A recuperação da economia brasileira passa, necessariamente, pela retomada das atividades industriais e por investimentos em grandes projetos de infraestrutura. Não é difícil concluir que uma condição essencial para isso seja o acesso ágil e direto a recursos financeiros – tanto nos tradicionais mercados de dívida, liderados, em grande parte, pela atuação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), quanto nos mercados de capitais, caracterizados, até recentemente, pela emissão de debêntures de infraestrutura (Lei nº 12.431/2011).
Pois é justamente neste momento, em que a oferta de crédito deveria encontrar pleno respaldo jurídico para dar segurança aos credores, que uma antiga discussão volta a ganhar a atenção dos mercados e causar preocupação: em que medida as garantias fiduciárias (mais especificamente, as cessões fiduciárias de créditos) estão de fato protegidas e excluídas do regime da recuperação judicial? O pressuposto dessas garantias não era viabilizar ao credor um meio rápido e seguro de recuperação do seu crédito, evitando as disputas e a competição com os demais credores do devedor? Então por que o regime dessas garantias está sendo relativizado, o que traz incertezas para os credores que delas deveriam se beneficiar?
Esses questionamentos decorrem de decisões judiciais recentes nas quais, em vez de reconhecer ao credor fiduciário o direito de executar plenamente os bens recebidos em garantia, mesmo que um processo de recuperação judicial do devedor esteja em curso (conforme § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/05), alguns tribunais (inclusive de instâncias superiores) vêm impondo limites a essa pretensão.
No caso das cessões fiduciárias de crédito, que se tornaram uma das mais importantes formas de garantia em projetos de infraestrutura no Brasil, é cada vez mais frequente a tese de que os créditos cedidos fiduciariamente não devem, ao menos em sua integralidade, ser destinados à satisfação plena do credor fiduciário se, ao tempo da execução, o devedor estiver em recuperação judicial. A preocupação contida nessa visão é que o sucesso da recuperação judicial do devedor apenas será assegurado – para dar continuidade aos negócios e favorecer os interesses dos demais beneficiários – se o devedor puder realizar a gestão de seus bens e receitas. Garantir a plena execução dos créditos cedidos fiduciariamente seria, portanto, dificultar a possibilidade real de recuperação da empresa.
Essa disputa entre os interesses dos credores fiduciários, de um lado, e dos empresários e respectivos projetos, de outro, é mais evidente nos casos da cessão fiduciária de créditos (no jargão do mercado, “trava bancária”), mas ela gera preocupações similares em qualquer tipo de garantia fiduciária. Afinal, na maioria das vezes, os projetos de infraestrutura desenvolvidos no Brasil têm a integralidade de seus ativos e direitos cedidos em garantia fiduciária aos credores. Não sem motivo, portanto, os primeiros estudos realizados pelo Ministério da Fazenda para propor reformas à Lei nº 11.101/05 caminham no sentido de ampliar as restrições para as garantias fiduciárias no caso de recuperação judicial do devedor, embora sem afastar as prerrogativas essenciais (especialmente, os processos de execução e a ordem de prioridade em relação aos demais credores) que lhes dão fundamento em caso de efetiva liquidação do acervo patrimonial do devedor.
O tema ganha especial relevância quando consideradas as atuais alterações nas políticas de crédito de instituições financeiras, como o BNDES e o Fundo de Investimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FI-FGTS), que participaram de forma ativa no financiamento e na expansão de projetos de infraestrutura nos últimos anos, seja via concessão de crédito incentivado de longo prazo, no caso do primeiro, ou por meio de investimentos via participação acionária ou debêntures, no caso do segundo.
Especialmente em relação ao BNDES, dois pontos merecem destaque. O primeiro diz respeito às novas regras operacionais do banco, que reduziram os limites de participação subsidiada (TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo) e instituíram atributos e qualificadores para a concessão de crédito não mais apoiados em uma lógica de desenvolvimento setorial, mas sim nos benefícios que os projetos financiados trarão à sociedade.
O segundo ponto está relacionado à substituição da TJLP (historicamente adotada pela BNDES) pela TLP (Taxa de Longo Prazo), recentemente instituída pela Medida Provisória nº 777/2017 e que tende a se aproximar das taxas de juros praticadas pelo mercado.
Essas medidas não apenas reforçam o papel institucional do BNDES como indutor do desenvolvimento sustentável e reduzem seu elevado nível de endividamento, como também tendem a propiciar uma maior abertura para a atuação de bancos comerciais e outros instrumentos financeiros como fontes alternativas de financiamento de projetos de infraestrutura no Brasil.
No entanto, as reformas nas políticas de crédito do BNDES talvez deixem de gerar os resultados pretendidos se as demais instituições financeiras estiverem desconfortáveis com os rumos legislativos e judiciais do regime das garantias fiduciárias. A falta de certeza quanto à forma de execução e, principalmente, ao momento da satisfação do crédito (se antes ou depois da recuperação judicial) pode aumentar os riscos de que os financiamentos tão necessários à estruturação dos projetos de infraestrutura acabem não sendo viabilizados em todo seu potencial.
Por outro lado, é impossível deixar de reconhecer que os projetos de infraestrutura de relevância para a economia nacional também precisam dispor de mecanismos capazes de protegê-los das volatilidades financeiras para assegurar a continuidade de suas operações quando as dificuldades forem meramente passageiras e não estruturais. Nesse contexto, em matéria de serviços públicos, há previsão legal de que a execução das garantias não pode comprometer a continuidade do serviço. Alguns tribunais, inclusive, têm interpretado que tal dispositivo limita a cessão fiduciária ou o penhor de recebíveis a 30% do faturamento, sob a presunção de que o devedor necessita de ao menos 70% de suas receitas para fazer frente às despesas de operação e manutenção.
Nesse contexto, as iniciativas de reforma legislativa (e, por consequência, as intepretações judiciais delas decorrentes) deverão buscar o equilíbrio entre a plena satisfação do crédito e a preservação da empresa em cenário de dificuldade. O favorecimento demasiado de apenas um dos lados certamente não será benéfico para nenhum deles no longo prazo, além de enfraquecer o ambiente jurídico mais adequado ao desenvolvimento econômico nacional.
As perguntas que ficam neste momento não deveriam ser, portanto, se devemos ou não regular de forma mais equilibrada o regime das garantias fiduciárias, mas sim de que modo podemos fazê-lo.