O Supremo Tribunal Federal (STF) definiu, no dia 21 de setembro, o mérito do julgamento do Tema 1.031, que ficou popularmente conhecido como a tese do marco temporal para demarcação de terras indígenas.

Com o placar de 9 votos a 2, a Corte Suprema rejeitou a aplicação da tese do Instituto do Meio Ambiente de Santa Catarina (IMA) sobre o marco temporal para demarcação de terras indígenas.

O marco temporal é a tese que os povos indígenas têm o direito de demarcar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Federal..

Entenda melhor sobre origem da discussão

A tese do marco temporal ganhou força no mundo jurídico após o julgamento da PET 3.388/RR, em que o STF julgou a demarcação da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, localizada em Roraima e com 1,7 milhão de hectares em área contínua.

Para o julgamento do caso, a Corte Suprema adotou uma série de “salvaguardas institucionais”, interpretadas a partir do texto constitucional e consideradas essenciais para reconhecer a validade da demarcação.

Embora o julgamento do PET 3.388 tenha sido considerado um precedente importante para nortear a relação conturbada entre ruralistas e indígenas, sua aplicação, inicialmente, manteve-se restrita ao caso da Terra Indígena Raposa-Serra do Sol, por determinação do STF.

O cenário, porém, foi alterado em 2017, quando o ex-presidente Michel Temer aprovou a publicação do Parecer 001/2017 da Advocacia-Geral da União (AGU), conhecido como Parecer Antidemarcação.

A publicação do parecer determinou que todos os órgãos da Administração Pública deveriam aplicar as salvaguardas institucionais, entre as quais se incluem o marco temporal de ocupação.

Na prática, o parecer passou a ter força de lei e vinculou toda a Administração Pública. Passou-se, portanto, a aplicar a tese da decisão do STF no julgamento do PET 3.388 como se fosse de repercussão geral.

O parecer, entretanto, não pôs fim aos embates sobre o tema. Para pacificar o entendimento sobre a demarcação de terras indígenas, o STF estipulou o Tema 1.031 como a “definição do estatuto jurídico-constitucional das relações de posse das áreas de tradicional ocupação indígena à luz das regras dispostas no artigo 231 do texto constitucional”, que prevê o seguinte:

"Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."

Para examinar o assunto, a Corte utilizou o Recurso Extraordinário (RE) 1.017.365/SC, que analisa, no mérito, uma ação proposta pelo IMA contra o povo Xokleng, da Terra Indígena Ibirama-La Klaño, representados pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).

A área de aproximadamente 80 mil metros quadrados é objeto de disputas entre ruralistas e indígenas sobre a posse na data da promulgação da Constituição Federal. De um lado, os ruralistas argumentam que os indígenas não ocupavam as terras na data entendida como o marco temporal, enquanto os povos originários defendem que não ocupavam as terras porque foram expulsos da região.

O julgamento no Recurso Extraordinário 1.017.365/SC

No julgamento do Recurso Extraordinário 1.017.365/SC, que se iniciou em 2021 e se estendeu por 11 sessões, apenas os ministros Nunes Marques e André Mendonça votaram a favor da definição da data da promulgação da Constituição Federal como marco temporal para a demarcação.

Entre os ministros que votaram de forma contrária ao marco temporal, porém, não houve um consenso entre os votos, especialmente sobre a possibilidade de indenização aos possuidores de boa-fé das terras, proposta apresentada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Dessa forma, na próxima semana, os ministros vão fixar a tese de repercussão geral, estabelecendo o precedente que deverá ser seguido por todo o ordenamento jurídico, especialmente no julgamento dos 226 processos que estavam suspensos aguardando a decisão da Suprema Corte.

A possibilidade de indenização pelo valor da terra

O ministro Alexandre de Moraes, em seu voto, sugeriu a possibilidade de que a indenização aos não indígenas que vêm ocupando as terras de boa-fé seja feita não apenas pelas benfeitorias realizadas, como é atualmente previsto no artigo 231, §6º da Constituição Federal. Para Moraes, a indenização também deverá contemplar o valor da terra em si.

A iniciativa, embora coerente, deve ser analisada com cautela, principalmente considerando o impacto sobre os cofres públicos. A indenização pelo valor da terra-nua pode representar uma despesa muito grande para os cofres públicos, principalmente porque não foi proposto, até o momento, um limite para essa indenização.

A Agência Pública realizou uma estimativa do custo de indenização em dez terras indígenas ainda não homologadas e concluiu que seriam “necessários pelo menos R$ 942 milhões, cifra 46% superior ao orçamento da Funai em 2023”.

A Advocacia-Geral da União (AGU) também se manifestou de forma contrária, argumentando que a sugestão “condiciona o exercício da posse pelos povos indígenas a um gasto incalculável, em um ambiente de severas restrições de recursos no orçamento da União”.

Além dos impactos financeiros, a proposta do ministro condiciona a demarcação ao pagamento de uma indenização prévia, o que pode inviabilizar o pleito indígena. Na prática, na falta de condições da União arcar com a indenização, a demarcação pode não ocorrer.

O ministro Cristiano Zanin, por outro lado, defende ser possível uma indenização aos terceiros de boa-fé desde que decorra da titulação de terras concedidas pelos entes públicos aos particulares, e não pelo processo de demarcação em si. O processo demarcatório, dessa forma, não estaria ligado ao processo indenizatório, não se criaria, portanto, um passo anterior ao direito originário.

Além disso, sob o argumento de Zanin, os entes públicos são responsáveis objetivamente por indenizar particulares que tenham recebido título de terras originárias, fundamentado no artigo 37, §6º da Constituição Federal.

Cabe aos ministros, na próxima semana, definir se o julgamento do Tema 1.031 tratará apenas sobre a constitucionalidade ou não da delimitação de um marco temporal (o que já foi considerado pelos ministros como inconstitucional no julgamento dessa quinta-feira, 21 de setembro) ou se também será estabelecida a possibilidade de uma indenização pelo valor da terra em si.

Caso se defina uma indenização, é necessário que os ministros se atentem em delimitar de quem é a responsabilidade, quando ocorrerá essa indenização e se existe algum limite orçamentário.

Os impactos para o agronegócio

De acordo com os dados do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), existem 598 territórios brasileiros reivindicados por indígenas. A Funai, porém, até o momento, não tomou providências para regularizar essas terras. Além disso, estima-se que 63% da população indígena brasileira residem fora de áreas demarcadas, segundo dados apontados pelo Censo 2022 divulgado pelo IBGE.

Por outro lado, o agronegócio é o motor da economia externa brasileira e por isso não se pode ignorar as demandas do setor. A decisão do STF representa um avanço no debate sobre o processo de demarcação de terras indígenas, mas é vista como uma derrota aos ruralistas, principalmente no que se refere à continuidade de suas produções.

O cenário permanece de instabilidade, especialmente em relação à indenização de terceiros de boa-fé que acreditaram deter as terras.

O tema também está em discussão no Congresso Nacional por meio do Projeto de Lei 2.903, cujo texto foi aprovado na Câmara dos Deputados e atualmente tramita no Senado Federal. O projeto tem como objetivo regulamentar a demarcação das terras e a possível indenização. Entretanto, caso seja aprovado pelos congressistas, é incerto se será considerado constitucional e válido após a decisão do STF.

Em um cenário em que o agronegócio precisa continuar se desenvolvendo no país, atrelado à necessidade cada vez maior de se proteger o meio ambiente e os povos originários, torna-se primordial que os políticos e o Judiciário encontrem uma solução consensual, alinhada aos princípios constitucionais e que forneça segurança jurídica para os brasileiros.