O colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) firmou entendimento, em julho, que determinado acordo privado entre credores não poderia contrariar deliberação tomada em assembleia geral de debenturistas.

O julgamento, decidido por três votos a favor, um contra e uma abstenção, ocorreu no âmbito de consulta formulada pela Pentágono DTVM, na qualidade de agente fiduciário de debêntures de emissão da rede de academias Bodytech, diante de impasse com determinados debenturistas (fundos administrados pela gestora Latache).

Este artigo tem por objetivo avaliar os argumentos apresentados ao longo das manifestações trazidas ao âmbito do processo administrativo e mapear, ainda que de forma inicial, dada a novidade do tema, potenciais impactos no instrumento em questão e nas estruturas de captação de recursos que contam com arranjos contratuais entre credores. Não se pretende revisitar os méritos das decisões proferidas nem analisar o caso específico.

Contexto

A companhia realizou sua segunda e terceira emissões de debêntures. Os detentores desses valores mobiliários, de ambas as emissões, firmaram contrato particular de credores que continha, entre outras provisões, regras de reuniões prévias a serem realizadas antes de qualquer assembleia geral de debenturistas, com o objetivo de firmar orientação de voto. O agente fiduciário também assinou o instrumento.

Em determinado momento, foi convocada assembleia geral de debenturistas para deliberar pela não declaração do vencimento antecipado das debêntures da segunda emissão. Seguindo-se o rito previsto no acordo de credores, realizou-se a reunião prévia. A orientação foi para que os debenturistas votassem, na assembleia subsequente, pela não aceleração da dívida. Os fundos geridos pela Latache, que haviam aderido anteriormente ao acordo de credores, participaram dessa reunião e seguiram o mesmo posicionamento.

Na assembleia, entretanto, os fundos da gestora votaram em sentido contrário (isto é, deliberaram para que as debêntures fossem declaradas vencidas antecipadamente).

Diante desse cenário e com instruções conflitantes (a tomada no âmbito do acordo de credores em uma direção e a da assembleia de debenturistas em sentido contrário), o agente fiduciário consultou a CVM para que a autarquia se manifestasse sobre a possibilidade de se sujeitar a deliberação da assembleia geral de debenturistas ao acordo anterior, privado, firmado entre os titulares desses ativos.

Ao longo do processo administrativo, da consulta inicial até a votação do colegiado da CVM, houve manifestações da Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) e da Procuradoria Federal Especializada, ambas, por seus próprios argumentos, no sentido de não se reconhecer a oponibilidade dos termos e condições do acordo de credores (tanto de forma geral como também especificamente em relação ao votado em assembleia).

Houve, ainda, recurso voluntário interposto pela companhia, para buscar a validade da reunião prévia e sua prevalência sobre o deliberado pelos debenturistas. E, ainda, constou manifestação voluntária da gestora, apresentando suas razões em defesa do voto proferido em assembleia, apesar do que fora pactuado previamente no arranjo contratual entre credores.

Os acordos entre credores

Acordos entre credores aparecem em contextos em que determinada empresa ou projeto necessita de financiamento de diferentes fontes – por exemplo, projetos que demandam elevado volume de recursos, como nos setores de infraestrutura, ou ainda em que se precisa compartilhar o risco de crédito, como em casos de reestruturação de dívidas.

Cada operação requer e produz o seu próprio conjunto de arranjos contratuais. Mas, normalmente, esses contratos privados tratam de compartilhamento de garantias, repartição de valores pagos pelo (ou obtidos do) devedor, regras para deliberações ou renegociações dos termos e condições das dívidas adjacentes, entre outros.

Esses instrumentos têm o objetivo de alinhar, em maior ou menor medida, o interesse entre um grupo de credores, assegurando-lhes alguma previsibilidade e organização no relacionamento com o devedor.

Contratos desse tipo estão presentes em operações de crédito bilaterais, em emissões de mercado de capitais e em estruturas híbridas entre tais fontes, tanto em transações locais como nas que contam com recursos estrangeiros. Em alguns casos, buscam nivelar credores; em outros, criam regras de prevalência de decisões por senioridade dos créditos ou ainda por volume de exposição ao devedor.

Trata-se, portanto, de um conjunto de direitos e obrigações que guarda a sua importância, circunscrevendo os próprios instrumentos de dívida e os contratos de garantia.

A decisão da CVM, os argumentos apresentados e o futuro dos acordos de credores

A decisão do presidente da CVM, acompanhada por outros dois diretores, expressou a legalidade do acordo de credores – contrariamente ao formulado pela área técnica neste ponto específico.

No entanto, ele se baseou em dois argumentos principais para não reconhecer, no caso concreto, a oponibilidade da decisão tomada no âmbito do contrato contra o decidido na assembleia geral de debenturistas.

Apresentou, ainda, uma terceira linha de argumentação que não foi desenvolvida plenamente, como exposto no voto.

O primeiro argumento foi a ausência de previsão detalhada na escritura de emissão das debêntures sobre o acordo entre credores (em especial, suas regras de reunião prévia) e seus potenciais impactos nas deliberações a serem tomadas em assembleia de debenturistas.

Ao não conter esse detalhamento, a escritura, na visão do presidente, descumpriu o requisito de prover aos debenturistas subsídios suficientes sobre o tema, para que pudessem decidir, de forma informada, sobre o investimento nas debêntures.

Em seu voto dissidente, o diretor João Accioly questiona a necessidade prática dessa previsão, já que a totalidade dos debenturistas do caso analisado firmou originalmente o acordo de credores (ou aderiu posteriormente a ele).Nesse sentido, e comparando-se o alcance desse acordo de credores às assembleias de debenturistas das respectivas emissões, já estariam vinculados, na visão do diretor dissidente, titulares representando a unanimidade de votos desse conjunto de credores, quórum máximo que se pode obter em uma votação organizada.

Como se sabe, não existe regra sobre a necessidade de confidencialidade de acordos de credores – embora credores possam preferir manter esses instrumentos fora do alcance geral em determinadas circunstâncias. Quando envolvem entes públicos (como bancos de fomento), inclusive, esses instrumentos são usualmente submetidos a registro em títulos e documentos, alcançando publicidade. A própria essência de publicidade dos instrumentos que compõem a documentação de uma oferta pública de valores mobiliários seria mais um elemento para corroborar para a não confidencialidade desses arranjos.

Por tais razões, e diante do posicionamento da CVM no caso em análise, deve-se considerar reproduzir nas documentações relativas a emissões de valores mobiliários, em especial nas escrituras ou termos de emissão, as informações essenciais das disposições dos acordos entre credores objetivadas a produzir efeitos perante terceiros, em especial em face do próprio devedor. Pode-se também considerar notificar a emissora para que tenha ciência das disposições específicas pactuadas no acordo de credores, principalmente as relativas a deliberações de debenturistas.

O segundo argumento preponderante da decisão que prevaleceu foi a incompatibilidade entre as regras de voto aplicáveis a assembleias gerais de debenturistas – contidas nas escrituras de emissão – e aquelas contidas no acordo de credores.

Em especial, a decisão contrapôs o que a escritura de emissão definiu como “Debêntures em Circulação”, que excluía aquelas de titularidade de, entre outros, pessoas ligadas à emissora (especificamente controladores e administradores) diante da ausência de limitação semelhante no acordo de credores.

A situação foi vista, pelo presidente da autarquia, como uma contrariedade não aceitável entre o contrato privado dos debenturistas e a própria escritura de emissão, uma vez que poderia levar o contrato a prevalecer sobre a escritura (e sobre as próprias assembleias gerais de debenturistas) em questões de ordem deliberativa.

Novamente o voto dissidente questiona, no caso concreto, os efeitos práticos dessa distinção, já que todos os debenturistas aceitaram os termos e condições do acordo entre credores.

A nosso ver, se o acordo de credores tivesse reproduzido as mesmas limitações da escritura de emissão e usado um conceito similar ao de “Debêntures em Circulação”, quando tratou da sua formação de quórum em reunião prévia, possivelmente não estaríamos debatendo essa situação.

A terceira argumentação trazida no voto presidencial, que deixou de ser desenvolvida de forma aprofundada pelas razões nele expostas, é também capaz de impactar o futuro dos contratos entre credores, ao menos os que se assemelham ao do caso concreto.

Nessa terceira linha, o argumento aponta para uma limitação à capacidade de credores de emissões distintas estabelecerem convenções contratuais para reger, conjuntamente, deliberações em assembleias de debenturistas de suas emissões, exceto se as diferentes emissões conferirem direitos equivalentes aos debenturistas (por consequência, estabelecerem obrigações equivalentes à emissora e, ao final, balizarem credores em um grupo uniforme diante do devedor).

Em outras palavras, na posição inicial sobre o tema trazida ao voto pelo presidente, seria reconhecido acordo, para fins de assembleias de debenturistas, entre titulares de debêntures de emissões distintas, desde que os direitos e obrigações de tais emissões fossem semelhantes.

Ao iniciar a análise desse requisito, o presidente pareceu encontrar, no caso concreto, uma equivalência entre a segunda e terceira emissões da Bodytech, na medida em que elas têm a mesma espécie, contam com as mesmas garantias reais, vencem na mesma data, têm os mesmos parâmetros de remuneração, entre outras características comuns.

Ao continuar seu voto, entretanto, o presidente não faz uma análise aprofundada desse elemento e deixa de desenvolvê-lo até uma conclusão. Na sua visão, já não estavam presentes os requisitos de sua primeira e segunda argumentações (ausência de previsão sobre o acordo entre credores na escritura e regras distintas para se permitir aos debenturistas votar no acordo mencionado e na escritura de emissão).

A experiência, no entanto, mostra que emissões distintas (ou créditos distintos) podem ter termos e condições diferentes, ainda que presentes outros elementos que justificam a existência de contrato entre credores (como, por exemplo, o compartilhamento de garantias). E há diversas razões para isso, desde o volume das operações até sua senioridade, momento em que foram contratadas, entre outros.

Nesse sentido, vale novamente a leitura do voto dissidente. Para o diretor Accioly, não são os termos e condições das dívidas em si que formam a “comunhão de debenturistas” regrada na legislação societária. É a própria existência de um acerto entre credores distintos, vinculados voluntariamente por contrato, que os equaliza e viabiliza deliberações em conjunto, como se pensou no acordo de credores do caso em análise.

Do desenvolvimento dessa terceira argumentação, que pode surgir em novas decisões da CVM, depende o futuro dos acordos entre credores que tenham o objetivo de criar regras unificadas para deliberações entre emissões distintas.

Já outros arranjos comumente encontrados em contratos dessa espécie, como compartilhamento de recursos, compartilhamento de garantias e outros temas patrimoniais estariam, ao menos por enquanto, mais distantes de limitação pelo resultado do caso Bodytech-Latache.