O chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19) entrou em vigor em 2020 com mudanças substanciais na legislação penal e processual penal, entre elas uma alternativa de justiça penal negocial: a possibilidade de realização de acordo de não persecução penal (ANPP) entre o investigado e o Ministério Público.

Antes dessa lei, ao final da investigação (inquérito policial ou procedimento investigatório criminal conduzido pelo Ministério Público), o promotor de justiça tinha duas  opções: requerer o arquivamento da investigação ou oferecer denúncia. A inovação do Pacote Anticrime deu ao Ministério Público uma terceira opção: propor um ANPP. O acordo deve ser proposto apenas quando houver elementos suficientes para o oferecimento de denúncia.

De acordo com a redação do novo art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP), o ANPP poderá ser proposto pelo Ministério Público quando:

  • o acusado confessar a prática da infração penal;
  • a infração penal tiver sido cometida sem violência ou grave ameaça;
  • a infração penal tiver uma pena mínima inferior a quatro anos.

O acordo não será aplicável nas seguintes hipóteses:

  • se for cabível transação penal;
  • se o investigado for reincidente;
  • se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional;
  • ter o investigado assinado ANPP, transação penal ou suspensão condicional do processo, nos cinco anos anteriores ao cometimento da infração;
  • nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar ou praticados contra a mulher, em razão de sua condição de sexo feminino.

Mas, após um ano da inovação processual, ainda há dúvidas práticas pendentes, especialmente em relação a casos que já estavam em andamento quando a lei entrou em vigor. Na tentativa de fornecer alguma orientação, os ministérios públicos federal e estaduais têm publicado notas técnicas sobre o assunto.

O Ministério Público Federal (MPF) publicou instruções práticas por meio da revisão e ampliação da Orientação Conjunta nº 03/18, entre elas:

  • o ANPP não é um direito subjetivo do investigado, podendo ser proposto conforme as peculiaridades do caso concreto e quando considerado necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção da infração penal;
  • o investigado poderá propor o ANPP e, caso a proposta seja recusada, poderá enviá-la para revisão de instância superior do MPF;
  • o MPF deverá notificar o investigado para comparecer à sede do MPF, caso tenha interesse no ANPP. A notificação deverá incluir expressamente que o acordo pressupõe confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal e que o investigado deve comparecer acompanhado de advogado;
  • poderão ser celebrados ANPPs nas ações penais em andamento;
  • o ANPP deverá conter expressamente uma data-limite para o cumprimento do acordo.

Observados todos os requisitos e ausentes os impedimentos legais, o acordo poderá ser proposto e negociado, culminando na aplicação de algumas condições ao acusado (cumulativa ou alternativamente),  como:

  • reparação do dano à vítima,
  • renúncia voluntária a bens e produtos provenientes da infração,
  • prestação de serviços à comunidade,
  • pagamento de prestação pecuniária e cumprimento de outra condição indicada pelo Ministério Público.

Sobre as condições a serem impostas pelo MPF, a Orientação Conjunta nº 03/18 estabeleceu que a reparação do dano poderá ser parcial, quando aplicada em conjunto com outras condições, e forneceu exemplos concretos:

  • vedação de viagem do investigado ao país de onde trouxe indevidamente a mercadoria, em caso de contrabando (art. 334-A do Código Penal);
  • afastamento do investigado da diretoria ou do controle da empresa, nos crimes econômicos (Lei nº 8.137/90);
  • proibição do investigado de operar no mercado financeiro por determinado período, no caso de crimes contra o sistema financeiro (Lei nº 7.492/86).

O Ministério Público do Estado de São Paulo (MPSP) publicou a Nota Técnica nº 6 com guia prático passo a passo para a celebração de ANPPs no modo virtual. Entre as orientações mais relevantes, estão:

  • o contato com o acusado para oferecimento de ANPP poderá ser realizado por e-mail, WhatsApp ou ligação de voz, e a reunião de negociação será virtual, por videoconferência;
  • o ANPP será presencial somente se o acusado não puder ser contatado pelos meios virtuais;
  • o MPSP poderá, discricionariamente, contatar também a vítima para avaliar os danos sofridos.

Em Minas Gerais, as diretrizes foram publicadas pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG) pela Portaria Conjunta 20/PR-TJMG/20. Segundo o TJMG, os juízes de garantia terão sessenta dias para identificar os processos ainda não sentenciados e inquéritos em andamento que se amoldem aos requisitos do novo art. 28-A do CPP e cuja audiência de instrução ainda não tenha sido designada. Após a identificação, a defesa deverá ser intimada a se manifestar sobre o interesse em realizar o ANPP.

Em qualquer caso, encerrada a negociação, o ANPP deverá ser assinado pelo representante do Ministério Público e pelo investigado e seu defensor. Após a assinatura, o acordo passará por análise judicial para homologação em audiência. O juiz, então, deverá verificar a legalidade e a voluntariedade do acordo em oitiva do investigado, podendo se recusar a homologar o acordo caso entenda que ele não cumpre os requisitos legais, é fruto de coação ou que as condições impostas são inadequadas, insuficientes ou abusivas.

Se o acordo for celebrado, não constará na certidão de antecedentes criminais do acusado, e, após o devido cumprimento das condições, o juiz decretará a extinção de sua punibilidade[1].

Os crimes empresariais, também conhecidos como crimes de colarinho-branco, são, em sua maioria, elegíveis para a celebração do ANPP, uma vez que têm penas mínimas inferiores a quatro anos (contabilizadas as causas de aumento e diminuição de pena) e são cometidos sem violência ou grave ameaça.

Dos crimes relacionados ao dia a dia da atuação empresarial, destacam-se, pelo seu volume, os crimes ambientais previstos na Lei n° 9.605/98 e os crimes tributários dispostos na Lei n° 8.137/90.

Para os crimes ambientais, além da transação penal e da possibilidade de suspensão condicional do processo, o ANPP poderá ser um ótimo instituto para conferir maior celeridade aos processos, além de maior eficiência à tutela penal do meio ambiente, reservando a sanção penal para casos efetivamente graves, quando já não há alternativas processuais disponíveis a não ser o oferecimento de denúncia e o início de uma ação penal.

Com relação aos crimes tributários, o ANPP ganha relevância, pois possibilita aos representantes das empresas uma alternativa negocial para evitar o seu envolvimento em uma ação penal. O ANPP pode ser uma alternativa interessante para os denominados “crimes formais”, isto é, aqueles nos quais basta a realização da conduta criminosa, independentemente da efetiva sonegação de tributos.

Contudo, para os denominados “crimes materiais”, em que é essencial uma prévia sonegação de tributo exigível para o início da persecução penal, a aplicação do ANPP deve ser analisada cuidadosamente, já que não só as Leis nº 9.249/95 e 9.430/96 como também os tribunais superiores há muito estabeleceram que o pagamento do débito tributário, em qualquer fase do processo penal, é causa de extinção da punibilidade.

Caso a reparação do dano seja equiparada ao pagamento do débito tributário, não haveria qualquer inovação na celebração de um ANPP em crimes tributários. Ao contrário, o acusado seria prejudicado, pois, além de pagar o valor devido ao fisco, teria de cumprir outras condições impostas pelo Ministério Público e perderia a possibilidade de, pelo prazo de cinco anos, realizar um novo ANPP relativo a qualquer outrocrime.


[1] A vítima do crime objeto do ANPP deverá necessariamente ser intimada quando da homologação do acordo e em caso de descumprimento.