A primeira versão do personagem mais clássico da Disney, Mickey Mouse, trazida a público em 1º de outubro de 1928 no curta Steamboat Willie, deverá entrar em domínio público nos Estados Unidos em 2024. O que esse evento significa na prática? Para responder à questão, precisamos analisar alguns pontos, começando pela história da proteção dos direitos de propriedade intelectual nos Estados Unidos e desse personagem.
Em 1790, ano da promulgação da primeira legislação norte-americana sobre direitos autorais, o prazo de proteção era de 14 anos contados da elaboração da obra.[1] Diversas alterações legislativas posteriores estenderam o prazo de proteção, especialmente a partir da década de 1960, conforme o gráfico a seguir:
A última alteração na legislação norte-americana sobre direitos autorais ocorreu em 1998, com a Sonny Bono Copyright Term Extension Act, conhecida por muitos como Mickey Mouse Protection Act, dado o forte apoio da Disney ao projeto.
A lei ampliou o prazo de proteção de uma obra criada em ou após 1º de janeiro de 1978. Como regra geral, o fim da proteção passou para 70 anos após a morte do autor. No caso de obras anônimas, pseudônimas ou feitas sob encomenda, o prazo de proteção foi estendido para 95 anos a partir do ano da primeira publicação ou 120 anos a partir do ano de criação, o que expirar primeiro.
A primeira versão do personagem Mickey Mouse foi criada em coautoria por Walt Disney, falecido em 1966, e Ub Iwerks, morto em 1971. A publicação ocorreu em 1928 e teve seu registro renovado. Dessa forma, a proteção de direitos de autor termina ao fim de 95 anos, ou seja, em 2023. Assim, a partir de 1º de janeiro de 2024, qualquer pessoa, em princípio, poderá utilizar essa versão do personagem, sem violar os direitos autorais da Disney.
No entanto, conforme apontam especialistas na legislação em questão, a utilização pelo público da primeira versão do personagem não é irrestrita. A Disney mantém a proteção de tal versão do personagem, bem como de versões mais recentes, como marca registrada. Essa proteção pode ser apresentada para impedir ou limitar certos usos do personagem, como a venda de mercadorias em que ele seja representado. Nesse caso, se poderia sugerir que a mercadoria é um produto produzido ou licenciado pela Disney.
Outros personagens da Disney já passaram para o domínio público nos Estados Unidos no início deste ano, como é o caso do Winnie-The-Pooh (Ursinho Puff), Leitão e Bambi. A perda da exclusividade da Disney em relação a esses personagens já resultou em produção cinematográfica feita por terceiro, ainda não publicada.
Considerando ser possível a comparação do personagem principal com o Ursinho Puff, observa-se no trailer da produção que o contexto no qual ele está inserido, assim como seu semblante em alguns momentos, distancia a obra das tradicionais produções cinematográficas da Disney, pois está associado ao gênero terror. Essa foi uma das estratégias para utilizar o personagem em domínio público sem violar a marca registrada da Disney.
Mas como funciona a legislação brasileira? Esses e outros personagens em domínio público (nos Estados Unidos ou em outros países) também estão em domínio público aqui?
No Brasil, os direitos autorais são regulados pela Lei Federal 9.610/98 (Lei de Direitos Autorais). O art. 41 dessa lei determina que, em geral, os direitos patrimoniais do autor perduram por 70 anos, contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao do falecimento do autor. Após esse prazo, a obra cai em domínio público e é devolvida à coletividade para que todos possam utilizá-la livremente, de modo gratuito, respeitados apenas a sua integridade e o crédito do autor.
Para que os personagens da Disney em domínio público (assim como quaisquer obras anteriormente protegidas por direitos de autor na mesma situação) sejam utilizados livre e gratuitamente no Brasil, alguns pontos devem ser considerados.
Primeiramente, o prazo mínimo de proteção para que uma obra estrangeira seja considerada de domínio público é de 50 anos contados a partir de 1º janeiro do ano subsequente ao do falecimento do autor da obra, conforme estabelecido no artigo 7º da Convenção de Berna para a Proteção de Obras Literárias e Artísticas, de que o Brasil é signatário e datada de 9 de setembro de 1886. Esse prazo aplica-se ainda que o país de origem do autor ou da obra estabeleça prazo menor de proteção.
Em segundo lugar, os artigos 7º e 8º da Convenção de Berna estabelecem que a duração da proteção será regulada pela lei do país em que a proteção for reclamada, não podendo exceder a duração fixada no país de origem da obra, salvo disposição legal interna em contrário.
De acordo com o texto legal do artigo 2º da Lei de Direitos Autorais, o Brasil se compromete a conferir às obras estrangeiras a mesma proteção legal atribuída às obras brasileiras, desde que haja reciprocidade, ou seja, desde que as obras brasileiras sejam protegidas nos países estrangeiros nos termos de suas próprias leis.
Isso significa que, no Brasil, obras brasileiras e estrangeiras são protegidas pelo mesmo prazo, qual seja, 70 anos contados de 1º de janeiro subsequente ao ano do falecimento do autor.[1]
No caso da primeira versão do personagem Mickey Mouse, portanto, o Brasil confere aos titulares dos direitos autorais exclusividade na exploração econômica das obras por 70 anos contados de 1º de janeiro do ano subsequente ao do falecimento do autor.
Como os Estados Unidos conferem o mesmo direito por 95 anos, contados da data da primeira publicação da obra, isso significa que a primeira versão do personagem Mickey Mouse cairá em domínio público nos Estados Unidos antes de cair no Brasil. Aqui, por se tratar de obra realizada em coautoria, ela obterá esse status apenas em 2042 – pois, de acordo com o artigo 42 da Lei de Direitos Autorais, o prazo é contado da morte do último dos coautores sobreviventes (no caso, Ub Iwerks, falecido em 1971).
Como visto, a entrada de direitos autorais em domínio público deve ser analisada de acordo com a legislação de cada país. Por isso, cabe àqueles que pretendem fazer uso de ilustrações, obras literárias e demais obras intelectuais, em caráter livre e gratuito, verificar se essas criações estão em domínio público, de acordo com a legislação do país em que se pretende utilizá-las.
[1] BRANCO, Sérgio. O Domínio Público no Direito Autoral Brasileiro, 2011, p. 153.
[1] 1790 Copyright Act