A estruturação de investimentos no exterior por meio de trusts, seja para fins sucessórios, financeiros ou pela saída definitiva do país, demanda dos residentes fiscais no Brasil uma avaliação cuidadosa. Isso porque não há um reconhecimento expresso desse instituto pela legislação brasileira e de seus efeitos tributários e patrimoniais no país.

Em síntese, o trust é um arranjo contratual pelo qual o instituidor, “settlor”, transfere a propriedade de determinados bens e direitos a um terceiro ou “trustee”, que será responsável por administrar os bens e direitos recebidos e de interesse do settlor – patrimônio do trust –, além de destinar o acervo patrimonial ao beneficiário (ou beneficiários).

Apesar de não haver legislação específica e jurisprudência consolidada sobre os impactos tributários do uso desse instrumento contratual, a Receita Federal do Brasil (RFB) já se manifestou formalmente sobre o tema por meio da Solução de Consulta Cosit 40/20. A RFB entendeu que seriam tributáveis pelo Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF) os valores recebidos por uma viúva residente fiscal no Brasil, na qualidade de beneficiária de trust constituído pelo seu falecido marido.

Em abril deste ano, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo (Sefaz–SP) manifestou pela primeira vez o seu entendimento sobre a incidência do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doações (ITCMD) na instituição de trust.

Na Resposta à Consulta 25.343/22 (RC 25.243/22), publicada em 4 de abril de 2023, a Sefaz–SP entendeu que a transferência do acervo patrimonial do settlor ao trustee na constituição do trust se qualifica como uma doação sujeita ao ITCMD nos termos do artigo 4º da Lei Estadual 10.705/00, que prevê a incidência do imposto nas doações por doador residente ou domiciliado no exterior.

Segundo a interpretação da Sefaz–SP, a intenção do settlor ao destinar o acervo destacado do seu patrimônio pessoal ao trust não seria a de proteger o seu patrimônio ou realizar um investimento financeiro, mas sim transmitir, por um ato de liberalidade, esse acervo ao beneficiário (ou beneficiários).

O órgão sustentou que a legislação paulista seria vigente e aplicável no caso concreto, apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no Recurso Extraordinário 851.108 (para entender melhor a decisão do STF, acesse nosso artigo) e, mais recentemente, na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 67 (ADO 67), julgada em junho de 2022. Na ADO 67, a Corte estipulou o prazo de 12 meses para que o Congresso Nacional edite lei complementar com normas gerais definidoras do ITCMD sobre doações e heranças instituídas no exterior – em atendimento ao dispositivo do artigo 155, inciso III, alíneas “a” e “b” da CF/88.

Do ponto de vista prático, nos parece que adotar o entendimento da Sefaz–SP resultaria na antecipação da tributação para o momento da instituição. Ocorre que, em muitos casos, a entrega de bens e direitos do trust ao beneficiário pode estar sujeita a condições ou contrapartidas ou, ainda, não ser conhecido o montante que será atribuído ao beneficiário nesse momento.

Ao proceder assim, a Sefaz–SP teria deixado de analisar elementos essenciais e inerentes do trust. No caso dos trusts revogáveis, por exemplo, nos quais o instituidor pode manter o direito de desfazer o trust e reaver para si todos os bens e direitos a ele transferidos, não faria sentido tributar o acervo patrimonial que, sob uma perspectiva jurídica, não foi atribuído de forma definitiva ao trust.

Esse raciocínio se aplica aos arranjos contratuais em que há imposição de uma condição para a liberação dos bens e direitos aos beneficiários, como o falecimento do instituidor, o que pode postergar o momento da cobrança do ITCMD.

Atualmente, há dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. O Projeto de Lei 4.758/20, cujo objetivo é introduzir e regular o contrato de fidúcia, e o Projeto de Lei Complementar 145/22 (PLP 145/22), que visa regular o tratamento tributário dos trusts sob a perspectiva do imposto de renda, ITCMD e ITBI.

Caso o PLP 145/22 seja convertido em lei com a redação atual, nos parece que os contribuintes terão fundamentos jurídicos para não adotar o entendimento da Sefaz–SP, já que o projeto estabelece, expressamente, que a simples transferência de bens e direitos do settlor ao trustee para a formação do acervo patrimonial do trust não será fato gerador do ITCMD.

De acordo com o projeto de lei, apenas quando o beneficiário adquirir o direito incondicional e imediato sobre o patrimônio do trust – não sujeito a termo ou condição para acessar qualquer parcela de ativos sob o trust – estará configurada a doação.

Mais recentemente, o governo federal publicou a Medida Provisória 1.171/23 (MP 1.171/23), que trata da tributação do IRPF sobre a renda e ganhos (rendimentos) obtidos por pessoas físicas residentes no Brasil em aplicações financeiras, entidades controladas (inclusive fundos de investimento e fundações) e trusts no exterior (veja a análise das principais regras da MP 1.171/23).

Sob a perspectiva da MP 1.171/23, os trusts constituídos no exterior passam a ser considerados transparentes para fins tributários no Brasil, apesar das suas características, como a revogabilidade ou irrevogabilidade.

Nos termos da medida provisória, os bens e direitos transferidos ao trust devem permanecer dentro da esfera patrimonial do instituidor (settlor), pessoa física residente no Brasil, para fins de preenchimento da ficha de bens e direitos da Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física (DIRPF). Como consequência, os rendimentos obtidos pelo portfólio do trust são atribuídos ao instituidor e devem ser tributados em sua DIRPF.

Vale destacar que o artigo 7º, inciso I, da MP 1.171/23 estabelece que os bens e direitos transferidos ao trust permanecem sob titularidade do settlor após a instituição do trust. O beneficiário passa a ser titular no momento em que o trust distribuir para o beneficiário ou quando o instituidor falecer, o que ocorrer primeiro.

Com isso, nos parece que a intenção da MP 1.171/23 é estabelecer a tributação de eventual renda do trust no nível do seu settlor, sem, entretanto, abordar adequadamente a natureza do direito obrigacional do trustee e do beneficiário a partir das possíveis características desse tipo de arranjo contratual – como a revogabilidade ou irrevogabilidade.

Apesar das controvérsias sobre o tema, fica claro que a introdução de regras aplicáveis aos trusts está no radar do governo federal e do Poder Legislativo. A tramitação dos projetos de lei e da MP 1.171/23 podem resultar em grandes avanços na definição dos aspectos tributários envolvidos na instituição desses arranjos contratuais para estruturação de investimentos no exterior e planejamento patrimonial e sucessório.