Ao longo da última década, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) vem consolidando sua jurisprudência[1] em relação à possibilidade de equiparar vítimas de eventos ambientais a consumidores, com base no artigo 17 do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Isso permite aplicar as respectivas regras consumeristas em processos de demandas indenizatórias.
Mais recentemente, no julgamento do Recurso Especial 2.017.986/BA, realizado em maio deste ano, a Segunda Seção do STJ fixou a competência do juízo especializado da 12ª Vara de Relações de Consumo da Comarca de Salvador para avaliar a demanda indenizatória ajuizada por pescadores e marisqueiros locais. Os autores da ação alegavam impactos causados pela operação de usina hidrelétrica no desenvolvimento de suas atividades econômicas.
Embora a situação apresente contornos de natureza eminentemente ambiental, o STJ atribuiu aos pescadores e marisqueiros a condição de consumidores por equiparação, potencialmente afetados por acidente de consumo (CDC, art. 17).
Para isso, reconheceu a necessidade de investigar a responsabilidade da concessionária por fato de produto e de serviço, nos termos dos artigos 12 e 14 do CDC. A justificativa é que os alegados danos decorreriam da atividade empresarial voltada à produção e exploração de energia elétrica, bem móvel que tem valor econômico (Código Civil, art. 83, inciso I).
Nessa mesma linha, a Terceira Turma do STJ destacou, no julgamento do Recurso Especial 2.009.210/RS, realizado em 8 de agosto de 2022, que o acidente de consumo “não decorre somente do dano causado pelo produto, em si, podendo advir, outrossim, de lesão proveniente do próprio processo produtivo, isto é, do projeto, da fabricação, da construção, da montagem, das fórmulas, da manipulação etc.”
Na ocasião, o STJ também decidiu pela aplicação do CDC em demanda indenizatória proposta por moradora de região supostamente afetada por poluição atmosférica e sonora, emissão de fuligem, gases poluentes, materiais particulados e odores fétidos, decorrentes de atividade industrial relacionada à produção de carne de aves para comercialização. Entendeu-se que o dano alegado pela parte autora decorreria do “processo de fabricação como um todo”, atraindo a incidência dos artigos 12 e 17 do CDC.
Na mesma oportunidade, o STJ identificou pelo menos 15 processos idênticos sobre a mesma situação, envolvendo moradores do município de Passo Fundo (RS).
O julgamento do recurso acabou sendo afetado para a formação de precedente qualificado, pela possibilidade de aplicação do CDC para a responsabilização independentemente de culpa por causa da teoria do risco do negócio (decorrente do art. 14 do CDC).
Constata-se, portanto, que crescem os casos em que é reconhecida a figura do consumidor bystander, o que evidencia a mudança na jurisprudência devido à ampliação do conceito de consumidor.
As decisões mencionadas não impactam somente eventos ambientais equiparáveis a acidentes de consumo, conforme jurisprudência consolidada ao longo dos últimos anos na Corte Superior. Elas apontam também uma tendência importante de reconhecer como consumidores aqueles que eventualmente sofram danos ocasionados durante e/ou em virtude da cadeia de produção, em si, anterior ou independentemente da colocação do produto no mercado.
Esse entendimento baseado em equiparação representa, na prática, a flexibilização e abrangência das relações de consumo à etapa produtiva, o que pode impactar a indústria e a atividade meio, no aspecto empresarial. Os impactos também se aplicam ao aspecto jurídico e pode influir na tramitação e no desfecho de litígios.
Essa abrangência da etapa produtiva pode ser notada também no julgamento pelo STJ do Recurso Especial 1.365.277/RS. Trata-se de um caso em que uma empresa distribuidora de energia elétrica foi responsabilizada por danos causados na atividade de produção e conservação de postes de madeira.
Embora a atividade desenvolvida seja alheia à prestação do serviço de distribuição de energia elétrica, o tratamento dos postes de madeira foi feito com o objetivo exclusivo de manutenção da cadeia de distribuição elétrica. A Corte entendeu que a prática está intrinsecamente ligada à atividade-fim da empresa – justificando a aplicação do CDC por equiparação das vítimas a consumidores.
Já na decisão sobre o Recurso Especial 2.017.986/BA, o STJ equiparou vítimas de eventos ambientais decorrentes do desenvolvimento de atividade de geração de energia em hidrelétrica a consumidores. Por causa dessa equiparação, foi determinada a modificação do juízo competente para processamento e julgamento da demanda de origem.
Nos casos analisados, o STJ reconheceu a possibilidade de aplicação da legislação consumerista especificamente para:
- fixar a competência de juízo especializado para trâmite da demanda indenizatória proposta pelos pescadores e marisqueiros (CDC, art. 5º, inciso IV); e
- admitir a inversão do ônus probatório em benefício da autora alegadamente prejudicada pela operação de indústria alimentícia (CDC, art. 6º, inciso VIII).
Além disso, a legislação consumerista estabelece outras regras diferenciadas que admitem, por exemplo:
- a competência do foro de domicílio do autor para propositura de demanda (CDC, art. 101, inciso I);
- o prazo prescricional de cinco anos (CDC, art. 27);
- a desconsideração da personalidade jurídica em benefício do consumidor (CDC, art. 28).
Embora as matérias analisadas nos julgamentos mencionados se limitem a questões específicas – como competência e inversão do ônus probatório do ponto de vista da legislação consumerista – é inegável que as conclusões da Corte Superior apontam para a flexibilização e abrangência interpretativa dos artigos 12, 14 e 17 do CDC. Indicam também uma tendência ao longo da próxima década nos entendimentos jurisprudenciais – que abordamos nos artigos Consumidor por equiparação: quem é e por que é relevante identificá-lo? e Consumidor por equiparação: evolução dos precedentes do STJ e continuaremos monitorando de perto.
[1] Vide REsp 1.354.348/RS, julgado em 26 de agosto de 2014; CC 143.204/RJ, julgado em 13 de abril de 2016; AgInt nos EDcl no CC 132.505/RJ, julgado em 23 de novembro de 2016; AgInt no REsp 1.833.216/RO, julgado em 20 de setembro de 2021.