O comprador pode pedir indenização (ou abatimento do preço) por vício redibitório em aquisições de sociedades? Essa é uma discussão que parecia há muito tempo pacificada, mas que tem levantado novos debates.
A disciplina dos vícios redibitórios é bastante direta: diante da existência de um vício em uma coisa ou bem recebido, o comprador tem o direito de rejeitar a coisa ou o bem por meio de redibição do contrato ou requerer o abatimento do preço (junto com potenciais perdas e danos, na hipótese em que o alienante tivesse conhecimento do vício ou defeito).
Ao se falar em vícios redibitórios em contratos de fusões e aquisições (M&A), porém, o tema ganha uma complexidade adicional. Isso porque existe uma discussão sobre a incidência da disciplina dos vícios redibitórios: ela se aplicaria exclusivamente aos vícios da participação societária em si (isto é, das quotas ou ações adquiridas) ou também aos vícios do patrimônio (ou negócios e atividades) dessa sociedade?
A doutrina majoritária e mais autorizada defende a extensão da disciplina também aos vícios relativos ao patrimônio (ou negócio) da sociedade-alvo, embora existam opiniões recentes em sentido contrário. Para os defensores dessa corrente minoritária, o argumento fundamental é a diferenciação feita no ordenamento brasileiro em relação aos institutos de share deal (operações de aquisição de ações ou quotas) e asset deal (trespasse de estabelecimento).
Devido às diferenças dessas operações – demonstradas, inclusive, pelo tratamento diferenciado dos institutos no ordenamento –, argumenta-se que não seria possível estabelecer uma “qualidade padrão” para o patrimônio de uma sociedade-alvo, a fim de determinar um critério objetivo para o que poderia ser classificado como “vício” desse patrimônio.
Sustenta-se também que inexiste na disciplina dos vícios redibitórios uma norma que limite a possibilidade de desfazimento das operações apenas aos vícios verdadeiramente relevantes. Isso porque o Código Civil estabelece a possibilidade alternativa, a critério do comprador, de redibição ou redução do preço (ou seja, sem qualquer exigência de relevância do vício como critério para que se possa prosseguir com a resolução da transação).
Nessa linha de argumentação, a ausência de tal regra tornaria a incidência da disciplina dos vícios redibitórios nos contratos de M&A excessivamente punitiva ao vendedor e de difícil aplicação após o fechamento de uma operação. Não seria, assim, factível nem razoável a possibilidade de resolução do contrato após o seu fechamento em virtude da identificação de qualquer vício do patrimônio da sociedade-alvo, ainda que irrelevante.
Em sentido oposto, a doutrina predominante defende que as diferenças no regramento legal dos institutos do share deal e do asset deal, na verdade, decorrem da previsão de um regime especial para a aquisição de participação societária. Assim, por se tratar de um regime de exceção, essas diferenças devem se restringir aos pontos em relação aos quais a lei expressamente quis diferenciar os respectivos regramentos.
Ainda, ao se celebrar um share deal, o objeto de contrato (e, portanto, o que reflete a real vontade das partes) consiste na entrega de participações societárias de uma sociedade que tenha determinadas características específicas (inclusive com relação ao seu patrimônio, negócios e atividades).
De acordo com essa linha majoritária seria pertinente, portanto, aplicar a disciplina dos vícios redibitórios não apenas às participações societárias alienadas, mas também ao patrimônio da sociedade-alvo.
Com relação ao argumento de inexistência de regra expressa no ordenamento jurídico brasileiro que limite a possibilidade de redibição do contrato apenas aos casos de vícios mais graves, a corrente majoritária entende que esse fato não significa que o critério de relevância não seja observado na prática brasileira. Apenas denota que a interpretação da regra deve ser realizada de forma conjunta com outras normas e princípios do nosso ordenamento, como o princípio da boa-fé objetiva, para impedir que o credor tenha o direito de desfazer a operação como um todo devido a vícios não relevantes.
De nossa parte, estamos alinhados à corrente majoritária. A nosso ver, a disciplina dos vícios redibitórios aplica-se a contratos de compra e venda de participação societária, tanto se houver vícios na participação societária propriamente dita, quanto se houver vício no patrimônio, negócio e/ou atividades da sociedade objeto.
Nesse sentido, o regramento contratual tem extrema importância, já que deve estabelecer de forma objetiva e precisa a alocação desse risco.