Tema recorrente em tempos de coronavírus tem sido as repercussões da pandemia de covid-19 sobre as mais diversas espécies de contratos: comerciais, trabalhistas, financeiros, imobiliários, consumeristas etc. Diversos autores vêm produzindo robustas sínteses do tratamento legal, doutrinário e jurisprudencial da mais vasta gama de institutos envolvidos na remediação dos efeitos do surto sobre as relações contratuais subjacentes, entre os quais se destacam o caso fortuito e a força maior, a onerosidade excessiva, a álea extraordinária e a teoria da imprevisão.
No tocante aos contratos administrativos, deverão ganhar particular força os pedidos de reequilíbrio econômico-financeiro, que se fundamentam numa pluralidade de normativos espalhados pela Constituição, por legislações ordinárias e pela regulação de setores de infraestrutura específicos. Constitucionalmente, por exemplo, ficam asseguradas as “condições efetivas da proposta” àqueles que celebram contratos com o poder público (art. 37, XXI). No plano legal, a manutenção do equilíbrio na proporção de riscos, encargos e remunerações estipulados de parte a parte no contrato administrativo se manifesta na Lei Geral de Contratações Públicas (Lei 8.666/93, art. 65, II, “d”; §§ 5º e 6º), na Lei de Concessões (Lei 8.987/95, art. 9º, §§ 2º e 4º), na Lei de Parcerias Público-Privadas (Lei 11.079/04, art. 4º, VI, e 5º, III), entre outros. O instituto é, além disso, objeto de tratamento setorial, com regulamentações por diferentes agências, como, entre tantos, o setor portuário (conforme a Resolução ANTAQ 3.220/14), o setor rodoviário (conforme a Resolução ANTT 5.850/19) ou o setor aeroportuário (conforme a Resolução ANAC 528/19).
Como regra, o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos administrativos pode ser recomposto pela aplicação de diversas metodologias, sendo uma das mais corriqueiras a correspondente construção de um fluxo de caixa marginal (que corre paralelamente à equação financeira estruturante do contrato e destinado à neutralização dos efeitos de eventos supervenientes e específicos) pelo emprego de vários instrumentos, como (i) o aumento ou a redução dos valores financeiros de contrato (como a tarifa cobrada pela disponibilização do serviço); (ii) a modificação de obrigações contratuais (como investimentos projetados); (iii) a extensão ou redução do prazo de vigência do contrato; ou (iv) o pagamento de indenização pelos valores sobrepujantes ao cálculo originário do instrumento.
É diante desse quadro, de meios regulatórios destinados ao atingimento de um fim predeterminado (a recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato), que a atual pandemia – consideradas as medidas administrativas propostas para sua contenção, os efeitos do isolamento social e a crise econômica que a sucederá – parece impor desafios novos ao setor de infraestrutura.
Isso porque o surto de coronavírus, ao que tudo indica, de um lado, difere de todas as pandemias enfrentadas no passado recente e, de outro, poderá acarretar uma crise econômica global com características únicas, eventualmente distintas do último grande choque enfrentado pelo capitalismo, em 2008.
Inicialmente, essa epidemia difere das demais crises sanitárias que se abateram sobre o mundo em um passado recente por uma série de motivos: (i) trata-se de um vírus novo, sobre qual se tem muito pouca informação e, por consequência, muita incerteza; (ii) sua capacidade de contaminação é exponencial, com índice de letalidade (ainda não completamente mapeado) relevante; e (iii) para o qual ainda não há perspectivas concretas do surgimento de uma vacina ou de medicamento com eficácia e escala suficientes.
A somatória desses fatores pinta um quadro perturbador para as políticas nacionais. Impossível desprezar que uma fórmula dessas poderá resultar em muito mais do que crises de saúde pública. Um dos campos mais afetados pelo surto será o ecossistema econômico – cujo destino fica visceralmente atrelado à resolução da tragédia humanitária. Em matéria de serviços públicos, parece certo que processos de reequilíbrio econômico-financeiro vão se proliferar nos próximos meses e anos – buscando a restituição das condições necessárias para que os prestadores possam manter sustentavelmente suas atividades sem impactos para a população que deles necessitam.
Em um cenário como o descrito, qual será a viabilidade de recomposição do equilíbrio mediante o aumento das tarifas cobradas pelo serviço público prestado que incidirão sobre uma população pauperizada, com desemprego galopante e informalidade explosiva? O risco de demanda desse novo fluxo de caixa terá atingido patamares potencialmente inéditos no país.
O mesmo vale para a possibilidade de extensão do prazo contratual. A combinação de uma demanda agregada fragilizada pela recessão com uma oferta comprometida pela pandemia sugere que a retomada do ciclo econômico pode se dar em uma curva menos acentuada do que foi visto em recuperações anteriores. Nada garante, portanto, que a exploração da atividade por período adicional – dadas as restrições temporais às prorrogações constantes dos próprios instrumentos e dos editais que lhes deram causa – seja capaz de equilibrar as relações contratuais e manter a higidez dos serviços prestados.
O que dizer, então, da alternativa de indenização para recomposição do equilíbrio? Os esforços globais para remediar os efeitos do surto de covid-19, que envolvem a aplicação de trilhões de dólares para ampliar redes de seguridade social, implantação de planos de renda básica, resgate de setores especialmente afetados e promoção de investimentos (combinando-se, no Brasil, a um orçamento público já vertiginosamente estressado), tornam improvável que o Estado brasileiro seja capaz de arcar com todos os pedidos que lhe serão destinados.
Resta ainda a possibilidade de supressão de investimentos obrigatórios ou reprogramação dos investimentos previstos, hipótese que já abordamos em outro artigo. Se, por um lado, a crise pode tornar determinados investimentos economicamente irrecuperáveis, ou até mesmo inúteis para a manutenção dos níveis de serviço contratualmente definidos, por outro, o cancelamento de investimentos – sob uma perspectiva macroeconômica – impactará a retomada da demanda agregada, retroalimentando, assim, os efeitos da crise.
Há, por fim, espaço para redução dos valores de outorga ainda devidos. A medida tem impacto limitado, uma vez que a maior parte dos contratos estabelece como condição de sua assinatura outorgas fixas pagas nos primeiros anos da concessão ou até mesmo antes da sua celebração. Por sua vez, as outorgas variáveis, vinculadas invariavelmente às receitas da concessionária, costumam representar percentuais insuficientes para permitir um efetivo auxílio a fluxos de caixa severamente comprometidos pela acentuada queda da demanda. Toda ajuda é bem-vinda, mas, a par dos impactos na arrecadação, sobretudo quando a Administração Pública já contava de alguma forma com esses valores, não parece ser um abono ou a isenção dos pagamentos da outorga que trará efetivas condições para a continuidade da prestação de serviços essenciais.
Diante de tudo isso, da profunda gravidade e emergência do cenário vislumbrado, com uma miríade de atores demandando simultaneamente do poder público para sua sobrevivência, será imperativo que o Estado brasileiro exerça competentemente seu papel de planejador, adotando uma estratégia clara de intervenção e incentivos à economia nacional, coordenando os correspondentes instrumentos e empregando prudentemente recursos públicos escassos, de modo que os eventuais impactos para os prestadores de serviços públicos essenciais (desde que não devidamente abordados na matriz de risco dos respectivos contratos) sejam mitigados e a população possa continuar deles se beneficiando – mesmo após o fim da quarentena, por muitos anos.