- 1) Introdução
O Instituto Nacional de Propriedade Intelectual (INPI) vem realizando, nos últimos anos, mudanças importantes em relação ao registro de contratos sujeitos à competência da autarquia, como os de licenciamento e sublicenciamento de direitos de propriedade industrial (marcas, patentes etc.) e de fornecimento de tecnologia.
Em 1º de janeiro de 2023, a autarquia passou a integrar a estrutura do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços. No fim do ano passado, em reunião de diretoria realizada em 28 de dezembro, com ata publicada no portal do INPI em 30 de dezembro, foram aprovadas propostas de alterações relevantes sobre o registro de contratos sujeitos à competência do INPI, em especial aqueles envolvendo transferência de tecnologia.
As medidas visam simplificar procedimentos burocráticos e alterar posicionamentos históricos da autarquia para reconhecer a autonomia privada dos contratantes, dando continuidade à tendência do INPI de diminuir sua interferência nos acordos entre particulares.
Na tabela abaixo resumimos as propostas de alterações aprovadas na reunião e as comparamos com o posicionamento anterior do INPI. Em seguida, comentamos mais detidamente alguns aspectos dessas propostas:
REGIME ATUAL | PROPOSTAS DE ALTERAÇÕES | |
Registro de contrato de licenciamento de know-how | Impossibilidade de registro de contrato de licenciamento de know-how. Reconhecimento da possibilidade de registro apenas de contratos de fornecimento (transferência de propriedade) de tecnologia. | Permissão do registro de contrato de licenciamento de know-how, sendo reconhecidos todos os seus efeitos, inclusive os decorrentes do registro no INPI. |
Possibilidade de pagamento de royalties pelo licenciamento de direitos de propriedade industrial requeridos, porém ainda não registrados no INPI | Impossibilidade de pagamento de royalties para o exterior por simples pedido de registro. Certificados de registro emitidos com a informação de que os contratos são celebrados a título gratuito. | Não serão impedidos pelo INPI os pagamentos de royalties previstos em contratos que tenham por objeto pedidos de registro de direitos de propriedade industrial. |
Procedimentos para o registro de contratos de tecnologia |
Assinaturas digitais devem ser certificadas pelo ICP-Brasil e, caso realizadas por partes estrangeiras, os documentos devem passar por e-notarização e e-apostilamento. Obrigatoriedade de rubricas em todas as páginas do contrato. Todos os contratos com local de assinatura no Brasil devem ser também assinados por duas testemunhas portadoras de documentos brasileiros. Obrigatoriedade da apresentação de documentos societários (estatuto, contrato social ou ato constitutivo da pessoa jurídica) e da última alteração do objeto social consolidada e representação legal da pessoa jurídica cessionária, franqueada ou licenciada, domiciliada ou residente no Brasil. |
Aceitação de assinaturas digitais sem certificado de ICP-Brasil, conforme critérios ainda em avaliação. No caso de assinaturas digitais por parte estrangeira, não serão mais exigidos o e-apostilamento e a e-notarização. Rubricas em todas as páginas serão facultativas. Como alternativa, o procurador declarará e se responsabilizará pela veracidade das informações e dos documentos. Fim da exigência. |
- 2) Aceitação do registro do contrato de licenciamento de know-how
A Lei 9.279/96 (Lei de Propriedade Industrial – LPI) aborda os contratos de transferência de tecnologia de maneira bastante genérica, apenas mencionando, em seu artigo 211, que o INPI fará os registros dos contratos que impliquem transferência de tecnologia, contratos de franquia e similares para produzirem efeitos em relação a terceiros. A LPI não conceitua nem define os contratos de transferência de tecnologia.
A Lei 10.168/00, de caráter tributário, traz uma definição de contratos de transferência de tecnologia em seu artigo 2º, § 1º. Para os fins dessa lei, os contratos de transferência de tecnologia são os relativos à exploração de patentes ou de uso de marcas e os de fornecimento de tecnologia e prestação de assistência técnica.
Considerando sua finalidade institucional prevista no artigo 2º da Lei 5.648/70, alterada pelo artigo 240 da LPI, o INPI passou a editar normas que tratam do conceito e da definição dos contratos de transferência de tecnologia. E fez isso, mais recentemente, por meio da Instrução Normativa 70/17 (IN 70) e da Resolução 199/17 (Resolução 199).
No artigo 2º, III, “a”, da IN 70, estabeleceu-se que o contrato de fornecimento de know-how seria enquadrado como um tipo de contrato de transferência de tecnologia. No artigo 8º, I, da Resolução 199, definiu-se que o contrato de fornecimento de tecnologia é um tipo de contrato de transferência de tecnologia.
Ainda na Resolução 199, em seu artigo 10, IV, consta que as partes do contrato de fornecimento de tecnologia são a empresa cedente, que detém a tecnologia não amparada por direito de propriedade industrial, e a empresa cessionária, que é receptora da tecnologia.
De acordo com esse posicionamento do INPI, o know-how não seria um direito de propriedade industrial e só poderia ser objeto de transferência definitiva. Assim, não seria cabível o simples licenciamento ou qualquer forma de autorização temporária de uso.
A Coordenação-Geral dos Contratos de Tecnologia do INPI (CGTEC) deixa esse posicionamento claro, por meio da Nota Técnica/SEI 8/2020/INPI/CGTEC/PR, ao ressaltar que, pelo fato de o know-how não ser amparado por um direito de propriedade industrial, não estaria previsto na lei brasileira. Consequentemente, um contrato de licenciamento de know-how seria nulo conforme o artigo 166, II e IV, do Código Civil.
A Procuradoria Especializada do INPI (PFE), ainda em 2021, por meio do Parecer 00031/2021/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU, se manifestou em sentido contrário ao entendimento da CGTEC, pois o simples fato de inexistir previsão legal expressa de tratamento do know-how como um direito de propriedade industrial ou de autorização expressa para a contratação de licenciamento de know-how não significaria a ilicitude e nulidade do respectivo contrato.
Para isso, deveria existir, no direito brasileiro, proibição legal sobre a celebração desse tipo de negócio, o que, de fato, não há. Dessa forma, se aplicaria o artigo 425 do Código Civil, que possibilita a celebração de contratos atípicos, assim como o artigo 104 do Código Civil, que estabelece a possibilidade de celebração de negócios jurídicos cujo objeto não seja proibido por lei.
A PFE reconheceu, ainda, os impactos da Lei de Liberdade Econômica (Lei 13.874/19) no Código Civil, sobretudo com a inclusão do parágrafo único no artigo 421, que estabelece o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual nas relações contratuais privadas, dispositivo que também deve ser observado pela Administração Pública e, consequentemente, pelo INPI.
Essa não foi a primeira vez que o INPI fez uma interpretação do seu papel, inclusive da forma independente de alterar a legislação aplicável. A própria IN 70 e a Resolução 199 alteraram o entendimento de que o INPI atuaria como agente delegado da Receita Federal e do Banco Central do Brasil. Atualmente, a autarquia não examina mais os pedidos de registro de contrato de transferência de tecnologia com base na legislação fiscal e de remessa de capital para o exterior.
Esse entendimento da PFE e o Parecer 00031/2021/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU foram expressamente citados na reunião de 28 de dezembro e serviram como embasamento jurídico para a proposta de que o registro do contrato de licenciamento de know-how seja inequivocamente aceito pelo INPI. Entendemos como bastante positiva essa proposta, por atender aos anseios da iniciativa privada e à primazia da vontade das partes nos negócios jurídicos.
- 3) Reconhecimento da possibilidade de pagamento de royalties por pedidos de registro de direitos de propriedade industrial
A PFE, por meio do Parecer 00035/2020/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU, analisou a possibilidade de pagamento de royalties por pedidos de registro de direitos de propriedade industrial, possibilidade historicamente não admitida pelo INPI.
Ao analisar a natureza jurídica dos pedidos de registro de marca, a PFE entendeu que se trata de bens imateriais com valor patrimonial, protegidos pelos artigos 130 e 195, III, da LPI. Também considerou que são direitos eventuais, subordinados à condição resolutiva de arquivamento do pedido.
Dessa forma, desde o momento em que o pedido de registro de marca é feito, ele passa a integrar o patrimônio do seu titular e, assim, gerar efeitos patrimoniais. Um desses efeitos é a possibilidade de celebração de contrato de licença.
A IN 70 e a Resolução 199 não proíbem o registro de contrato de licença de pedido de registro de marca. A Resolução 199, em seu artigo 13, § 3º, e artigo 14, IV, porém, estabelece algumas condicionantes em relação à celebração dos seus efeitos:
- o prazo de início da averbação dos pedidos será a data de publicação do deferimento da expedição do certificado de registro da marca na Revista de Propriedade Industrial (RPI); e
- em relação aos pedidos de registro de marca, o certificado de registro do contrato será emitido com a informação de que a licença foi celebrada a título gratuito. Dessa forma, a Resolução 199, na prática, vedou o pagamento de royalties pelo licenciamento de pedidos de registro.
Ao entender que não há embasamento legal para a vedação imposta pelo INPI, a PFE se manifestou no seguinte sentido:
- a data a ser considerada pelo certificado de registro como data de início de vigência do contrato é aquela declarada no contrato; e
- os artigos 13, § 3º, e 14, IV, da Resolução 199 devem ser revisados ou revogados.
Na reunião de 28 de dezembro, foi citado o entendimento da PFE em relação a pedidos de registro de marca e se propôs que esse entendimento seja expandido a contratos cujos objetos sejam pedidos de patente, desenhos industriais e demais ativos de propriedade industrial, no que couber, devendo ser encaminhada, em curto prazo, uma consulta à PFE sobre essa possibilidade de extensão do entendimento.
Na RPI 2716, de 24 de janeiro de 2023, foi publicado o despacho da presidência de 23 de janeiro de 2023, o qual inclui o Parecer 00035/2020/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU, e o Despacho de Aprovação 00137/2020/PROCGAB/PFE-INPI/PGF/AGU, para que produzam seus efeitos e decisões tomadas na reunião de 28 de dezembro.
Ou seja, quando for realizar a análise de contratos de licença de pedido de registro de marca, o INPI deverá considerar como data de início de vigência aquela declarada no contrato.
Em relação aos artigos 13, § 3º, e 14, IV, da Resolução 199, ainda não fica claro se o despacho da presidência teria ocasionado a sua revogação ou revisão. O Parecer 00035/2020/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU não esclarece a questão (diferentemente do que fez em relação ao prazo de vigência a ser considerado), aparentando a necessidade de que o INPI faça uma revogação ou revisão expressa dos Artigos 13, § 3º e 14, IV, da Resolução 199.
Uma forma de entender esse alcance será acompanhar as decisões do INPI sobre o tema, que podem revelar o acatamento dessa disposição independentemente da mencionada revogação ou revisão expressa.
Mesmo que seja necessário tomar medidas posteriores para efetivar a alteração na prática, compreendemos que se trata de mudança positiva para o mercado, justamente por respeitar a autonomia dos agentes privados e suas decisões econômicas, sem prejudicar o interesse público e desrespeitar o ordenamento jurídico nacional.
- 4) Alterações procedimentais
As propostas de alterações procedimentais visam facilitar o registro de contratos no INPI.
A possibilidade de utilização de outros certificados digitais além dos certificados emitidos pelo ICP-Brasil, conforme critérios ainda em avaliação, e a remoção da obrigatoriedade de e-apostilamento ou e-notarização das assinaturas digitais por partes estrangeiras são decorrência natural do aumento da utilização de assinaturas digitais causado pela pandemia.
A adoção dessas medidas pelo INPI já era mais do que necessária. Na reunião de 28 de dezembro, foi ressaltado que procedimentos imediatos para a implementação dessa decisão deverão ser iniciados pela área técnica do INPI.
A proposta do fim da obrigatoriedade de rubricas em todas as páginas dos contratos visa uma compatibilização com procedimentos já adotados pelas diretorias de marcas e patentes do INPI.
Na reunião, ficou estabelecido que deverá ser abolida de imediato a obrigatoriedade de rubricas e que caberá à área técnica do INPI implementar imediatamente a funcionalidade nos formulários eletrônicos pertinentes. Até que a implementação ocorra, o procurador do requerente do registro poderá apresentar uma declaração atestando a veracidade das informações e dos documentos, sob as penas da lei.
A inserção de assinaturas de duas testemunhas em contratos privados não é uma exigência do ordenamento jurídico brasileiro, mas apenas uma faculdade, não sendo aplicável a essa situação o artigo 784, III, do Código de Processo Civil, visto que essa norma diz respeito apenas a títulos executivos extrajudiciais. Na reunião, estabeleceu-se que essa medida deverá ser implementada de imediato.
A última proposta de alteração procedimental é sobre o fim da exigência de apresentação de estatuto, contrato social ou ato constitutivo da pessoa jurídica, bem como da última alteração sobre objeto social consolidada e representação legal da pessoa jurídica da empresa cessionária, franqueada ou licenciada, domiciliada ou residente no Brasil. Na reunião de 28 de dezembro, dispôs-se que a área técnica do INPI deverá, em curto prazo, ajustar os sistemas da autarquia nesse sentido.
- 5) Considerações finais
Entendemos como bastante positivas as alterações referentes aos registros de contratos no INPI descritas neste artigo.
Além de simplificar diversos procedimentos, essas medidas demonstram mais respeito à iniciativa privada e à liberdade contratual e atendem a anseios históricos das empresas que atuam nos mais diversos segmentos da economia, tanto das empresas estrangeiras fornecedoras de tecnologia quanto das nacionais que delas recebem conhecimentos tecnológicos muitas vezes essenciais para seus negócios.
São aspectos importantes na escala evolutiva da atuação do INPI, que considera o contexto atual da sociedade, a relevância global da tecnologia, a diminuição de fronteiras entre os países e a criação de novas formas de relacionamento, inclusive jurídicas, entre desenvolvedores de propriedade intelectual e investidores.
Apesar de a expressão “imediata” usada na reunião de 28 de dezembro dar a entender que as deliberações ali tomadas teriam efeito direto e aplicação imediata, entendemos que, na verdade, a utilização do termo, naquele contexto, se referia às medidas adicionais que o INPI deverá adotar imediatamente para dar efeito às deliberações feitas durante a reunião. Um exemplo foi a publicação do despacho da presidência, que tratou do prazo de vigência do contrato de licença de pedido de registro de marca.
Continuaremos acompanhando essas questões e divulgaremos por este canal novos desenvolvimentos.