“Temos diante de nós uma dura provação.
Temos diante de nós muitos e longos meses de luta e sofrimento.”
Winston Churchill
A análise comparada das curvas do número de infectados e da mortalidade do novo coronavírus (causador da covid-19) não permite outra conclusão senão de que o Brasil será um dos países mais gravemente impactados pela pandemia. Os efeitos serão potencialmente devastadores para as populações afetadas, para a economia nacional e, sobretudo, para o SUS e sua capacidade de absorção de novos pacientes – que, a julgar pelas afirmações das autoridades oficiais, poderá colapsar dentro das próximas semanas.
Em face de tão excepcionais circunstâncias, o direito público ocupará função central, por um lado, na terapêutica da crise sanitária e de saúde pública e, por outro, no enfrentamento da crise econômica.
Quanto ao combate ao vírus, o principal diploma jurídico concebido até o momento foi a Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 (Lei do Coronavírus). Com a escalada do surto, contudo, os instrumentos nela previstos tiveram que ser revistos, padronizando diretrizes para aplicação em toda a Federação e ampliando seu escopo.
A emenda à Lei do Coronavírus veio por meio da MP 926, de 20 de março de 2020 – sendo sua constitucionalidade, inclusive, recentemente confirmada, em sede cautelar, no âmbito da ADIn 6.341/DF. Entre outras determinações, a MP introduziu o § 8º ao art. 3º da lei, assegurando que quaisquer medidas adotadas no âmbito do combate e enfrentamento à covid-19 deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.
O dispositivo foi concomitantemente regulamentado pelo Decreto nº 10.282, também de 20 de março de 2020 (Decreto do Coronavírus). O regulamento determina que as ações de contenção estabelecidas na Lei do Coronavírus não poderão impactar serviços públicos essenciais, atividades essenciais e indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade – isto é, sem as quais a sobrevivência, a saúde e a segurança da população ficam em perigo – incluindo as respectivas cadeias de atividades conexas, pressupostas e acessórias.
O rol de atividades qualificadas no âmbito do decreto envolve, entre outras: (i) assistência à saúde; (ii) assistência social; (iii) segurança pública e privada; (iv) defesa nacional e civil; (v) transporte de passageiros, incluindo os aplicativos; (vi) telecomunicações e internet; (vii) saneamento; (viii) geração, transmissão e distribuição de energia; (ix) iluminação pública; (x) transporte de cargas, incluindo serviços de entrega por meio do comércio eletrônico; (xi) controle de tráfego aéreo, aquático e terrestre; e (xii) o mercado de capitais e seguros; sem prejuízo de outras atividades que o Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 possa definir como essenciais.
O decreto vem em boa hora, na medida em que a profusão de atos normativos editados nos três níveis da Federação – destinados à declaração de emergências de saúde pública, ao incentivo ao isolamento social, à restrição de atividades e serviços públicos – ameaçava sufocar provedores privados de atividades essenciais com incertezas regulatórias que, no limite, ameaçavam levar à paralisia prestadores mesmerizados por tamanha hipertrofia normativa.
Como regra geral, a Lei do Coronavírus passou a determinar que as “limitações de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou do Poder Concedente ou autorizador” (art. 3, § 6º).
A MP também qualificou o regime de dispensa de licitação previsto na lei para compras relacionadas à pandemia, (i) esclarecendo que os bens adquiridos não precisarão ser novos, desde que suas condições de uso sejam garantidas pelo fornecedor; (ii) dispensando a elaboração de estudos preliminares, no caso de bens e serviços comuns, e admitindo a apresentação de termo de referência ou projeto básico simplificados, no caso de bens e serviços de maior complexidade; (iii) reduzindo pela metade os prazos para aquisição de bens e serviços pela modalidade de pregão, eletrônico ou presencial; e (iv) aumentando a margem para que a Administração determine acréscimos ou supressões ao objeto contratado para até 50% do valor inicial.
Além disso, foi ampliado o escopo da dispensa de licitação prevista na lei, para incluir serviços de engenharia, inclusive de fornecedores que estejam com inidoneidade declarada para contratar com o Poder Público (desde que sejam, comprovadamente, os únicos fornecedores possíveis para o bem ou serviço que se busca adquirir), ou mesmo que não possam comprovar regularidade fiscal, trabalhista ou demais exigências de habilitação do edital, na hipótese de haver restrição de fornecedores possíveis.
A medida abre caminho para a contratação de empreiteiras para a construção, reforma e ampliação de hospitais, adaptação de outros equipamentos públicos para a criação de novos leitos e demais medidas destinadas a remediar ou atenuar o iminente colapso do SUS. A dispensa também será fundamental para a aquisição de respiradores (ainda que usados), reagentes para testes, equipamentos de proteção individual, medicamentos, insumos para P&D em vacinas, novos fármacos ou mesmo para a utilização secundária de medicamentos já existentes.
Outro importante, ainda que delicado, instrumento previsto na Lei do Coronavírus é a requisição administrativa, que poderá fundamentar, enquanto perdurar a crise, a utilização pela Administração de recursos pertencentes à iniciativa privada, como hospitais, leitos, hotéis, cruzeiros, estádios, clubes e quadras esportivas, além de máscaras cirúrgicas, aventais hospitalares ou antissépticos para higienização. Poderão também ser objeto de requisição administrativa serviços como capacitações técnicas para a utilização de novos equipamentos e serviços médico-hospitalares em geral. Fundamental destacar que a medida deverá ser fundamentada, estritamente vinculada ao combate à pandemia, e garantirá a indenização posterior àquele de quem o bem ou serviço foi requisitado – ainda que a valoração dessa indenização seja uma fonte potencial de conflitos futuros.
Contra os aspectos econômicos da crise, outros instrumentos passam a ser paulatinamente concebidos. O primeiro setor objeto de tratamento emergencial foi o de aviação civil, para o qual foi editada a Medida Provisória nº 925, de 18 de março de 2020. A medida buscou, de um lado, garantir algum alívio financeiro aos aeroportos concedidos pelo governo federal, permitindo que eventuais contribuições fixas e variáveis (particularmente os valores devidos a título de outorga), com vencimento ao longo de 2020, possam ser pagos até o fim do ano. De outro, a MP garantiu às companhias aéreas a possibilidade de reembolso das passagens impactadas pela pandemia em um prazo de 12 meses.
Outras providências já ganham corpo, como o diferimento do pagamento de tributos federais (em especial no âmbito do Simples, nos termos da Resolução 152 do Comitê Gestor do Simples Nacional) ou o plano de combate à crise conduzido pelo BNDES – envolvendo a suspensão integral, por seis meses, do pagamento de juros e principal de operações diretas e indiretas com o banco ou a ampliação de crédito para capital de giro destinado a micro, pequenas e médias empresas.
Outra relevante medida foi a edição do Decreto Legislativo nº 6/20, que, nos termos do art. 65 da Lei de Responsabilidade Fiscal, reconhece o estado de calamidade pública nacional, com o objetivo de flexibilizar as regras orçamentárias e de atingimento de resultados fiscais para impulsionar a alocação estratégica de recursos públicos contra a crise.
Percebe-se que a farmácia do governo está ganhando força para o combate da covid-19 em todas as dimensões. É imperativo, contudo, que os remédios sejam bem administrados, com eficácia, vigor e sabedoria. O subdimensionamento da dosagem, tanto quanto seu abuso, terão consequências desastrosas. Vencer o vírus é agora a prioridade nacional – por mais que o percurso até a vitória possa ser longo e árduo. Como lembrado por Winston Churchill no seu primeiro discurso como primeiro-ministro, tendo sido apontado justamente para combater uma colossal ameaça à civilização mundial, “sem vitória não há sobrevivência”.