O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) retomou em agosto a análise sobre a descriminalização da maconha para uso pessoal. O debate ocorre no âmbito do julgamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP, que discute a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/06 (Lei de Drogas). O dispositivo proíbe a aquisição, guarda, depósito, transporte, posse, plantio, cultivo ou colheita, para consumo pessoal, de qualquer droga ilícita ou capaz de causar dependência física ou psíquica.

Apesar de o artigo mencionado se referir a drogas de modo geral, os votos dos ministros restringiram a inconstitucionalidade da criminalização apenas no caso em que a droga portada para uso pessoal for a Cannabis sativa (nome científico da maconha).

O julgamento foi suspenso por um pedido de vista do ministro André Mendonça, após o voto do recém-empossado ministro Cristiano Zanin, o primeiro – e até agora o único – a votar contra a descriminalização do porte de maconha para uso pessoal. Por enquanto, a maioria dos votos é pela descriminalização – 5 votos a favor e 1 contra.[1]

A discussão em torno do Recurso Extraordinário 635.659/SP tenta resolver duas questões principais:

  • se o porte de maconha para uso pessoal é crime; e
  • como diferenciar usuário e traficante de maneira mais efetiva.

Em relação à primeira questão, os ministros que votaram a favor da descriminalização argumentam que classificar o consumo recreativo de drogas como crime é um ato desproporcional da lei, por limitar excessivamente a liberdade, o direito à autolesão e à privacidade. Além disso, o crime de uso de drogas gera um estigma, o que dificulta a reinserção econômica e social do usuário.

Por outro lado, o ministro Cristiano Zanin sustenta que descriminalizar o uso pessoal de drogas iria contra a finalidade da lei. Mesmo reconhecendo que a existência do tipo penal leva à prisão em massa de pessoas de baixa renda e pouca escolarização, o ministro acredita que sua ausência no ordenamento jurídico agravaria ainda mais os problemas sociais de saúde do país.

Quanto à questão da diferenciação entre usuário e traficante, todos os ministros que votaram concordam que há falta de objetividade na descrição legal (art. 28, III, § 2º), já que deixa a critério do juiz diferenciar usuário do traficante com base na “natureza”, “quantidade da substância apreendida, local e condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente”.

Na prática, os critérios são extremamente subjetivos e resultam em grandes discrepâncias. Pessoas presas com a mesma quantidade de drogas sofrem consequências totalmente diferentes, dependendo do modo como são classificadas pelo juiz: usuárias ou traficantes.

A solução, proposta e acatada por unanimidade pelos ministros que votaram, é estabelecer um critério objetivo, ou seja, uma quantidade em gramas ou de plantas, para definir se o indivíduo deve ser considerado usuário ou traficante. A sugestão até o momento é de porte de porções entre 25 e 100 gramas ou até 6 plantas fêmeas da maconha.

A descriminalização do porte de maconha para uso próprio, além de acabar com graves distorções e injustiças na aplicação da Lei de Drogas, é um importante passo para a discussão da descriminalização do comércio controlado de drogas como um todo, inclusive da cannabis para fins medicinais. Atualmente, esse tipo de uso vem sendo permitido por meio de decisões judiciais em caráter de excepcionalidade.

Uso medicinal da cannabis – uma evolução gradual

Desde 2015, a Agência Nacional da Vigilância Sanitária (Anvisa) permite que pessoas físicas importem produtos industrializados contendo canabidiol (CBD) e/ou tetrahidrocanabidiol (THC) para uso próprio e com fim terapêutico,[2] mediante prescrição médica.[3]

Recentemente, a norma esteve no centro de uma controvérsia envolvendo a Nota Técnica 35/23 da Coordenação de Produtos Controlados da Anvisa, que decidiu proibir a importação de plantas ou flores de cannabis in natura. A medida, porém, foi suspensa pela Justiça do DF.

Em 2018, a Anvisa registrou o primeiro medicamento (ou seja, produto com propriedades farmacêuticas) contendo CDB e THC para o tratamento de pacientes adultos com esclerose múltipla e sintomas de espasticidade moderada a grave.

No ano seguinte, a agência discutiu e elaboração de uma regulação específica para importação, comercialização, monitoramento, fiscalização, prescrição médica e dispensação de produtos industrializados que contenham cannabis, quando estiverem esgotadas outras opções terapêuticas disponíveis no mercado brasileiro (atual RDC Anvisa 327/19).

Essa norma deveria ser revista até o início de 2023, mas segue em vigor – é provável que uma proposta com o novo texto revisto pela Anvisa seja colocada em consulta pública nos próximos meses.

Outra proposta discutida em 2019 foi a criação de uma regulamentação para o cultivo controlado de cannabis para uso medicinal e científico (Consulta Pública Anvisa 665/19), mas a ideia foi reprovada pela diretoria colegiada.

Também participou de discussões sobre o tema a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec), responsável pela incorporação, exclusão ou alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e ainda pela elaboração ou alteração de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas.

O órgão colegiado discutiu, em 2020 e 2021,[4] a incorporação de canabidiol concentrado para o tratamento de crianças e adolescentes com epilepsia refratária. A discussão também abordou a inclusão de medicamento à base de cannabis para tratamento auxiliar de sintomas de esclerose múltipla. No entanto, em ambos os casos, a Conitec recomendou a não incorporação.

No âmbito legislativo federal, o Projeto de Lei 399/15 é a proposta mais avançada sobre o tema. Ele busca viabilizar a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta. O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados, mas aguarda a Mesa Diretora deliberar sobre recurso contra apreciação conclusiva da Comissão Especial, para ser encaminhado ao Senado.

Indivíduos e associações recorrem à Justiça

Paralelamente ao controle sanitário, indivíduos e associações têm recorrido à Justiça para obter autorização para cultivar Cannabis sativa – inclusive para incorporação da planta ao SUS, manipulação por farmácias licenciadas, extração de óleo e/ou e pesquisa.

Nesse contexto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente decidiu que é ilegal a instauração da persecução penal contra aqueles que fazem uso medicinal ou cultivam cannabis para administração como remédio.

O acórdão considera a existência de uma grande variedade de tipos de usuários da maconha, desde aqueles que fazem uso irresponsável como entorpecente, até os que possuem prescrição médica e sabem administrar e cultivar a planta para tratar sua própria saúde.

Além da posição do STJ, o Tribunal de Justiça do Paraná[5] concedeu pedido liminar para importação de medicamento à base do canabidiol pelo plano de saúde para tratamento de transtorno severo de bipolaridade. O argumento foi que a Anvisa, por meio da RDC Anvisa 335/20, já autorizou a importação de medicações derivadas da Cannabis sativa. As operadoras, portanto, não podem restringir a forma de tratamento utilizada.

Se, por um lado, a Anvisa liberou a importação de medicamentos à base de cannabis, por outro, ainda não regulamentou a importação de plantas e sementes da maconha.

Há diversas variedades de plantas de maconha. Algumas não servem para produzir tetrahidrocanabinol (THC) suficiente para utilização como entorpecentes nem causam qualquer tipo de dependência, mas têm altos índices de canabidiol (CBD), substância que pode ser usada para tratamento de doenças. É a autorização da importação e cultivo dessas plantas, o chamado hemp, que o STJ discute nos autos do Recurso Especial 2.024.250/PR.

Esse recurso suspendeu a tramitação de todos os processos que tratam da questão devido ao Incidente de Assunção de Competência admitido pelo STJ em 14 de março deste ano.

A esperada decisão é de extrema relevância para o mercado farmacêutico brasileiro. Caso o plantio dessa variedade – o hemp – seja permitido, a maconha e o CBD vão se tornar muito mais acessíveis para produção de remédios e outros produtos. Isso deverá reduzir os preços e beneficiar o consumidor e as empresas farmacêuticas, que não precisarão mais pagar os elevados preços cobrados no mercado internacional.

Esse é apenas um recorte sobre os processos que analisam o uso da maconha para uso medicinal e recreativo – sendo o recente andamento do Recurso Extraordinário 635.659/SP no STF o fato mais importante.

Como falta apenas um voto para formar maioria sobre a descriminalização do uso pessoal da maconha, é provável que o julgamento do STF tenha desdobramentos positivos para ampliação do uso medicinal dessa planta e flexibilização do seu consumo para fins recreativos e em pequenas quantidades.

Sobre a determinação da quantidade para diferenciar usuário e traficante, é certo que o STF adotará um parâmetro objetivo de quantidade em gramas para essa classificação. A dúvida refere-se apenas à quantidade que será fixada.

A decisão do STF não implicará a legalização da maconha, já que o tráfico dessa substância ainda será considerado crime. Contudo, essa discussão no STF é um avanço que pode levar o Brasil a fazer parte da lista de países que reconhecem o uso da maconha como ato lícito.

É também um importante passo para aqueles que defendem o uso medicinal da maconha e para o ramo farmacêutico que utiliza substâncias derivadas dessa planta para comercialização de remédios e tratamentos. Isso porque a discussão na Suprema Corte poderá acelerar o andamento da pauta no Congresso Nacional, como já ocorreu com outros temas que apresentam lacunas legislativas.

 


[1] São favoráveis à descriminalização da droga os ministros Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes e Rosa Weber. O único voto contrário, até o momento, é o do ministro Cristiano Zanin. Ainda estão pendentes os votos de André Mendonça, Carmen Lúcia, Dias Toffoli, Luiz Fux e Nunes Marques.

[2] RDC Anvisa 17/15 (atual RDC Anvisa 660/22).

[3] Em 2022, o Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou – e dez dias depois suspendeu – a Resolução CFM 2.324/22, que atualizava os critérios para prescrição terapêutica de canabidiol, restringindo as possibilidades de uso, o que gerou a instauração de procedimento pelo Ministério Público Federal (MPF).

[4] Consulta Pública 49/20 e Consulta Pública 12/21.

[5] TJPR, Agravo de instrumento 0039299-31.2021.8.16.0000, 8ª Câmara Cível em Composição Reduzida, Desembargador Gilberto Ferreira, Data de julgamento 26.10.2021.