No primeiro semestre deste ano, o Machado Meyer Advogados realizou um debate sobre o racismo ambiental e a luta por justiça social. O evento foi organizado pelos grupos de afinidades Green Team[1] e ID.Afro[2] e contou com a participação da mestra em Sustentabilidade e doutora em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie Waleska Batista e da diretora de Operações do LabJaca, Mariana de Paula.
O racismo ambiental acontece quando pessoas de minorias étnicas ou populações da periferia sofrem discriminação por causa da degradação ambiental,[3] como a poluição, o desmatamento e outros problemas ambientais. É importante debater constantemente esse tema de grande relevância para conscientizar a sociedade e buscar soluções viáveis para um problema que atinge diversas minorias sociais.
Origem do conceito de racismo ambiental
O termo surgiu nas discussões sobre justiça ambiental e foi inicialmente debatido pelo movimento negro dos Estados Unidos na década de 1980. Mais tarde, o conceito foi adotado por estudiosos brasileiros[4] e evoluiu com o tempo. O termo racismo ambiental foi difundido no “Primeiro colóquio internacional sobre justiça ambiental, trabalho e cidadania”, realizado em 2001 no Rio de Janeiro, o que incentivou a realização, em 2005, do “Primeiro seminário brasileiro contra o racismo ambiental”.[5]
Reconhecer a existência de uma problemática ambiental pressupõe discutir as relações entre degradação ambiental e a reprodução de injustiças sociais no contexto brasileiro.[6] A justiça ambiental, especificamente no contexto do racismo ambiental, procura entender como a qualidade de vida de grupos populacionais em desvantagem social (por exemplo, os ocupantes de periferias dos centros urbanos) está relacionada aos efeitos ambientais negativos do funcionamento das indústrias e à falta de políticas públicas para neutralizar eventuais impactos.
Essas comunidades, muitas vezes, são obrigadas a viver em áreas mais expostas aos impactos ambientais, o que resulta em desigualdades socioambientais. Além disso, não é raro que decisões políticas e econômicas desconsiderem o impacto gerado nas comunidades de baixa renda e minorias étnicas. Isso resulta na criação de políticas que mantêm a desigualdade ambiental e podem até ampliar a discriminação contra determinados grupos já em desvantagem social.
Do ponto de vista ambiental, há, no Brasil, um extenso arcabouço jurídico para garantir a proteção das comunidades tradicionais – historicamente mais afetadas por impactos ambientais – e mitigar eventuais efeitos por elas sofridos em decorrência da instalação de empreendimentos potencialmente poluidores ou de crises ambientais.[7]
Aliar a legislação vigente, o desenvolvimento de políticas públicas e a participação da sociedade e das comunidades tradicionais na tomada de decisão tem se mostrado a forma mais eficaz de avançar no debate sobre o combate ao racismo ambiental.
É garantida, por exemplo, a participação de qualquer interessado nas audiências públicas ambientais realizadas no âmbito dos processos de licenciamento ambiental[8] de atividades consideradas efetiva ou potencialmente causadoras de grande degradação ambiental, sujeitas à elaboração do Estudo de Impacto Ambiental e do respectivo Relatório de Impacto ao Meio Ambiente (EIA/Rima).
Nessas audiências, o empreendedor expõe aos interessados o conteúdo dos estudos ambientais elaborados para o projeto, esclarecendo dúvidas e recolhendo críticas e sugestões para a melhoria do empreendimento (artigo 1º, Resolução 9/87 do Conselho Nacional do Meio Ambiente – Conama).
Se o projeto implicar qualquer impacto às comunidades tradicionais – incluindo comunidades quilombolas e indígenas –, o órgão licenciador poderá envolver no processo de licenciamento ambiental os órgãos intervenientes,[9] responsáveis por assegurar os interesses dessas comunidades. Esses órgãos deverão aprovar os estudos ambientais e a continuidade do licenciamento ambiental, assim como colaborar para o devido cumprimento de obrigações impostas pelo órgão ambiental.[10]
É importante que o combate ao racismo ambiental seja amplamente discutido, inclusive em foros como o licenciamento ambiental. Isso porque a prevenção de impactos ambientais em comunidades mais vulneráveis envolve, necessariamente, eliminar a assimetria de informações.
Quanto mais as comunidades estiverem informadas e participarem das decisões, maior será a garantia de que os projetos potencialmente poluidores, as políticas públicas e a legislação levarão em conta os interesses dessas comunidades para prevenir e mitigar os efeitos dos danos ambientais.
A importância do gerenciamento de crises ambientais
Além de definir um plano de ação para prevenir a ocorrência de danos ambientais, é muito importante estabelecer projetos e políticas públicas para o gerenciamento de crises ambientais decorrentes de eventos naturais. Chuvas, secas prolongadas, acidificação dos oceanos, aumento do nível do mar, entre outros temas, são pautas recorrentes em conferências internacionais sobre o meio ambiente[11] e podem impactar, especialmente, as comunidades mais vulneráveis.
Quando falamos de racismo ambiental é preciso compreender que eventuais crises ambientais extrapolam os impactos na fauna e na flora e afetam também a organização social. As chuvas intensas no litoral norte do estado de São Paulo no início de 2023, por exemplo, afetaram áreas vulneráveis com maioria de população negra. Isso demonstra que o impacto desses eventos não se restringe ao meio físico. Ele também se estende ao meio social.[12]
Conforme apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há grande desigualdade na representação da população de cor branca em relação às demais no Poder Legislativo.[13] Isso indica que as pessoas mais impactadas pela degradação do meio ambiente seguem sem poder de decisão[14] e fora do centro dos debates,[15] já que não estão igualmente representadas nos foros em que se discutem políticas públicas.
Esse fato ressalta, ainda mais, a reiterada deslegitimação da fala dessas minorias, assim como a dificuldade desses grupos de se constituírem como sujeitos de direito e não sujeitos a serem administrados.
Não por outra razão, os impactos de fortes chuvas, inundações, deslizamentos de encostas, entre outras situações emergenciais, têm como vítimas, em sua maioria, a população negra, as comunidades quilombolas, indígenas e ribeirinhas.
É essencial, portanto, que a pauta do combate ao racismo ambiental esteja presente em diálogos firmados pelos mais diversos grupos e setores em conjunto com o setor público, para implementar políticas públicas específicas sobre o tema. No Brasil, é possível afirmar que já há movimentações para incluir os direitos das minorias nas políticas ambientais.
Combate ao racismo ambiental na Amazônia Legal
A reativação do Fundo Amazônia pelo Decreto Federal 11.368/23 é uma possível e importante ferramenta governamental nesse sentido. O fundo visa arrecadar doações para investimentos não reembolsáveis em ações de prevenção, monitoramento e combate ao desmatamento, além de promover a conservação e o uso sustentável da Amazônia Legal. Sua reativação pode ajudar a combater o racismo ambiental na Amazônia Legal, na medida em que o fundo indica em seu cronograma a análise de projetos de apoio às populações indígenas e às comunidades, com proposta de ações de diversos setores.[16]
Além disso, outra importante – e recente – iniciativa é a criação do Comitê de Monitoramento da Amazônia Negra e Combate ao Racismo Ambiental, anunciada durante os Diálogos Amazônicos[17], entre os dias 4 e 6 de agosto, em Belém/PA.[18] O comitê será criado pelo Ministério de Igualdade Racial em parceria com o Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima e pretende propor medidas de enfrentamento ao Racismo Ambiental na Amazônia Legal.
Conclui-se que o combate ao racismo ambiental envolve um debate multidisciplinar e multicultural. É um esforço que demanda a atuação conjunta da sociedade e dos entes governamentais para prevenir e mitigar a ocorrência de danos ambientais e seus efeitos sobre comunidades mais vulneráveis.
[1] O Green Team é um grupo de engajamento composto pelos colaboradores do escritório, criado a partir da campanha “Machado Meyer Sustentável”, voltada à promoção de ações de sustentabilidade em nosso local de trabalho.
[2] O programa Identidade Afro (ID.Afro) compõe o nosso Comitê de Diversidade e representa o compromisso do escritório com a equidade étnico-racial por meio da promoção de um ambiente aberto e acolhedor.
[3] Jornal da USP. Racismo ambiental é uma realidade que atinge populações vulnerabilizadas. Acesso em 9.8.2023.
[4] HERCULANO, Selene; PACHECO, Tânia. “Racismo ambiental, o que é isso”. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006.
[5] Silva, Lays Helena Paes e. Ambiente e justiça: sobre a utilidade do conceito de racismo ambiental no contexto brasileiro. 2012. Acesso em 11.8.2023.
[6] SILVA, Lays Helena Paes e. “Ambiente e justiça: sobre a utilidade do conceito de racismo ambiental no contexto brasileiro”. e-cadernos CES, n. 17, 2012.
[7] É possível mencionar a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (Decreto Federal 6.040/07), o regulamento para demarcação de comunidades quilombolas (Decreto Federal 4.887/03) e o Estatuto do Índio (Lei Federal 6.001/73).
[8] ”A localização, a construção, a instalação, a ampliação, a modificação e a operação de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras, bem como os empreendimentos capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento ambiental pelo órgão ambiental competente” (artigo 2º, caput, Resolução Conama 237/97).
[9] Entre eles, a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), para representação das comunidades indígenas, e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), para representação das comunidades quilombolas.
[10] É importante destacar que é facultada ao órgão ambiental licenciador a continuidade ou não do processo de licenciamento ambiental. Contudo, considerando a especialidade dos órgãos intervenientes e a primazia pela proteção das comunidades tradicionais, o órgão licenciador tende a adotar as recomendações dos referidos órgãos intervenientes.
[11] Organização das Nações Unidas. O que você precisa saber sobre a Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP26). UNEP: 2021.
[12] “As desigualdades por cor ou raça se expressam ainda no acesso a serviços de saneamento, o que, além das implicações relativas à saúde e condições de vida, também traz impactos patrimoniais. Considerando que o valor da residência não é determinado apenas pelas características físicas do próprio imóvel, mas também pela localização e inserção na infraestrutura urbana, menores índices de acesso aos serviços de saneamento indicam menores valores desses imóveis”. (Ibidem, p. 7).
[13] “A participação política é uma das dimensões sociais onde há desigualdades de acesso segundo a cor ou raça e objeto de preocupação expressa na Declaração e programa de ação adotada na Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban, em 2001. Na primeira edição deste informativo foi destacada uma sub-representação da população preta ou parda na Câmara dos Deputados, nas Assembleias Legislativas Estaduais e nas Câmaras de Vereadores […] apesar de constituir 55,8% da população, esse grupo representa 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados estaduais eleitos em 2018 e por 42,1% dos vereadores eleitos em 2016 no País […]” (IBGE, Coordenação de População e Indicadores Sociais. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Estudos e Pesquisas: Informação Demográfica e Socioeconômica nº 48, Rio de Janeiro, 2ª ed., p. 13, 2022.
[14] Idem.
[15] LOUBACK, Andréia Coutinho. A COP26 mais representativa em termos de justiça climática. Le Monde Diplomatique Brasil, 12 nov. 2021.
[16] O documento “Diretrizes e Critérios para Aplicação dos Recursos do Fundo Amazônia”, estabelecidos pelo Comitê Orientador do Fundo Amazônia em 15 de fevereiro de 2023, indicam que está na pauta do comitê a análise de projetos sobre o tema.
[17] Secretaria-Geral. Diálogos Amazônicos. Acesso em 8.8.2023.
[18]Secretaria de Comunicação Social. Anielle Franco anuncia monitoramento da Amazônia Negra e enfrentamento ao racismo ambiental. Acesso em 6.8.2023.