A Lei de Cotas (12.711/12) completa dez anos em 2022 e tem prevista uma revisão de seus dispositivos para este ano. O texto legal reserva 50% das vagas de instituições federais de educação superior para pessoas que cursaram todo o ensino médio em escolas públicas e se autodeclaram pretas, pardas e indígenas, além de pessoas com deficiência. Metade das vagas reservadas deve ser destinada a alunos de famílias com renda per capita igual ou inferior a 1,5 salário mínimo. Neste artigo, propomos duas mudanças que podem ser feitas na legislação para ampliar o ingresso de indivíduos marginalizados no ensino público e reduzir as taxas de evasão.
Instrumento de reparação de injustiças históricas
O racismo, a discriminação e os efeitos da desigualdade social são algumas das diversas agressões que os indivíduos de grupos minoritários vivenciam no decorrer de sua trajetória social e acadêmica. O problema exige uma atuação mais ativa do Estado na adoção de medidas eficazes, sejam elas voluntárias ou coercitivas, com o intuito de resguardar a dignidade do ser humano.[1]
A Constituição Federal de 1988, em seu art. 3º, definiu como os objetivos fundamentais da República: construir uma sociedade livre, justa e solidária, garantir o desenvolvimento nacional, erradicar a pobreza e a marginalização, reduzir as desigualdades sociais e regionais e promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Os constituintes estabeleceram, explicitamente, que o Estado tem o dever de aplicar as medidas necessárias para combater preconceitos e discriminações, eliminar a desigualdade social e promover oportunidades para os grupos historicamente vulneráveis, a fim de permitir que esse segmento possa ascender do ponto de vista socioeconômico.
A institucionalização de ações afirmativas é, portanto, um instrumento para o Estado Democrático de Direito atingir a igualdade de fato, tendo em vista as históricas injustiças na sociedade brasileira contra as minorias sociais identificadas como negros, indígenas, mulheres, pessoas com deficiência e indivíduos LGBTQIA+.
A Lei de Cotas foi promulgada exatamente com esse objetivo. Os avanços que ela proporciona, no entanto, têm sido lentos. Um estudo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostrou que “entre [os anos de] 2016 e 2018, a proporção de estudantes [negros] de 18 a 24 anos de idade cursando ensino superior, passou de 50,5% para 55,6%. Esse patamar, contudo, ainda ficou abaixo dos 78,8% de estudantes na população branca de mesma faixa etária nesse nível de ensino”.[2]
Duas propostas de melhoria
Em nossa visão, duas mudanças relevantes poderiam ser feitas durante a revisão da Lei de Cotas para aumentar sua eficácia:
- inclusão de mecanismos assistenciais para manter os estudantes cotistas no ensino acadêmico; e
- implementação de medidas para combater as fraudes de candidatos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas sem, efetivamente, pertencerem a esse segmento.
Entendemos que não basta inserir pessoas periféricas no ambiente acadêmico pelo mecanismo de cotas, sem meios para a permanência desses estudantes no sistema educacional, com medidas como apoio pedagógico, emocional e auxílio financeiro para a manutenção dos alunos negros nos institutos de ensino. Isso reduziria as taxas de evasão escolar por razões financeiras. Afinal, a realidade enfrentada por muitos indivíduos à margem é a saída da instituição de ensino, sem a conclusão do ciclo básico, em busca de empregos não qualificados para subsistência.[3]
Quanto ao problema das fraudes, a Lei 12.711/12 se omite em relação à fiscalização para validar a autodeclaração racial. Como forma de compensar essa omissão, algumas instituições de ensino superior já adotam mecanismos de segurança, como as comissões de heteroidentificação, “método[s] de identificação étnico-racial de um indivíduo a partir da percepção social de outra pessoa”.[4] Assim, os candidatos que se autodeclaram pretos, pardos e indígenas no decorrer do processo seletivo para ingresso no ensino superior, são analisados por uma comissão com base em critérios fenótipos e documentais, a fim de diminuir o acesso de fraudadores ao ensino superior.[5]
Ação intencional das empresas para acelerar correção das desigualdades
Diante da realidade de subemprego dos indivíduos historicamente vulneráveis, as próprias empresas começaram a fomentar ações afirmativas no mercado de trabalho para expandir a quantidade de pessoas negras no ambiente corporativo por meio de processos seletivos específicos para esse segmento.
Um exemplo conhecido é o do Magazine Luiza. Com 53% de negros no quadro de trabalhadores, a empresa constatou que esse grupo representava apenas 16% dos cargos de chefia. Para começar a corrigir o problema, a empresa adotou um processo seletivo de trainees voltado somente para indivíduos negros, sem critérios excludentes, como a necessidade de inglês fluente e experiência prévia no exterior.[6] No fim, 19 profissionais foram selecionados e passaram por um processo de capacitação para funções de liderança.
A iniciativa evidencia que não basta inserir sujeitos à margem no mercado de trabalho elitizado por meio de cotas universitárias e ações afirmativas. Também é preciso oferecer cursos, mentoria, base financeira e ensinamentos de gestão para desenvolver e aprimorar esses indivíduos e permitir que, no futuro breve, eles possam estar em patamar de isonomia com os demais profissionais.
Outra ação afirmativa de grande relevância é o Projeto Incluir Direito, que fomenta a participação e inclusão de profissionais negros nos escritórios de advocacia. A iniciativa do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), que venceu recentemente a 18ª edição do Prêmio Innovare[7] na categoria Advocacia, oferece cursos para capacitar profissionais em formação e ajudá-los a concorrer a vagas nos escritórios associados ao Cesa em processos seletivos voltados somente aos participantes negros do projeto.
Da igualdade formal à igualdade de fato
Iniciativas de cunho reparador são de extrema relevância para a inclusão do negro e de outras minorias na sociedade. É necessário tratar de forma desigual os indivíduos que vivenciam realidades distintas, para oferecer aos que estão à margem da sociedade maiores chances de aprimoramento. Da igualdade formal, estabelecida pela Constituição, precisamos avançar para a igualdade material, a igualdade de fato, e cumprir o objetivo da República, com base no princípio da dignidade humana, de construir uma sociedade equitativa, na qual ações de equiparação histórica não serão mais necessárias para a inserção de grupos vulneráveis no ambiente de classes.
[1] Research, Society and Development, v. 10, n. 7, e47510717067, 2021.
[2] Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, IBGE, Estudos e Pesquisas – Informação Demográfica e Socioeconômica, nº 41, 2019. https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf
[3] “A faculdade não está pronta para lidar com a permanência dos alunos cotistas”, Carta Capital, 20.11.2019. https://www.cartacapital.com.br/educacao/a-faculdade-nao-esta-pronta-para-lidar-com-a-permanencia-dos-alunos-c/
[4] “ O que é heteroidentificação e como vão funcionar as comissões de heteroidentificação neste processo seletivo?”, Processo Seletivo IFRS, 22.03.2021. https://ingresso.ifrs.edu.br/2021/perguntas/o-que-e-heteroidentificacao-e-como-vao-funcionar-as-comissoes-de-heteroidentificacao-neste-processo-seletivo/
[5] “Lei de Cotas tem ano decisivo no Congresso”, Agência Senado, 11.02.2022, https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2022/02/lei-de-cotas-tem-ano-decisivo-no-congresso#:~:text=O%20PL%204.656%2F2020%2C%20do,de%20gradua%C3%A7%C3%A3o%20de%20institui%C3%A7%C3%B5es%20particulares.
[6] Legado: O Programa de Trainee Magalu exclusivo para negros (pretos e pardos), YouTube, 21.09.2021, https://www.youtube.com/watch?v=_Z0ovbveEkI
[7] 18ª edição do Prêmio Innovare, Instituto Innovare, 2021, https://www.premioinnovare.com.br/pratica/projeto-incluir-direito/1407