendimento é reforçado na própria decisão:
“Justamente com o propósito de fortalecer a privacidade dos usuários das redes sociais, foram desenvolvidas novas técnicas, dentre as quais se destaca a criptografia. Essa tecnologia possibilita o envio de mensagens seguras, já que consiste ‘na cifragem de mensagens em códigos com o objetivo de evitar que elas possam ser decifradas por terceiros’. LEAL, Sheila do Rocio Cercal Santos. Contratos eletrônicos: validade jurídica dos contratos via Internet. São Paulo: Atlas, 2007, p. 160).” (grifos nossos).
Seguindo ainda o entendimento da Corte Superior, as conversas no meio virtual colocam em evidência o conflito entre o direito à liberdade de informação e o direito à privacidade, exigindo a aplicação do juízo de ponderação.
De acordo com os ensinamentos do ministro Gilmar Mendes e do jurista Paulo Gustavo Gonet, no juízo de ponderação, o tribunal não realiza uma simples análise hierárquica em relação aos direitos em conflito, mas sim um estudo sobre as circunstâncias peculiares do caso, para poder concluir qual direito fundamental deve prevalecer naquela situação particular, sem estabelecer uma hierarquia genérica.
Com base nesse juízo de ponderação é que se chegou ao entendimento pacificado pelo STJ. A Corte Superior decidiu que o direito à liberdade de informação deve ser limitado quando fere o direito à privacidade do outro. Nesse sentido:
“A toda evidência, o direito à liberdade de informação e de expressão não é absoluto, devendo sempre ser alicerçado na boa-fé, sob pena de se caracterizar abusivo. Em outras palavras, a liberdade de informação não pode representar uma violação à privacidade e à intimidade do indivíduo, ‘revelando-se cabida a responsabilização pelo abuso constatado quando, a pretexto de se expressar o pensamento, invadem-se os direitos da personalidade, com lesão à dignidade de outrem (REsp 1729550/SP, Quarta Turma, DJe 4/06/2021)’”[2] (grifos nossos).
Pelo entendimento da Corte Superior, a conversa por aplicativo deve observar também um ponto específico em relação ao direito à privacidade: a expectativa de privacidade do indivíduo.
A expectativa de privacidade é justamente o entendimento que o indivíduo tem em manter suas relações dentro de uma esfera limitada. Quando se fala em conversas virtuais, seja envolvendo duas pessoas ou grupos de pessoas, a expectativa é que o conteúdo tratado permaneça de forma privada entre os envolvidos, principalmente porque a quantidade de pessoas interagindo no diálogo é uma forma de limitar justamente o conteúdo que está sendo tratado.
Ainda seguindo o entendimento do STJ, essa expectativa deriva não somente do fato de o indivíduo ter escolhido a quem enviar a mensagem, como também da própria encriptação a que estão sujeitas as conversas.
O direito à privacidade, portanto, é o fundamento central da decisão do STJ no que se refere à divulgação de conversas ocorridas no meio virtual. A Corte Superior somente entende a licitude da divulgação quando ocorrer uma das três exceções:
- decisão judicial;
- conhecimento dos participantes; e
- resguardo do direito próprio de receptor.
Nessa última hipótese, seria necessário analisar o caso concreto e entender quais direitos colidem, para poder fazer o juízo de ponderação.
Diante desse entendimento jurisprudencial, percebe-se que o ordenamento jurídico brasileiro, apesar de não preencher todas as lacunas do cenário virtual, consegue superar os problemas sobre o tema com a análise dos direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal e o auxílio do juízo de ponderação.
Sobre a divulgação de conversas no meio virtual, em específico, o tema ficou pacificado com base na ponderação judicial entre o direito à privacidade e o direito à liberdade de expressão, em que o primeiro tende a prevalecer.
Referências bibliográficas:
Site Migalhas – ROCHA, Mayara Bueno Barretti. O conflito entre normas da LGPD e o Marco Civil da internet: uma breve comparação entre seus dispositivos normativos
Site Conjur – VIDIGAL, Paulo; CHAVES, Luis Fernando Prado. A LGPD revogou tacitamente dispositivos do Marco Civil da Internet
Site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal – Marco Civil da Internet
BRASIL. STJ (3ª TURMA). Civil e processual civil. Recurso especial. Ação de reparação por danos morais. Cerceamento de defesa. Ausência de indicação do dispositivo legal violado. Prequestionamento parcial. Negativa de prestação jurisdicional. Inocorrência. Ônus da prova. Publicização de mensagens enviadas via WhatsApp. Ilicitude. Quebra da legítima expectativa e violação à privacidade e à intimidade. Julgamento: CPC/2015. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/?documento_tipo=91&documento_sequencial=133486104®istro_numero=202002848797&publicacao_data=20210830. Acesso em: 13/06/2023.
SCHREIBER, Anderson. Direitos da Personalidade. 2ª Edição (se houver). São Paulo: Editora Atlas, 2013.
MENDES, Gilmar; BRANCO, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 8ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2013.
FERREIRA, Olavo Augusto Vianna Alves; BERNARDES, Juliano Taveira. Direito Constitucional: Tomo II – Direito Constitucional Positivo. 5ª Edição. Salvador: Editora Juspodivm, 2016.
[1] HC 609.221/RJ, Sexta Turma, DJe 22 de junho de 2021
[2] REsp 1.903.273/PR, Terceira Turma, DJe 30 de agosto de 2021