Recém-completados dois anos de sua promulgação, a Lei 14.193/21, conhecida como Lei da SAF, já resultou na transformação de 24 clubes de 13 estados e do Distrito Federal em sociedades anônimas do futebol (SAF), segundo levantamento do Senado Federal.
Como mostram os números do Relatório de Gestão 2022 da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), na temporada de 2022 foram registrados 1.276 clubes ativos dedicados à prática desportiva de futebol, 850 deles clubes profissionais.
Em relação à forma de constituição desses clubes, o Brasileirão masculino – principal competição de futebol do país – conta atualmente com 9 clubes associativos, 1 clube–empresa e 10[1] SAFs na Série A, além de 18 clubes associativos, 2 SAFs e nenhum clube–empresa na Série B.
Já o Brasileirão feminino, a edição de 2023 da Série A1 contou com a participação de 10 clubes associativos, 1 clube–empresa e 5[2] SAFs.
O número de SAFs ainda é pequeno comparado ao total de clubes de futebol existentes no Brasil, mas o modelo já representa um percentual relevante na principal competição de futebol do país (especialmente na Série A, em que metade dos clubes já adotou o modelo).
Além disso, as SAFs vêm melhorando gradativamente sua performance dentro e fora dos gramados.
No entanto, para além das vantagens e opções que trouxe aos clubes de futebol – como o regime centralizado de execuções, o regime de tributação específica e as novas possibilidades de financiamento –, a Lei da SAF trouxe também um desafio: a necessidade de adaptação a um novo e robusto regramento de governança corporativa.
A governança corporativa nas SAFs
A maioria dos clubes de futebol no Brasil está organizada sob a forma de associação, modelo que, no Código Civil, tem um regramento bastante simplificado e deixa a cargo do estatuto social a definição sobre uma série de atribuições. No caso das sociedades anônimas, porém, muitas atribuições já estão legalmente previstas.
Apesar de se tratar de um tipo específico, voltado à prática do futebol, as SAFs não deixam de ser sociedades anônimas e, portanto, sujeitas também ao regramento geral desse tipo societário previsto na Lei das S.A. (Lei 6.404/76).
Além disso, as SAFs devem observar as disposições da Lei Pelé (Lei 9.615/98), que tentou direcionar os clubes de futebol para o modelo de sociedade empresária, ao obrigar inicialmente que as entidades desportivas profissionais se constituíssem nesse formato. Não houve, porém, grande adesão e diante da grande resistência, a adoção do modelo passou a ser facultativa.
Passados mais de 20 anos da promulgação da Lei Pelé, a Lei da SAF retomou esse movimento de tentar transformar os clubes de futebol em sociedades empresárias, considerando, porém, a realidade do futebol brasileiro e seus desafios específicos.
Do ponto de vista de governança, a Lei da SAF atuou fortemente para reforçar e blindar a estrutura de administração dessas sociedades.
Estabeleceu-se a obrigatoriedade de constituir diretoria, conselho de administração e conselho fiscal permanente para o tipo societário, além de restrições tanto no campo dos administradores como no dos acionistas.
Ao impor a obrigatoriedade do sistema de duplicidade para os órgãos da administração (diretoria e conselho de administração), a Lei da SAF tornou a administração mais complexa, criando um regime de repartição de atribuições que oferece aos clubes de futebol uma abordagem mais empresarial na condução das atividades.
A norma também previu uma estrutura de administração obrigatória somente para as sociedades anônimas de capital aberto. A obrigatoriedade do conselho fiscal permanente não é exigida nem das companhias abertas, somente é cobrada das companhias de economia mista.
Quanto aos integrantes do conselho de administração, conselho fiscal e diretoria, a Lei da SAF estabeleceu a proibição de acesso a esses órgãos às seguintes pessoas:
- membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização ou de órgão executivo de outra SAF;
- membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização ou de órgão executivo de clube ou pessoa jurídica original, salvo daquele que deu origem ou constituiu a SAF;
- membro de órgão de administração, deliberação ou fiscalização ou de órgão executivo de entidade de administração;
- atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo em vigor;
- treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com clube, pessoa jurídica original ou SAF; e
- árbitro de futebol em atividade.
Com relação aos acionistas, a Lei da SAF estabelece que o acionista controlador não poderá deter participação, direta ou indireta em outra SAF. Prevê ainda que o acionista que detiver 10% ou mais do capital votante ou total da SAF, sem a controlar, não terá direito a voz nem a voto nas assembleias gerais. Também não poderá participar da administração dessas companhias, diretamente ou por pessoa por ele indicada, se participar do capital social de outra SAF.
Esse dispositivo foi inserido na lei para oferecer uma proteção contra a manipulação de resultados, já que o acionista – controlador ou não – de uma SAF não terá o direito de influenciar qualquer decisão, seja no âmbito da administração ou da assembleia de sócios de outra SAF.
Essas restrições representam um dos avanços da Lei das SAF em relação à Lei Pelé, ao estabelecer restrições para esse tipo societário, buscando proteger as SAFs de circunstâncias específicas do mundo do futebol e do contexto em que os clubes estão inseridos.
O sistema de governança trazido pela Lei da SAF mostra-se bastante adequado para oferecer aos clubes de futebol uma abordagem mais empresarial e profissional. No entanto, também apresenta desafios, pois, apesar de específica para o mundo do futebol, a lei prevê uma estrutura de administração bastante diferente da realidade dos clubes.
Para ilustrar esses desafios, a tabela abaixo sintetiza[3] as principais diferenças do ponto de vista societário e de governança entre as associações (modelo mais convencional para os clubes de futebol), as sociedades anônimas fechadas, as sociedades anônimas do futebol e as sociedades anônimas abertas (modelo que permite o acesso ao mercado de capitais):
ASSOCIAÇÃO | SOCIEDADE ANÔNIMA (COMPANHIA FECHADA) | SOCIEDADE ANÔNIMA DO FUTEBOL | SOCIEDADE ANÔNIMA (COMPANHIA ABERTA) | |
Diretoria | Órgão não obrigatório (definido pelo estatuto) | Órgão obrigatório |
Órgão obrigatório Restrições específicas: impedimentos próprios e dedicação exclusiva. |
Órgão obrigatório |
Conselho de Administração | Órgão não obrigatório (definido pelo estatuto) | Órgão facultativo |
Órgão obrigatório Restrições específicas: impedimentos próprios e proibição de remuneração de membros da administração do clube ou dos acionistas. |
Órgão obrigatório Obrigações específicas:
|
Conselho fiscal | Órgão não obrigatório (definido pelo estatuto) | Órgão obrigatório (funcionamento definido pelo estatuto) |
Órgão obrigatório e de funcionamento permanente Restrições específicas: impedimentos próprios. |
Órgão obrigatório (funcionamento definido pelo estatuto) Obrigações específicas: eleição em separado de membros por acionistas minoritários. |
Classes de associados/ Sócios/ acionistas |
Associados devem ter direitos iguais, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais. |
Ações ordinárias, preferenciais ou de fruição. Possibilidade de classes diversas de ações ordinárias. |
Ações ordinárias, preferenciais ou de fruição. Obrigações específicas: obrigatoriedade de emissão de ações ordinárias classe A para subscrição pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu. |
Ações ordinárias, preferenciais ou de fruição. Proibida a manutenção de mais de uma classe de ações ordinárias. |
Publicações obrigatórias | Publicação do estatuto no Registro de Títulos e Documentos (RTD) |
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Publicações obrigatórias das sociedades anônimas de capital fechado. Obrigações específicas: manutenção de documentos no site eletrônico da SAF:
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Publicações obrigatórias das sociedades anônimas de capital fechado. Obrigações específicas:
Manutenção das informações periódicas e eventuais no site eletrônico da companhia |
A análise comparativa da tabela deixa evidente o salto necessário para uma associação adaptar seu sistema de governança e se transformar em SAF.
Enquanto as associações estão sujeitas a um regramento bastante simplificado, as SAFs devem observar requisitos mínimos específicos de órgãos de administração e publicações.
Isso implica em uma estrutura de administração ampliada (o que provavelmente já ocorreria no caso da profissionalização) e na criação de novos processos para o acompanhamento das novas obrigações impostas pela lei – o que significa também maiores custos de manutenção.
Por outro lado, esses custos dão maior robustez aos processos internos de tomada de decisão e estabelecem uma atuação dos administradores mais diligente e transparente. Tudo isso favorece um ambiente de maior confiança tanto nas relações internas dos clubes como nas relações com terceiros e pode contribuir para o crescimento a longo prazo dos clubes de futebol.
A própria possibilidade de oferecimento das ações da SAF em garantia de empréstimos e financiamentos coloca essas sociedades em situação mais vantajosa que os clubes associativos – que não têm essa alternativa.
Essa possibilidade pode vir a conferir às SAFs taxas e condições de financiamento melhores que aquelas praticadas para as associações civis, o que representaria uma grande vantagem capaz de, por si só, compensar os novos custos de manutenção decorrentes da estrutura de governança mais sofisticada das SAFs.
O acesso das SAFs ao mercado de capitais
A Lei da SAF, ao mesmo tempo que buscou inserir os clubes de futebol na realidade das sociedades empresárias, já tratou de pavimentar o caminho rumo ao mercado de capitais.
Sabe-se, no entanto, como mostrado na tabela acima, que as exigências para as companhias de capital aberto estão em um patamar muito mais elevado, a ser alcançado pelos clubes de futebol após essa primeira transição para o modelo SAF.
Em agosto deste ano, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) divulgou o Parecer de Orientação 41, consolidando o seu entendimento sobre a atuação do regulador e normas aplicáveis às SAFs.
Nesse parecer, a CVM buscou orientar os participantes do mercado sobre como as SAFs podem utilizar instrumentos de acesso ao mercado de capitais. O documento também apresenta a visão da CVM sobre o seu papel em relação às SAFs companhias abertas.
Por meio da abertura de capital das SAFs, os clubes de futebol passarão a ter acesso a diversas novas formas de captação de recursos, como:
- a realização de distribuições públicas (inclusive a oferta pública inicial de ações);
- a emissão de debêntures-fut (exclusiva para SAFs);
- a emissão de valores mobiliários tokenizados (crowdfunding de investimento); e
- a realização de operações com fundos de investimento (Fundos de Investimento em Participações – FIPs, Fundos de Investimento Imobiliário – FII e Fundos de Investimento em Direitos Creditórios – FIDC).
Apesar das diversas opções à disposição, espera-se que, como na maioria das companhias abertas, os clubes de futebol deem o primeiro passo para entrada no mercado de capitais através do mercado de dívida. Em um segundo momento, passariam para um patamar mais elevado e de maior exigência para ter suas ações negociadas em bolsa.
O acesso a esses recursos possibilitará aos clubes de futebol uma nova fonte de financiamento para o desenvolvimento de suas atividades e poderá exercer papel fundamental para levar o futebol no país a um novo patamar de desenvolvimento e prosperidade financeira.
É importante, porém, que os clubes de futebol saibam que caminhar em direção ao mercado de capitais e captações públicas de recursos significa, inevitavelmente, se submeter a maiores exigências de governança corporativa (órgãos de administração obrigatórios, necessidade de transparência de informações, divulgações obrigatórias etc.). Também precisam estar cientes que a transformação em SAF é apenas o primeiro passo desse longo, mas, certamente, próspero caminho.
Como destaca o próprio parecer: “para as companhias abertas amplia-se o rigor das exigências de transparência, de divulgação de informações e de existência de controles internos e adequada governança corporativa”.
Dessa forma, apesar de a diferença entre a estrutura de governança das associações e das companhias abertas ser considerável e, em um primeiro momento, desafiadora para ser preenchida de uma só vez, a transformação em SAF pode muito bem funcionar como um “primeiro passo” dos clubes de futebol nessa direção. O período de adaptação a esse sistema “intermediário” definitivamente facilitará a transição e o acesso dos clubes ao mercado de capitais.
[1] O Clube Atlético Mineiro, o Club Atlhetico Paranaense e o Fortaleza Esporte Clube já constituíram SAFs, mas ainda estão registrados na CBF como associações.
[2] O Clube Atlético Mineiro e o Club Atlhetico Paranaense já constituíram SAFs, mas ainda estão registrados na a CBF como associações.
[3] As publicações, obrigações e características foram listadas de forma não exaustiva.
[4] Obs: outras obrigações específicas podem ser aplicáveis dependendo do segmento de governança corporativa da B3 adotado.