No primeiro artigo desta série sobre gerenciamento de crise, abordamos o fato de que uma crise frequentemente traz desafios legais em diversas frentes, incluindo em relação a clientes, fornecedores e autoridades públicas, além de outros stakeholders importantes.
Em um ambiente comercial globalizado, nem sempre esses desafios se restringirão ao território nacional. É cada vez mais comum que empresas em situações de crise se vejam forçadas a lidar com questões legais em outras jurisdições.
Quando isso ocorre, é imprescindível agir rápido para garantir assessoria jurídica que defenda os interesses da empresa na jurisdição pertinente, além de estabelecer um ambiente de colaboração e troca de informações entre as equipes jurídicas envolvidas. O objetivo é neutralizar possíveis assimetrias de informação ou desalinhamento nessas áreas, sobretudo quando o desafio legal ocorre em jurisdição diferente daquela onde os fatos relacionados à crise aconteceram.
A seguir, abordamos os principais contextos em que uma crise pode desencadear reflexos em uma ou mais jurisdições estrangeiras e exigir uma boa gestão de crises internacionais.
Crise com repercussão em vários países
A situação mais direta em que uma crise pode exigir que a empresa lide com repercussões em mais de uma jurisdição ocorre quando os fatos que a originaram repercutiram em mais de um país.
Situações em que é fácil identificar esse cenário são, por exemplo, acidentes ambientais que contaminem ou afetem regiões em diversos países ou incidente cibernético que atinja a operação da empresa em duas ou mais nações.
Nesses casos, tanto as vítimas de danos decorrentes desses fatos quanto as autoridades governamentais das localidades envolvidas poderão iniciar procedimentos jurídicos para responsabilizar a empresa. Como resultado, a empresa poderá precisar se defender do mesmo fato em duas ou mais localidades. Isso exigirá o processamento ágil e organizado de informações para assegurar que, simultaneamente:
- os vários procedimentos recebam a base probatória necessária à defesa da empresa; e
- as equipes jurídicas envolvidas possam apontar os diferentes riscos relacionados à legislação específica de cada localidade.
Diferenças nas regras de cada país também podem resultar na adoção de posturas distintas. Essas variações podem depender, por exemplo, das presunções legais do sistema jurídico em relação às atividades de risco ou do nível de segurança jurídica oferecido pela legislação para a reparação de danos por meio de acordos.
Essas distinções exigem que as equipes jurídicas dialoguem para assegurar a produção das provas necessárias em cada jurisdição, além de garantir que a eventual adoção de estratégias diferentes seja feita de forma justificada e coerente.
Situação similar pode decorrer de prática de forum shopping – cada vez mais usual no contexto jurídico globalizado. Com essa tática, vítimas de crises se empenham em transferir suas pretensões da jurisdição que seria naturalmente competente – normalmente o local onde ocorreram os fatos ou o domicílio da vítima – para outra jurisdição que possa ser mais favorável. Para justificar a mudança, as vítimas se valem, por exemplo, da existência de filiais da empresa na nova localidade, ainda que as operações da filial não tenham relação com a crise em questão.
Além dos desafios já mencionados para casos que envolvam vítimas em várias jurisdições, a prática de forum shopping pode se revelar abusiva, o que aumenta a necessidade de a empresa se antecipar e avaliar as jurisdições em que é possível ajuizar demandas. Isso reforça a importância da sinergia entre as equipes jurídicas das diversas jurisdições concreta e potencialmente envolvidas.
Disputas societárias
Outro cenário recorrente em crises são as disputas societárias, seja por demandas diretas ou pedidos de regresso. A própria empresa envolvida na crise pode ter deveres fiduciários de iniciar disputas com pedido de regresso contra seus acionistas controladores ou administradores, o que não raras vezes precisará ser realizado em outra jurisdição ou por meio de arbitragem. Essa situação acaba expondo a disputa a regras processuais diferentes e, possivelmente, também a diferenças relativas a direito material.
Pode haver ainda disputas dentro do próprio bloco de controle para que um controlador arque integralmente ou majoritariamente com os reflexos financeiros da crise, além de pretensões de acionistas minoritários por perdas causadas pela crise.
Esse último cenário também tem se tornado mais frequente, diante do crescimento dos mercados financeiros para transações globais. Isso pode levar as autoridades de um determinado país a tomar medidas em relação à eventual falsidade ou imprecisão nas informações prestadas aos investidores.
Desde que a Organização das Nações Unidas (ONU) cunhou, em 2004, o termo ESG (environmental, social and governance – ASG em português) para recomendar às entidades privadas o tratamento conjunto e responsável de questões ambientais, sociais e de governança, diversos mercados financeiros e certificadores internacionais utilizam critérios ESG para qualificar e certificar empresas.
Situações de crise frequentemente terão algum impacto nos temas ESG. Por exemplo, um acidente operacional poderá ter impacto ambiental e social, enquanto um vazamento de dados terá implicações de governança.
Esse cenário poderá levar investidores a iniciar disputas contra a empresa, baseados na alegação de que a qualificação ESG da organização não corresponde à realidade – o que causaria perdas financeiras aos investidores ou mesmo os levaria a fazer um investimento indesejado (tese cuja aceitação pode variar de acordo com a jurisdição).
Iniciativas de terceiros não envolvidos diretamente
Um terceiro e último eixo igualmente relevante envolve iniciativas de terceiros não diretamente envolvidos na crise ou na empresa, mas que formulam pretensões relacionadas a ambas. Um exemplo são seguradoras e resseguradoras que podem ter de arcar com indenizações diretamente ou em regresso e que frequentemente iniciam suas próprias disputas contra a companhia ou contra terceiros.
Há, no entanto, muitos outros cenários. Entre eles, procedimentos administrativos que autoridades estrangeiras podem iniciar para investigar repercussões da crise naquela jurisdição. Isso pode incluir até mesmo audiências públicas ou alegações de danos indiretos e reflexos – por meio da teoria de bystanders, por exemplo –, cujo aceite dependerá igualmente da jurisdição envolvida.
O desafio maior de uma crise que rompe as fronteiras do território nacional (o que, como dito, tem sido cada vez mais comum em situações de crise) é a emergência simultânea de diversos cenários legais. A empresa, por exemplo, terá de se defender de pretensões em dois países, enquanto é investigada em um terceiro e seus acionistas travam disputas em arbitragem em uma quarta localidade.
Exatamente por isso é preciso contar com o apoio jurídico de profissionais experientes (especialmente no epicentro da crise). Eles devem estar preparados para gerenciar a troca de informações e alinhar estratégias em nível global, mas sobretudo devem ser capazes de traçar planos para enfrentar a crise com uma abordagem transnacional. Assim será possível sustentar a posição da empresa de forma coerente nas diversas jurisdições relevantes.
A experiência jurídica acumulada permite antever, ainda, em quais jurisdições é mais provável que cada pretensão surja. Isso se deve não somente à constante atualização das equipes envolvidas com as principais jurisdições globais para determinados tipos de litígio, mas também da constatação, em crises anteriores, que certos tipos de disputas terão maior prevalência em uma ou outra localidade.
Essa bagagem da assessoria jurídica assegura à empresa mais agilidade na análise de cenários e na recomendação e implementação de estratégias. Além disso, proporciona maior assertividade no planejamento para enfrentar a crise no plano internacional.