O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro confirmou, em 2 de setembro, a sentença da vara empresarial daquele estado, que havia deferido pedido de recuperação judicial apresentado pelo Instituto Cândido Mendes, associação civil mantenedora da Universidade Cândido Mendes, que conta com mais de 12 mil alunos e 1 mil docentes e funcionários.

O pedido de recuperação judicial do Instituto Candido Mendes reacendeu o debate doutrinário sobre o tema, suscitando duas importantes questões:

  • Uma associação sem fins lucrativos pode ser vista como “empresa” em determinadas circunstâncias?
  • Sendo empresa, ela pode se socorrer de recuperação judicial ao amparo da Lei de Recuperação de Empresas (Lei nº 11.101/05), mesmo não tendo registro como sociedade empresária nas juntas comerciais competentes?

Em uma interpretação literal do artigo 1º da Lei de Recuperação de Empresas, os institutos da recuperação judicial, extrajudicial e da falência seriam aplicados somente em benefício de empresários e sociedades empresárias. Nessa linha de raciocínio, as cooperativas, fundações, associações sem fins lucrativos e todos os outros agentes econômicos estariam excluídos da proteção trazida pela Lei de Recuperação de Empresas, não importando a atividade exercida.

Ocorre que, muitas vezes, esses agentes econômicos organizam-se como empresas, coordenando fatores de produção e colocando bens e serviços no mercado. Como ficaria a situação de alguns hospitais beneficentes, entidades de ensino sem finalidade lucrativa ou clubes de futebol que adotam a roupagem jurídica de associações sem fins lucrativos, mas na verdade são verdadeiras empresas do ponto de vista econômico, buscam superavit, sustentabilidade econômica e crescimento patrimonial, ainda que não repartam o lucro entre os sócios?

Inicialmente, para compreendermos os contornos de “empresa”, precisamos recorrer ao art. 966 do Código Civil, segundo o qual é empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Nesse sentido, “empresa” seria um fenômeno econômico, para cuja configuração seriam necessários três elementos essenciais: (i) exercício de atividade econômica para a produção ou circulação de bens ou serviços; (ii) atividade organizada, com a coordenação dos fatores de produção (capital, trabalho e bens); e (iii) atividade realizada de modo profissional, isto é, com habitualidade e visando ao lucro ou retorno financeiro.

No caso do Instituto Cândido Mendes e de tantas outras associações-empresas, os dois primeiros elementos são fáceis de identificar, faltando apenas o ânimo de lucro para caracterizar-se como entidade empresária. Porém, essas entidades poderiam ser vistas como associações com fins econômicos: embora estejam proibidas de distribuir lucros aos sócios, elas atuam como agentes econômicos que competem no mercado para gerar superavit financeiro e expandir seu patrimônio. Dessa forma, é possível distinguir dois tipos de associações: (i) aquelas que realizam negócios e atuam em mercado visando seu alargamento patrimonial, gerando superavit financeiro a ser integralmente revertido à própria entidade, sem distribuição de lucros aos associados, e (ii) aquelas que visam fornecer vantagens aos seus associados, sem caráter pecuniário (como uma associação de moradores de um bairro ou associação de pais e alunos de um colégio). O primeiro tipo de associação poderá, em determinadas circunstâncias, exercer atividade empresária.

Assim, embora haja importantes vozes em contrário,[1] segundo alguns doutrinadores,[2] seria possível fazer uma leitura ampliativa do artigo 1º da Lei de Recuperação de Empresas, para estender a aplicação do referido diploma legal a cooperativas e associações com fins econômicos, que exerçam atividades de produção ou circulação de bens ou serviços, com notória geração de riquezas (economicidade). Essa leitura ampliativa se justificaria com base numa interpretação sistêmica da Lei de Recuperação de Empresas, uma vez que seu art. 47 estabelece os objetivos e princípios norteadores da recuperação judicial: “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Ao pedir sua recuperação judicial, o Instituto Cândido Mendes colacionou importantes precedentes de deferimento da aplicação da Lei de Recuperação de Empresas e da recuperação judicial às seguintes associações sem fins lucrativos: no Rio Grande do Sul, a Universidade de Cruz Alta (2005) e a Associação Luterana do Brasil (2019), e no Rio de Janeiro, o Hospital Casa de Portugal (2006).

Sabemos que certeza e segurança jurídica são dois pilares fundamentais para o direito empresarial. Os agentes econômicos dependem de regras claras, aplicadas de forma previsível e uniforme pelo Poder Judiciário, para que possam calcular seus riscos e tomar suas decisões econômicas. Nesse sentido, não nos parece prudente que os institutos da falência e da recuperação judicial sejam aplicados a associações-empresas simplesmente com base em interpretação extensiva do art. 1º da Lei de Recuperação de Empresas, causando divergências doutrinárias e jurisprudenciais. Isso traria muita instabilidade ao sistema.

Aproveitando que o tema está sendo debatido no Congresso, parece recomendável que a Lei de Recuperação de Empresas seja modificada para prever claramente a aplicabilidade (ou não) dos institutos da falência e da recuperação judicial a outros agentes econômicos que tenham atividade empresária, mesmo que não se enquadrem como sociedades empresárias. Sem que haja tal mudança, as interpretações extensivas podem gerar insegurança jurídica no mercado, em especial para os financiadores no mercado de crédito, o que, em última instância, pode elevar o custo de capital para as entidades do terceiro setor.


[1] TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de; ABRÃO, Carlos Henrique (Coords.). Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 56; PENTEADO, Mauro Rodrigues, in SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio Sérgio A. de Moraes (Coords.). Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101/2005. São Paulo: RT, 2005. p. 110; FAZZIO JÚNIOR, Waldo. Lei de falência e recuperação de empresas. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2008; BURANELLO, Renato M. Sistema privado de financiamento do agronegócio – regime jurídico. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2011. p. 229/230; MELLO FRANCO, Vera Helena de e SZTAJN, Rachel. Falência e recuperação da empresa em crise. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. p. 20.

[2] Citamos: (i) VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 109-110 (defendendo a possibilidade de falência e recuperação judicial de cooperativas); (ii) WAISBERG, Ivo e RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. A ultrapassada teoria da empresa e o direito das empresas em dificuldades. In: Temas de direito da insolvência: Estudos em homenagem ao Professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo, 2017, p. 708 (defendendo a necessidade de uma leitura ampliativa do art. 1º da Lei de Recuperação de Empresas); e (iii) BEZERRA FILHO, Manoel Justino e CAMPINHO, Sérgio (em pareceres defendendo a aplicação da Lei de Recuperação Judicial ao Instituto Cândido Mendes).