Vivemos a era da transformação digital e da democratização da informação. O avanço tecnológico está remodelando as relações, e a modernização da infraestrutura de telecomunicações trouxe o conhecimento para a ponta dos dedos. O acesso às informações provenientes das mais diferentes fontes é uma conquista civilizatória relevante. Contudo, é importante reconhecermos que existe uma expressiva diferença entre informação e conhecimento. Enquanto a informação se resume a fatos ou acontecimentos, o conhecimento é resultado do estudo sobre um determinado tema e viabiliza a construção de argumentos embasados em observações de natureza científica.
Essa breve introdução pode parecer desconexa com o título do texto, no entanto, quando tratamos de um assunto tão delicado como o racismo, é importante assinalar que a simples informação não é suficiente para compreendermos os seus complexos efeitos na sociedade.
Não temos a pretensão de exaurir em um curto texto a análise sobre questão de tamanha relevância. Nosso objetivo é provocar o desejo pelo conhecimento e abrir os olhos do nosso interlocutor para o rico universo dos estudos sobre racismo e teorias raciais. Os conceitos e ideias que serão brevemente explorados são produto de uma série de debates sobre a obra “Racismo Estrutural”, de autoria do jurista e filósofo Silvio Almeida.
O que é raça?
Segundo Silvio Almeida, o conceito de raça surge no contexto da expansão do colonialismo europeu, como instrumento de classificação dos indivíduos, e é a base da justificativa para a “submissão e destruição de populações das Américas, da África, da Ásia e da Oceania”. O surgimento do positivismo, no início do século XIX, ressignifica o conceito, na medida em que o homem se torna objeto de análise sob a perspectiva científica, ganhando força o racismo científico, teoria segundo a qual as características físicas/biológicas e o local de nascimento seriam fatores capazes de explicar uma suposta diferença entre as raças.
Já no século XX, o surgimento da antropologia como campo de estudo nos ajuda a compreender que o conceito de raça é utilizado como instrumento político de legitimação e naturalização ou normalização das desigualdades sociais.[2]
Existe diferença entre preconceito, racismo e discriminação?
A compreensão de qualquer matéria, independentemente da área, está intimamente ligada à compreensão do significado de cada conceito. Entender o sentido atribuído aos termos é o primeiro passo para um estudo de qualidade. Conforme nos ensina Silvio Almeida, embora intimamente relacionados, os conceitos de racismo, discriminação e preconceito têm significados distintos:
Preconceito: significa julgar indivíduos pertencentes a determinado grupo racial com base em conceitos preconcebidos.
Discriminação racial: a relação de poder é componente central da discriminação racial, que consiste na “atribuição de tratamento diferenciado a membros de grupos racialmente identificados”. A discriminação pode ocorrer de forma direta ou indireta. A discriminação direta se dá quando a condição racial gera uma prática ostensiva contra determinado grupo, a exemplo do que ocorreu em países que adotaram políticas expressas de segregacionismo.[3] Ao abordar discriminação indireta, o autor recorre a Adilson Moreira, jurista e intelectual negro referência em direito antidiscriminatório que nos explica que tal forma de discriminação é “marcada pela ausência de intencionalidade explícita de discriminar pessoas”.[4]
Racismo: o racismo é um processo por meio do qual política, economia e relações cotidianas replicam situações que criam “condições de subalternidade e de privilégio” entre os diferentes grupos raciais.[5]
O filósofo e jurista cujos pensamentos inspiram este texto preza pelo rigor no tratamento dos diferentes conceitos. Para ele, o racismo pode ser analisado por três diferentes perspectivas (individualista, institucional e estrutural), todas extremamente relevantes, mas merecedoras de análises distintas, visto que têm consequências diferentes.
Quando analisado sob a perspectiva individualista, o racismo é um comportamento irracional ou anormal diretamente ligado ao comportamento dos indivíduos e combatido por meio da aplicação da lei penal.[6]
O maior equívoco que se pode cometer ao discutir racismo é a interpretação dos fatos exclusivamente à luz da perspectiva individualista. Quando reduzimos o racismo unicamente à prática de um comportamento específico por parte das pessoas, criamos uma falsa sensação de inexistência de práticas racistas. Por serem duramente rechaçados pelo público e punidos legalmente, os atos de discriminação direta acabam se tornando pontuais, fato que gera no subconsciente a ideia de que o racismo não existe ou que a sua prática é exclusividade de pequenos grupos irracionais. Conforme explica Grada Kilomba, “no racismo, a negação é usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusão social”.[7] Esse é o principal motivo que nos leva a defender que o tema seja abordado na sua plenitude, ou seja, que seja estudado também sob a ótica institucional e estrutural.
Segundo Almeida, o racismo institucional é produto da dinâmica que rege o funcionamento das instituições. Assim, o modo segundo o qual as instituições se organizam e atuam e a adoção, ainda que indireta e não intencional, de determinadas práticas contribui para o aumento das desvantagens que afetarão significativamente grupos raciais socialmente marginalizados.[8] As instituições, quando não atentam ao contexto histórico e social no qual estão inseridas, reproduzem uma relação de poder e dominação que historicamente foi construída para subjugar populações negras.
Por fim, e não menos relevante, o conceito de racismo estrutural, que pode ser entendido como a normalização das práticas políticas, econômicas e jurídicas que, em maior ou menor grau, são geradoras das desvantagens sociais que atingem especificamente grupos raciais às margens da sociedade desde o período de expansão colonialista.
O racismo estrutural, portanto, é fruto de um processo histórico, político e econômico de reprodução sistemática das hierarquias sociais com base no conceito de raça. É a naturalização da violência social, marcada pela estigmatização da pessoa negra e pela imposição de características negativas e de subalternidade.
O Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar ação que discutia a prática do crime de antissemitismo, trouxe importante análise sobre a interpretação jurídico-constitucional do termo “racismo”. Embora a discussão em questão não fosse a prática discriminatória contra populações negras, a interpretação construída pelo STF é de extrema relevância e está intimamente conectada ao conceito de racismo estrutural. Conforme jurisprudência divulgada pela Corte:
“A construção da definição jurídico-constitucional do termo ‘racismo’ requer a conjugação de fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais que regeram a sua formação e aplicação. O crime de racismo constitui um atentado contra os princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respeitabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência.”[9]
O que podemos fazer?
A pergunta que todos nos fazemos é: como combater o racismo? A resposta é curta, porém complexa. Precisamos agir urgentemente! Mudanças significativas só acontecem quando existe ação dos indivíduos e das instituições (públicas e privadas).
Djamila Ribeiro preceitua que “o autoquestionamento – fazer perguntas, entender seu lugar e duvidar do que parece ‘natural’ – é a primeira medida para evitar reproduzir esse tipo de violência, que privilegia uns e oprime outros”.[10] Essa primeira medida – informar-se sobre o racismo – é o que permite entender o fenômeno para que ele possa então ser combatido.
Outra medida é “uma resistência organizada contra crescentes manifestações de violência racista”[11] como ensina Angela Davis: a partir do conhecimento do racismo estrutural na sociedade, todos os atores têm a responsabilidade de tomar ações antirracistas.
Associado a esse conhecimento, cabe refletir sobre a presença negra no espaço que ocupamos. Seja através da arte, educação, política e cultura, é extremamente profícuo ampliar a gama de referências para além das majoritariamente decorrentes de indivíduos brancos. Djamila Ribeiro aponta: “é importante ter em mente que, para pensar soluções para uma realidade, devemos tirar da invisibilidade. Portanto, frases como ‘eu não vejo cor’ não ajudam. O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir”.[12] Com base nisso, é possível traçar ações que dependem exclusivamente do engajamento para promover mudanças. Listaremos algumas, entre inúmeras, que podem ser adotadas no cotidiano:
- Reconhecer que o racismo existe na sociedade atual e que não se manifesta somente por meio de atos isolados e da discriminação direta.
- Promover debates e discussões sobre o problema com o objetivo de identificar e corrigir as inconsistências.
- Dialogar de forma indissociável questões de raça, gênero, classe e sexualidade que se entrecruzam como formas diferentes de opressão estrutural.
- Dar protagonismo aos intelectuais negros que estudam o tema.
- Incentivar o estudo sobre o combate ao racismo e garantir o acesso à informação de qualidade.
- Romper com o silenciamento do negro.
- Fomentar o ingresso e a permanência de negros nas instituições, aumentando sua representatividade e diversidade.
- Não tolerar práticas racistas e discriminatórias e agir para garantir que o ambiente de convívio dentro das instituições seja de diversidade e promova oportunidades para os negros.
- Fomentar políticas e práticas que forneçam aos indivíduos as ferramentas e oportunidades necessárias para que, havendo equidade, sejam aplicados os critérios objetivos de escolha. A redução das desigualdades estruturais no acesso à educação permitirá a meritocracia em sua plenitude e o florescimento de talentos atualmente perdidos em nossa sociedade.
- Implementar políticas que tenham como objetivo reparar uma dívida histórica e garantir a equidade social.
As iniciativas acima não são as únicas, mas toda luta tem um começo.
Vitor Barbosa, Ana Carolina das Dores e Ivan Fernandes são integrantes do ID.AFRO, grupo de afinidade espontaneamente criado pelos integrantes do Machado Meyer, no âmbito do Comitê de Diversidade & Inclusão do escritório, com o objetivo de promover debates sobre o tema étnico-racial.
[1] Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
[2] Idem
[3] Idem
[4] Trecho extraído da obra citada de Silvio Luiz de Almeida e originalmente contido em MOREIRA, Adilson José. O que é discriminação? Belo Horizonte: Letramento, 2017. p.102
[5] Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
[6] Idem
[7] Kilomba, Grada. “Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano”. Rio de Janeiro: Editora Livros Cobogó, 2019.
[8] Almeida, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.
[9] Habeas Corpus nº 82.424 – Diário da Justiça – 19/03/2004. Disponível em http://www2.stf.jus.br/portalStfInternacional/cms/verConteudo.php?sigla=portalStfJurisprudencia_pt_br&idConteudo=185077&modo=cms
[10] Ribeiro, Djamila. “Pequeno Manual Antirracista”. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
[11] Davis, Angela. “Mulheres, cultura e política”. São Paulo: Boitempo, 2017.
[12] Ribeiro, Djamila. “Pequeno Manual Antirracista”. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.