O Superior Tribunal de Justiça (STJ) abriu um precedente processual penal importante ao conceder, via habeas corpus, o levantamento de bloqueios cautelares patrimoniais. A decisão do Tribunal foi proferida em 22 de março, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 147.043/SP.
A Corte determinou o levantamento do bloqueio de bens e valores decretado em face do recorrente, tendo em vista a demora desarrazoada na tramitação da ação penal (três anos entre o decreto das medidas assecuratórias patrimoniais e o recebimento da denúncia).
A decisão é relevante, pois, nos últimos anos, tem-se observado um alargamento das hipóteses legais de decretação de medidas cautelares patrimoniais por prazos indeterminados. Nota-se também uma desproporcionalidade na determinação do valor da constrição, ausência de diferenciação entre bens lícitos e ilícitos e, até mesmo, imprecisão na natureza da medida imposta, que, cada vez mais, tem sido chamada genericamente de “indisponibilidade” de bens.
A constrição patrimonial ilegal pode acarretar prejuízos imensuráveis ao acusado, que deverá enfrentar o processo criminal desprovido dos bens atingidos pela cautelar. Para levantar a medida, é preciso comprovar a ausência de justa causa para a persecução penal, ocorrendo uma clara inversão do ônus da prova.
No caso em questão, a impetração é originária de ação penal derivada da Operação Custo Brasil, um desmembramento da Operação Lava Jato em trâmite perante a Justiça Federal de São Paulo/SP. A ação penal apura a existência de organização criminosa envolvendo funcionários públicos e pessoas ligadas a uma empresa responsável pelo desenvolvimento e gerenciamento de software de controle de créditos consignados, com pagamento de propina a agentes públicos e partido político.
Em sede de recurso ordinário em habeas corpus, a defesa alegou, em síntese:
- a existência de excesso de prazo na tramitação da ação penal, pois, estando o feito absolutamente pronto para seguimento há mais de um ano, não haveria sequer previsão para início da instrução penal, pois ainda a ratificação ou não do recebimento da denúncia oferecida há dois anos pelo Juízo de piso ainda estava pendente; e
- que o ponto central da impetração originária e do recurso ordinário não era a manutenção do bloqueio de bens do recorrente em si (que perdura há quase cinco anos), mas o excesso de prazo para a formação da culpa que pudesse legitimar a medida cautelar.
Jurisprudência do STJ
O entendimento majoritário do STJ é firme no sentido de não aceitar o pedido de levantamento de medidas cautelares patrimoniais com o uso do habeas corpus. A Corte entende que “a determinação de sequestro de bens (...) não caracteriza constrangimento atual ou próximo à sua liberdade de locomoção, razão pela qual o writ não é a via adequada para o tratamento do tema”. (AgRg no HC 508.036/SC, relator ministro Jorge Mussi, Quinta Turma, julgado em 28/05/2019, DJe 04/06/2019)
Além disso, o STJ tem entendimento firmado no sentido de que “os prazos processuais não têm as características de fatalidade e improrrogabilidade, fazendo-se imprescindível raciocinar com juízo de razoabilidade para definir o excesso de prazo, não se ponderando a mera soma aritmética dos prazos para os atos processuais (precedentes)” (RHC 88.588/MS, relator ministro Felix Fischer, Quinta Turma, julgado em 14/11/2017, DJe 22/11/2017).
No próprio julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 147.043/SP, o voto vencido do relator, ministro Rogério Schietti Cruz, ressaltou a necessidade de se observarem os precedentes e se respeitar a jurisprudência do STJ.
O ministro afirmou que, diversamente do que ocorre com as cautelares alternativas à prisão, nos casos que envolvem exclusivamente questão relativa à manutenção de medida cautelar assecuratória, de natureza real, o caminho previsto em lei é um pedido de restituição ao juiz e, desse indeferimento, conforme artigo 593, II, do Código de Processo Penal, a apelação. Se a situação for teratológica, cabe o mandado de segurança e, no STJ, o recurso em mandado de segurança contra decisão denegatória na origem.
Entretanto, os outros ministros que compunham a turma de julgamento entenderam que a controvérsia do recurso ordinário consistia em saber se há excesso na formação da culpa e que, por consequência, a questão afetaria a manutenção ou não das medidas cautelares assecuratórias.
O voto do relator
Em seu voto, o relator ressalta que deve prevalecer a premissa de que “a garantia da razoável duração do processo vigora tanto para o procedimento judicial como para o apuratório pré-processual, devendo basear-se não só no critério aritmético de tempo, mas também nas nuanças da persecução”.
O relator pontuou ainda a necessidade de assegurar o tratamento isonômico entre os acusados, mesmo que em sede de habeas corpus, considerando que, anteriormente, o tribunal regional já havia concedido o levantamento a um codenunciado em sede de mandado de segurança por demora no trâmite das investigações.
O constrangimento ilegal no presente caso estaria configurado, portanto, diante do uso abusivo da cautelar patrimonial, que violou diretamente a garantia da duração razoável do processo, prevista no artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal de 1988, segundo a qual “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Além disso, o artigo 131, inciso I, do Código de Processo Penal afirma que, quando o sequestro for determinado no curso da investigação, ele deverá ser levantado se a ação penal não for intentada no prazo de 60 dias. No caso em questão, a constrição decretada no inquérito policial já perdurava mais de cinco anos, e a denúncia sequer havia sido recebida. Por isso, o normativo poderia ser utilizado como parâmetro para aferição da razoabilidade da duração do processo.
Assim, apesar de o habeas corpus ser um remédio constitucional voltado à garantia do direito de locomoção, seu cabimento deve ser admitido nos casos em que o excesso de prazo na formação da culpa possa acarretar prejuízo a direito do acusado constitucionalmente assegurado.
Embora não exista definição no ordenamento jurídico sobre o que se entende pela razoabilidade da duração do processo, a constrição aos bens do denunciado não pode persistir indefinidamente no tempo, quando não há sequer previsão para o término do processo e, nesse caso, para o próprio recebimento da denúncia.