A necessidade de comprovação de má-fé para devolução em dobro de cobrança realizada indevidamente contra consumidores (popularmente denominada no universo jurídico como repetição em dobro) é tema de controvérsia no Superior Tribunal de Justiça (STJ) há muito tempo.
O debate decorria das interpretações distintas que a Primeira Seção e a Segunda Seção do STJ davam ao tema, com base tanto na redação do parágrafo único do artigo 42 do Código de Defesa do Consumidor[1] (CDC) quanto no entendimento consolidado de que tal requisito se faz necessário para casos regidos pelo artigo 940 do Código Civil[2] (CC).
Para a Primeira Seção do STJ, cuja competência abarca as relações de direito público e, consequentemente, as relações de consumo envolvendo o Estado e concessionárias de serviço público, não era preciso comprovar má-fé para aplicar a penalidade prevista no parágrafo único do artigo 42 acima transcrito, pois a disposição “salvo se houver engano justificável” era interpretada como “quando não decorrer de dolo (má-fé) ou culpa na conduta do fornecedor do serviço”.[3] Dessa forma, considerando se tratar de uma relação de consumo, a Primeira Seção entendia que seria aplicável a penalidade prevista no CDC, com consequente restituição em dobro dos valores cobrados, quando constatado o dolo (conduta comissiva ou omissiva intencional) ou quando identificada a culpa (conduta comissiva ou omissiva decorrente de imperícia, imprudência ou negligência) do prestador de serviço.
Em sentido contrário, a Segunda Seção do STJ, cuja competência abarca as relações de direito privado – consequentemente influenciada, portanto, pelo longo entendimento da necessidade de demonstrar má-fé para aplicar a mesma sanção nas relações regidas pelo CC (artigo 940, reproduzido acima) –, tinha entendimento pela exigência de demonstração de má-fé do fornecedor para repetição em dobro nas relações de consumo. Nesse caso, não seria suficiente a culpa do fornecedor que cobra uma dívida indevidamente, já que “o entendimento dominante neste STJ é no sentido de admitir a repetição do indébito na forma simples, e não em dobro, salvo prova da má-fé”.[4]
Diante da interpretação divergente entre as duas seções do STJ, a questão foi submetida ao Tema 929/STJ para solução: Discussão quanto às hipóteses de aplicação da repetição em dobro prevista no art. 42, parágrafo único, do CDC.
Inicialmente, a controvérsia seria representada pelo Recurso Especial nº 1.517.888/RN, o qual foi posteriormente substituído pelo Recurso Especial nº 1.585.736/RS. Contudo, em sessão de julgamento realizada em 20/02/2019, o STJ decidiu desafetar esse segundo recurso como representativo de controvérsia do Tema 929, graças ao entendimento da Corte Especial do STJ de que seria mais adequado prosseguir com o julgamento dos Embargos de Divergência nº 1.413.523/S, que versavam sobre o mesmo tema e já estavam pautados para decisão.
Assim, ao julgar os embargos de divergência, em 21/10/2020, a Corte Especial firmou a seguinte tese:
Com essas considerações, conhece-se dos Embargos de Divergência para, no mérito, fixar-se a seguinte tese: A REPETIÇÃO EM DOBRO, PREVISTA NO PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 42 DO CDC, É CABÍVEL QUANDO A COBRANÇA INDEVIDA CONSUBSTANCIAR CONDUTA CONTRÁRIA À BOA-FÉ OBJETIVA, OU SEJA, DEVE OCORRER INDEPENDENTEMENTE DA NATUREZA DO ELEMENTO VOLITIVO.
Esse julgamento dos embargos de divergência pela Corte Especial já representaria um precedente vinculante, nos termos do artigo 927, inciso V, do Código de Processo Civil, sendo suficiente para sedimentar o entendimento sobre o tema tanto no STJ quanto nos tribunais inferiores.
Apesar disso, visando conferir maior segurança jurídica à questão, o ministro Paulo de Tarso Severino, em decisão proferida em 14 de maio deste ano, votou pela afetação do Recurso Especial nº 1.823.218 como representativo da controvérsia do Tema 929, encaminhando-o para julgamento pela Corte Especial.
Na prática, a sedimentação do entendimento deverá beneficiar os consumidores. Isso porque, com o entendimento anterior, a depender do serviço cujo indébito se buscava reclamar, era preciso comprovar a má-fé do fornecedor para que a restituição em dobro fosse devida (a restituição simples, isto é, somente do valor cobrado, já dependia de mera demonstração de que a cobrança era indevida). Com esse novo entendimento, no entanto, bastará comprovar a culpa do agente para obter a restituição em dobro de cobranças indevidas realizadas em relações de consumo.
Mesmo se confirmada, a dispensa de comprovação da má-fé será exclusiva para as relações consumerista. Já nas cobranças indevidas ocorridas em relações regidas pelo CC, continuará sendo necessário comprovar a existência de má-fé, o que está respaldado por julgamentos de recursos repetitivos pelo STJ[5] e pela Súmula 159 do Supremo Tribunal Federal.[6]
Com a iminente sedimentação desse entendimento, será ainda mais relevante para organizações e pessoas que figurem no polo passivo de processos judiciais sobre o tema a apresentação de defesas técnicas e detalhadas. Tais defesas podem obter êxito em demonstrar, por exemplo:
- a não aplicação do CDC, e sim do CC – seja por não se tratar de relação de consumo (segundo as teorias mais utilizadas para definição de consumidor e de fornecedor), seja por não estarem presentes os requisitos para aplicação do CDC por equiparação.
- a existência de evidências de que a cobrança era devida ou se enquadra na exceção prevista no CDC, tendo decorrido de erro justificável que não configura dolo ou culpa.
- que a natureza jurídica da pretensão que fundamenta a condenação pretendida pelo autor no processo judicial não é de cobrança de dívida, mas sim de perdas e danos ou de restituição por enriquecimento sem causa, por exemplo.
O acolhimento de qualquer um desses argumentos poderia levar à condenação para restituição simples do valor cobrado (e não em dobro) ou até mesmo à improcedência do pedido, daí a relevância do tema.
[1] Art. 42. Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto a ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça. Parágrafo único. O consumidor cobrado em quantia indevida tem direito à repetição do indébito, por valor igual ao dobro do que pagou em excesso, acrescido de correção monetária e juros legais, salvo hipótese de engano justificável.
[2] Art. 940. Aquele que demandar por dívida já paga, no todo ou em parte, sem ressalvar as quantias recebidas ou pedir mais do que for devido, ficará obrigado a pagar ao devedor, no primeiro caso, o dobro do que houver cobrado e, no segundo, o equivalente do que dele exigir, salvo se houver prescrição.
[3]BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.084.815/SP – São Paulo. Relator: Min. Denise Arruda. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/>. Acesso em: 06 jun. 2021.
[4] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento nº 570.214/MG – Minas Gerais. Relator: Min. Nancy Andrighi. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/>. Acesso em: 06 jun. 2021.
[5] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.111.270/PR – Paraná. Relator: Min. Marcos Buzzi. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/processo/pesquisa/>. Acesso em: 06 jun. 2021.
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula nº 159. Cobrança excessiva, mas de boa-fé, não dá lugar às sanções do art. 1.531 do Código Civil. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/menuSumarioSumulas.asp?sumula=4195>. Acesso em: 06. jun. 2021.