A configuração da competência constitucional sobre a indústria do gás natural prevê que o último elo da cadeia de distribuição do produto é regulado pelos estados. Ao regular os “serviços locais de gás canalizado”, os estados, em geral, optam por estabelecer um mercado cativo e um mercado livre de gás natural, que têm regras diferentes para os agentes envolvidos.

Os mercados livres estaduais costumam ser os espaços regulatórios em que agentes específicos podem adquirir diretamente a molécula de gás natural de comercializadores autorizados pela ANP. Já no mercado cativo, os consumidores devem necessariamente adquirir o gás natural da distribuidora local de gás canalizado (CDL).

Os agentes que são autorizados a atuar no mercado livre de gás normalmente são denominados consumidores livres, autoimportadores e autoprodutores (em conjunto, “agentes livres”).

Como cada estado tem capacidade regulatória para estruturar seu mercado livre, é comum que haja discrepâncias entre as regulações estaduais. Com isso, potenciais agentes acabam sendo obrigados a arcar com os custos para analisar, compreender e estruturar o cumprimento da regulação aplicável – que, por ser complexa, requer serviços especializados.

Na esteira do desenvolvimento do mercado de gás brasileiro, o governo federal tem lançado programas importantes com o objetivo de harmonizar as regulações estaduais, como o Gás para Crescer e o Novo Mercado do Gás.

Nesse contexto, o Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás Natural (CMGN) promoveu debates entre diversas entidades estatais para buscar soluções coordenadas. Esses esforços culminaram na publicação do Manual de Boas Práticas Regulatórias, em 12 de abril de 2021, para toda a cadeia do gás.

O manual está subdividido em princípios gerais de boas práticas regulatórias e princípios específicos para os setores da indústria de gás natural caracterizados como monopólios naturais. É o caso do transporte, sujeito à competência da ANP, e da distribuição, regulada pelos estados.

Após apresentar as características das regulamentações mais importantes da ANP para o setor de transporte de gás natural, a última parte do manual traz as orientações para os serviços locais de gás canalizado.

Ocorre que o Manual de Boas Práticas Regulatórias – estruturado apenas como um instrumento de recomendação devido à divisão de competências no setor – não tem caráter vinculante. Além disso, por sua natureza, não chegou a produzir resultados práticos tangíveis para o desenvolvimento dos mercados livres de gás.

Usando como parâmetro o manual publicado pelo CMGN, diferentes entidades estabeleceram algumas iniciativas privadas para realizar análises comparativas e sintéticas entre os estados que já haviam avançado na regulação do mercado livre de gás – como o ranking do mercado livre de gás (Relivre).

O Relivre e a onda de modernização das regulações estaduais de gás natural

No contexto da abertura do mercado de gás natural, o Relivre foi criado em março de 2023 pela junção dos esforços da Associação dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e de Consumidores Livres (Abrace), do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP) e da Associação Brasileira de Produtores Independentes de Petróleo e Gás (Abipip), entidades que representam os interesses dos grandes consumidores de energia elétrica e de agentes da indústria de petróleo e gás.

O Relivre foi concebido para estimular a modernização das normas estaduais e sua harmonização com as normas federais. Trata-se de um ranking que compara o marco regulatório do gás de cada estado. O ranking é feito com base em diversos critérios, que se dividem em quatro grandes temas:

  • facilidade de migração entre os mercados cativo e livre;
  • isonomia entre consumidores cativos e livres;
  • critérios para comercialização; e
  • desverticalização.

O programa obteve êxito e gerou um grande impacto no mercado: nos últimos meses, houve uma onda de atualizações das regulações dos estados, que levou à alteração de suas posições no ranking.

Em Sergipe, por exemplo, seguindo essa onda de atualizações, a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de Sergipe (Agrese) publicou a Resolução Agrese 24/23, que extingue:

  • a autorização estadual de comercializador;
  • a taxa de fiscalização do comercializador; e
  • a obrigatoriedade, por parte do comercializador, de firmar termo de compromisso.

Passou-se a exigir apenas que o comercializador atuante no estado esteja credenciado pela Agrese (além de estar autorizado pela ANP).

A resolução também facilitou a migração para o mercado livre, reduzindo o requisito volumétrico de 10 mil m3/dia pela metade – além de permitir a livre alocação de volume de consumo em caso de migração parcial. Essas e outras mudanças fizeram com que o estado saltasse para a primeira posição no Relivre.

Em Alagoas, foi editada a Lei 9.029/23, a lei do gás do estado, que estabeleceu um regime de flexibilização gradual e fixou o requisito volumétrico para ingressar no mercado livre em 10 mil m3/dia.

Pela mesma lei, esse requisito volumétrico seria reduzido à metade a partir de 2025. A norma ainda prevê a figura do consumidor parcialmente livre, conceito importante para o mercado livre local.

Com as mudanças regulatórias, Alagoas está atualmente na segunda posição no Relivre (tendo chegado a ocupar a primeira posição antes de ser ultrapassado por Sergipe).

No Espírito Santo, estado que também já ocupou a primeira posição do ranking, a Agência de Regulação de Serviços Públicos do Espírito Santo (ARSP) publicou a Resolução ARSP 61/23. A norma modificou os procedimentos de reajuste das tarifas de gás canalizado e determinou a divulgação da tarifa de uso do sistema de distribuição (TUSD-Gás), aplicável aos agentes livres do estado.

A divulgação da TUSD-Gás é relevante para a abertura do mercado no estado, por ser um dos fatores econômico-financeiros diretamente utilizados por agentes interessados em avaliar a viabilidade dos projetos.

Minas Gerais e Rio de Janeiro, que ocupam a quarta e quinta posições, já anunciaram seus planos de atualizar suas regulações.

Em Minas Gerais, a revisão do marco regulatório do setor deve ser concluída ainda em 2024, enquanto no Rio de Janeiro já se discute uma revisão da normativa estadual, amparada inclusive num acordo de cooperação técnica firmado entre ANP e Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa) para harmonizar as competências.

No caso de São Paulo, a Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo (Arsesp) promoveu uma série de mudanças com a publicação da Deliberação Arsesp 1.485/23. As alterações permitem expressamente que o contrato de fornecimento em vigor no mercado cativo seja rescindido de forma antecipada em caso de migração para o mercado livre. Além disso, agora é possível realizar a migração parcial.

A norma também reduziu o prazo para atender à solicitação de retorno ao mercado cativo, além de extinguir o prazo máximo para que o usuário que tenha contratado simultaneamente no mercado livre e no mercado regulado migre totalmente para o primeiro. A medida é uma tentativa de dar mais flexibilidade ao processo de migração.

Apesar disso, São Paulo ocupa a décima quinta posição do ranking, possivelmente porque a norma manteve dispositivos como a exigência de autorização e regulação estaduais para a atividade de comercialização. Essas condições são consideradas desfavoráveis e, na visão de agentes do setor, invadem a competência da ANP.

É interessante constatar como mecanismos não públicos de sistematização e análise das regulações estaduais podem afetar diretamente o avanço dos mercados livres locais.

Nota-se que existe uma relação entre a criação do Relivre e a onda de modernizações regulatórias que vêm sendo implementadas nos últimos meses, o que configura mais uma etapa no desenvolvimento do mercado livre de gás.

Esse movimento pode levar a uma maior convergência entre as regulações dos estados e promover a harmonização que os programas federais defenderam para o setor.