A Lei no 13.874/19, que institui a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica,[1] foi promulgada com o intuito de atender a diversos anseios do setor empresarial em prol do ambiente de negócios no país. Entre os dispositivos de natureza principiológica e alterações legislativas, destacam-se as normas inseridas no Código Civil relativas aos fundos de investimento,[2] em especial a possibilidade de limitar a responsabilidade dos cotistas e dos prestadores de serviço do fundo de investimento.

Nesse sentido, o novo artigo 1368-D do Código Civil determina que o regulamento do fundo de investimento poderá, observada a regulamentação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), limitar a responsabilidade dos cotistas ao valor de suas cotas e a responsabilidade dos prestadores de serviço do fundo,[3] perante o condomínio (o fundo) e entre si, ao cumprimento dos deveres particulares de cada um, sem solidariedade. Apesar de não gerar efeito imediato, por carecer de regulamentação pela CVM, esse dispositivo estabelece os fundamentos legais para que o regulador atualize as normas em vigor em linha com os modelos regulatórios mais avançados.

No ordenamento jurídico brasileiro, os fundos de investimento sempre tiveram natureza condominial, conforme referido originalmente no artigo 49, II da Lei nº 4.728/65 e nas normas legais e infralegais subsequentes, como a IN CVM nº 555/14,[4] relativa a fundos de investimento em geral, a Lei nº 8.668/93[5] e a IN CVM nº 472/08,[6] ambas aplicáveis aos fundos de investimento imobiliário (FIIs), e a IN CVM nº 578/16,[7] referente aos fundos de investimento em participações.

Quanto à responsabilidade dos cotistas do fundo de investimento, a lei civil estabelece que o condômino é obrigado, na proporção de seu quinhão, salvo se estipulada a solidariedade entre eles, a suportar os ônus e dívidas a que a coisa em condomínio estiver sujeita (artigos 1.315 e 1.317 do Código Civil). Em obediência a esses limites legais, a regulamentação da CVM aplicável aos fundos de investimento de maneira geral determina que os cotistas respondam por eventual patrimônio líquido negativo do fundo (artigo 15 da IN CVM nº 555/14). Já os cotistas dos fundos de investimento imobiliário fogem à regra, amparados por previsão legal expressa que limita sua responsabilidade à integralização das quotas subscritas (artigo 13, II da Lei nº 8.668/93), o que, por sua vez, foi reproduzido pela CVM na respectiva regulamentação dos FIIs (artigo 8º, II da IN CVM nº 472/08).

Portanto, a Lei da Liberdade Econômica estabeleceu os alicerces legais para que a CVM regule os fundos de investimento com maior liberdade, ao alterar o Código Civil (i) afirmando a natureza condominial dos fundos de investimento, porém excluindo expressamente a aplicabilidade das regras gerais de condomínio (novo artigo 1368-C) e (ii) franqueando ao regulamento do fundo dispor sobre a limitação da responsabilidade dos cotistas e dos seus prestadores de serviço, desde que observada a regulamentação da CVM (novo artigo 1368-D).

É razoável esperar que o regulador considere nas novas regras critérios como o tipo de fundo de investimento, os ativos e investimentos integrantes da carteira do fundo e o público investidor a que se destina, isto é, o perfil dos investidores e o grau de exposição a riscos que estão dispostos a assumir, ou deveriam assumir. De todo modo, especial atenção deverá ser dedicada aos fundos de investimento em participações (FIPs), seja pelo papel que desempenham na atividade empresarial, seja pela diversidade de investimentos que podem abranger.

No que se refere à atividade empresarial, os FIPs têm por essência o investimento em companhias abertas, fechadas ou sociedades limitadas, devendo exercer influência na estratégia e gestão das sociedades por ele investidas. Nesse aspecto, os FIPs se diferenciam de outros fundos, que podem deter participações societárias passivas em companhias listadas para fins meramente especulativos. Logo, os FIPs encarnam a vertente mais empreendedora da indústria de fundos de investimento, e, como tal, esses veículos de investimento, seus gestores, administradores e investidores devem ser tratados, a fim de assegurar a competitividade em suas atividades empresariais. Traçando um paralelo com uma sociedade holding de investimentos, cujos sócios têm responsabilidade limitada ao valor do capital subscrito na holding, salvo nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, não se justifica que os cotistas de um FIP estejam obrigados a cobrir ilimitadamente o patrimônio líquido negativo do fundo.

Quanto às diversas facetas que um FIP pode adotar, a IN CVM nº 578/16 estabelece diferentes categorias, como FIP-Capital Semente, Infraestrutura entre outras e, especialmente, o FIP-Multiestratégia, destinado ao FIP que não se classifica nas demais categorias. É plenamente possível que um FIP invista em sociedades de propósito específico destinadas exclusivamente ao desenvolvimento de empreendimentos imobiliários, o que torna o seu portfólio potencialmente idêntico ao de um FII. Portanto, vale refletir se não caberia permitir a esse FIP um regime de responsabilidade dos cotistas semelhante ao aplicável aos FIIs. Seria o caso de, nessas hipóteses, a regulamentação privilegiar a essência do investimento à sua forma e atribuir aos cotistas do FIP o mesmo grau de responsabilidade dedicado aos cotistas do FII?

Especificamente em relação à possibilidade de segregar a responsabilidade dos prestadores de serviços fiduciários, eliminando a responsabilidade solidária entre eles, tal dispositivo busca solucionar um entrave cada vez mais frequente nas relações entre os agentes do setor. Com o passar dos anos, a indústria de fundos vem se sofisticando, com reflexos na forma mais segregada e especializada de atuação dos agentes. Nesse sentido, a responsabilidade solidária entre os prestadores de serviços dos fundos tem servido como desincentivo para que os agentes mais capacitados e competentes desempenhem essas funções, gerando um nivelamento negativo.

Com a Lei da Liberdade Econômica, as bases da mudança foram lançadas, e caberá ao regulador analisar e, em conjunto com os demais agentes do mercado, refletir sobre quais caminhos a regulação deverá seguir. Independentemente do rumo escolhido, é indiscutível que não se pode postergar ou desperdiçar a oportunidade de aprimorar regras ultrapassadas e aspectos tão relevantes para a indústria de fundos de investimento, promovendo a atividade econômica e incentivando o desenvolvimento do nosso mercado de capitais.


[1] Proveniente da Medida Provisória nº 881/19.

[2] Novos artigos 1368-C a 1368-F da Lei nº 10.406/02 (Código Civil).

[3] Entendem-se como prestadores de serviços fiduciários os administradores, gestores e custodiantes.

[4] Art. 3º O fundo de investimento é uma comunhão de recursos, constituído sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros.

[5] Art. 1º Ficam instituídos Fundos de Investimento Imobiliário, sem personalidade jurídica, caracterizados pela comunhão de recursos captados por meio do Sistema de Distribuição de Valores Mobiliários, na forma da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, destinados a aplicação em empreendimentos imobiliários.

Art. 2º O Fundo será constituído sob a forma de condomínio fechado, proibido o resgate de quotas, com prazo de duração determinado ou indeterminado.

[6] Art. 2º O FII é uma comunhão de recursos captados por meio do sistema de distribuição de valores mobiliários e destinados à aplicação em empreendimentos imobiliários.

§ 1º O fundo será constituído sob a forma de condomínio fechado e poderá ter prazo de duração indeterminado.

[7]  Art. 5º O FIP, constituído sob a forma de condomínio fechado, é uma comunhão de recursos destinada à aquisição de ações, bônus de subscrição, debêntures simples, outros títulos e valores mobiliários conversíveis ou permutáveis em ações de emissão de companhias, abertas ou fechadas, bem como títulos e valores mobiliários representativos de participação em sociedades limitadas, que deve participar do processo decisório da sociedade investida, com efetiva influência na definição de sua política estratégica e na sua gestão.